MAPA 1 - Planta de José Pereira Rebouças em 1903
(clique na imagem para detalhá-la)
Santos: urbanismo na época do café. 1889-1930
Wilma Therezinha Fernandes de Andrade (*)
NOTA INTRODUTÓRIA
Pretende-se apresentar algumas considerações sobre o
desenvolvimento urbano da cidade de Santos, durante a hegemonia econômica do café, privilegiando o período da Primeira República.
Para o estudo do período 1889 a 1930, foram utilizados, como fontes, mapas da cidade
e, de preferência, livros de autores da época como Saturnino de Brito; Alberto Souza; Guilherme Álvaro. Outros documentos consultados foram: o
recenseamento de 1913 e a iconografia fotográfica que proporciona visões elucidativas para o assunto.
Esse tema - urbanismo em Santos na época do café - tem particular interesse, pois
enfoca um período extremamente rico da história santista.
A ORIGEM DA VILA DE SANTOS
VILA DE SANTOS, PORTO DO AÇÚCAR
Na parte central do litoral de São Paulo, duas ilhas se destacam:
a de São Vicente e a de Santo Amaro. Situadas bem próximas, vêm separadas por um canal (ver foto 1), que é a entrada do porto
de Santos. As ilhas foram descobertas em 1502, pelos portugueses da primeira expedição exploradora, comandada por Gonçalo Coelho.
A ocupação da ilha de São Vicente - melhor situada e dotada de bons portos -
concretizou-se em dois povoados: o de São Vicente e o de Santos, elevados à condição de
vilas, na primeira metade do século XVI.
As vantagens do porto do lagamar de Enguaguaçu (hoje Caneú)
determinaram, para a vila de Santos, decisiva superioridade sobre a de São Vicente, primeiro núcleo europeu da região.
O segundo núcleo estabelecido, na parte Norte da ilha vicentina, contava com outras
vantagens: águas tranqüilas, espaço marítimo, mais abrigo das ventanias e, em terra, morros com vegetação alta, rodeados de planície e com fontes de
água potável. Junto a um outeiro, chamado de Santa Catarina, forma-se o núcleo de Santos, por volta de 1540, iniciativa particular de
Braz Cubas.
Anos depois, em 1554, funda-se, no planalto, pelos jesuítas, o colégio de São Paulo de
Piratininga. Fica criado o binômio Santos-São Paulo, que será e é decisivo para a história da região.
FOTO 1 - EXPANSÃO DE SANTOS EM DIREÇÃO À BARRA. INÍCIO DO SÉCULO XX - Na foto, batida
do Monte Serrate, vê-se, em primeiro plano, a Vila Mathias, cortada pela larga Avenida Ana Costa, que liga à praia, então quase deserta. À esquerda,
o sinuoso Caminho Velho da Barra, cortado pela reta Av. Cons. Nébias, alcança a praia. Divisa-se a entrada para o porto e, em último plano, a ilha
de Santo Amaro (Guarujá)
Foto publicada com o texto
A CONSOLIDAÇÃO DO QUADRO URBANO
Santos, elevada a vila, aproximadamente dez anos antes da
fundação de São Paulo de Piratininga, tornou-se a principal entrada e saída do litoral para o planalto, situado além da Serra do Mar. Os primeiros
povoadores europeus localizaram-se ao redor do porto do Enguaguaçu, perto do Outeiro de Santa Catarina. A cana-de-açúcar,
plantada nos terrenos da Ilha e adjacências, é transformada nos engenhos em açúcar. Breve período. Logo a cultura canavieira
do Nordeste faz decair a base de sustentação da economia da Baixada.
Santos levou uma modesta vida sem desperdiçar nenhuma forma de atividade que a pudesse
manter.
A função de "porta" para São Paulo é fundamental para consolidar a existência da vila
de Santos. Os que vinham de serra-acima paravam no lagamar, junto a um porto de pé-de-serra: o de
Cubatão. Daí navegavam para um outro ancoradouro, situado na parte Norte da Ilha de São Vicente, pouco distante
do porto de Enguaguaçu, que recebeu o nome português de Valongo.
Essa modificação será a causa do aparecimento do segundo porto de ocupação da vila de
Santos. Têm-se, assim, dois núcleos de ocupação: o de Santa Catarina (Enguaguaçu) e o do Valongo.
A distância entre eles é de uns 35/40 minutos a pé e o caminho percorrido evoluiu para
uma rua, que se tornou a principal da vila. Essa via, chamada antigamente de Rua Direita, teve seu nome mudado para XV de
Novembro e se tornou a espinha dorsal da vila e como tal permanecerá até o século XX.
A Capitania de São Paulo viveu modestamente durante uns 200 anos, sobrevivendo através
do tráfico de escravos índios e da venda de modestos produtos, entre os quais caixetas de marmelada.
Com o passar desses dois séculos, em Santos, ergueram-se edificações importantes: a
Câmara Municipal; a Igreja Matriz; a Casa do Trem Bélico; capelas; os
conventos do Carmo, do Valongo e São Bento; algumas casas de
moradia como a de Dona Ana de Siqueira e Mendonça (mãe de Frei Gaspar) e do Capitão-mór, Francisco Xavier da Costa Aguiar, ambas na Rua Direita.
Como a principal função econômica era o porto, a vila santista
nunca se afastou do mar e apresentava uma concentração urbana tipicamente linear.
O porto junto ao Outeiro de Santa Catarina; o porto do Valongo - chamado também, por
algum tempo, de porto do Bispo -; o porto de Cubatão, início do caminho da
Serra do Mar, tornam-se os três pontos importantes do litoral. São Vicente ficou à margem desse itinerário vital e decai a ponto de se pensar,
seriamente, em seu desaparecimento. Numa visão geral, a existência modesta de todas as vilas da Capitania de São Paulo era o reflexo de sua pobreza
à margem dos centros econômicos do Brasil: regiões de mineração e das zonas canavieiras do Nordeste.
Na segunda metade do século XVIII, espanta-se a crise econômica com nova tentativa de
plantar cana-de-açúcar, para revitalizar a decadente capitania de São Paulo. Iniciativa do Morgado de Mateus (que governou a Capitania de
1765 a 1775), a tentativa dá certo e os paulistas têm, no final do século XVIII, uma mercadoria para vender: o açúcar
processado no planalto e no litoral Norte.
No final do século, em 1790, a população de Santos é estimada em 3.145 habitantes e
sua área urbana ia do bairro de Santa Catarina ao do Valongo, já firmemente unidos pela Rua Direita. Por ficar mais
afastado do porto de Cubatão que dá acesso ao planalto, o bairro de Santa Catarina (ou dos
Quartéis) é mais pobre do que o do Valongo, que goza da vantagem. Duas classes sociais tornam-se perceptíveis: a dos "quarteleiros" (mais
pobres) e a dos "valongueiros" (mais abastados), que, com freqüência, entravam em confronto. A exportação do açúcar, a
partir da segunda metade do XVIII, torna-se crescente e revitaliza, aos poucos, a vila. Santos torna-se o porto do açúcar, posição que manterá até
meados do século XIX.
MAPA 2 - Planta de Santos de 1896, defendida pela Câmara Municipal
(clique na imagem para detalhá-la)
MUDANÇAS NO SÉCULO XIX
CIDADE DE SANTOS, PORTO DO CAFÉ
O café surge na lista de produtos exportados pelo porto de Santos na última década do
século XVIII. No início do século seguinte, dois fatos repercutem em Santos: a abertura dos portos e o início do processo da independência, no qual
Santos teve destacada participação.
Em 1822, a vila atingiu 4.781 habitantes. Em 1839, Santos recebe o "status" de
cidade. Em 1854, a população, de 7.885 habitantes, já tinha sido alcançada pela febre amarela, que iniciou sua indesejável presença a partir de
1844. Um triste período se inicia na cidade: o das epidemias - febre amarela, impaludismo, varíola, peste bubônica, sarampo, febre tifóide -
acompanhadas pela tuberculose que atingia a população mais pobre. Essa fase prolongou-se por 60 anos, aproximadamente.
Nesse meio-tempo, em 1851, Santos tornou-se o porto do café, pois a exportação
cafeeira suplantou a do açúcar e manteve crescimento constante.
A parte Sul da Ilha de São Vicente, constituída de praias - a Barra, como era chamada
- era freqüentada, ocasionalmente, na segunda metade do século XIX, por grupos em busca de lazer, mas nada havia de sério quanto à sua ocupação
permanente.
A Barra era alcançada através de um caminho que ia do Largo da
Matriz (praça da República, hoje) até a praia, no lugar chamado Boqueirão. Caminho sinuoso atravessava a planície,
coberta de vegetação variada com arbustos e palmitais (ver mapa 3). Posteriormente à abertura da Avenida
Conselheiro Nébias, que numa reta liga o centro antigo à praia do Boqueirão, passou a ser chamado de Caminho Velho da
Barra. Ele existe hoje, urbanizado, constituído pela Rua Braz Cubas, Avenida Washington Luiz, ruas Luís de Camões e Oswaldo Cruz. No ponto onde
há o cruzamento entre o Caminho Velho e o Caminho Novo (Avenida Conselheiro Nébias) existe o bairro da Encruzilhada. Na
década de 80, abre-se a Avenida Ana Costa, que liga a Vila Mathias à
praia, no lugar chamado Gonzaga.
A hegemonia do café coincide com o início da fase das epidemias. Café, negócio e
prosperidade: melhoria de nível de vida; epidemias associadas a prejuízo: sofrimento e morte.
Enquanto a chegada da ferrovia, motivada pela necessidade da
rápida exportação do café, em 1867, foi fator importante do desenvolvimento da cidade, Santos, o porto do café, tornou-se
um porto maldito: evitado pelos navios, pois as tripulações temiam, com razão, serem atingidas pelas doenças.
Em 1889, por causa das epidemias de cinco moléstias - febre amarela, impaludismo,
peste bubônica, varíola e tuberculose -, o porto de Santos foi interditado pelo governo. A grita foi geral e teve repercussões fora de Santos. Um
relatório desse ano, destinado ao governo da província de São Paulo, oficializava o que todos sabiam há décadas:
As condições higiênicas dessa cidade são piores possíveis e muitas, senão tudo há
fazer para torná-la apta repelir o inimigo traiçoeiro que aparecendo entre nós aniquila milhares de vidas preciosas trazendo ao mesmo tempo, o
terror e com ele avultado prejuízo ao comércio. (Relatório da Comissão de Vigilância Sanitária de Santos, de
17/3/1889, citado por Betralda Lopes, O porto de Santos e a febre amarela).
Em 1890, a população caiu para 13.012 habitantes contra 15.505, em 1886, isto apesar
da imigração, que cobria as baixas populacionais.
É nessa situação crítica, de calamidade pública,
que se dá a inauguração do primeiro trecho do cais do porto, pela Cia. Docas de Santos, em 1892.
A EXPANSÃO PARA A BARRA
O Centro ou a "Cidade", como diz hoje o santista, ficou, ao
avançar a segunda metade do século XIX, insuficiente para abrigar a população de Santos. As atividades relacionadas ao porto tornam-se intensas e
casas de moradias são transformadas em cortiços - os "viveiros da morte" - ou utilizadas como cocheiras, muitas demolidas para dar lugar à
construção dos armazéns que estocam milhares de sacas de café. A Rua XV de Novembro, a Praça da República, a Praça Mauá e
as ruas de ligação tornam-se centros ativos de negócios: as casas comissárias e as de exportação de café dominam o comércio santista.
A cidade tornara-se inadequada à função residencial. Constroem-se sobrados no
Paquetá e no Valongo para atender à demanda de moradias; entretanto, as atividades portuárias, as obras de construção do
cais do porto, incomodam as famílias que vêem aumentar seu poder aquisitivo. Apesar das epidemias, o número de habitantes, de 13.012, em 1890, salta
para 50.389, em 1900.
O desenvolvimento de Santos era um fato visível a qualquer olhar.
MAPA 3 - Planta de Santos de 1910, de Saturnino de Brito
(clique na imagem para detalhá-la)
A DISCUSSÃO SOBRE A EXPANSÃO URBANA DE SANTOS
É bom lembrar que a expansão urbana foi um fenômeno no Ocidente, no século XIX.
Pode-se mesmo falar em explosão urbana na Europa, América do Norte, provocada pelo aumento da população. O Brasil acompanha este fenômeno, seguindo
um caminho que, no século seguinte, o caracteriza como um país onde a população, nas cidades, ultrapassa a população rural.
A idéia de progresso é predominante sobre a de tradição e o crescimento das cidades
propicia o debate sobre como deveria ser esse desenvolvimento. Em suma, abre-se a polêmica sobre a questão urbana.
Em Santos, essa questão passa pelo problema sanitário. Todavia, a preocupação maior
não é a humanitária e sim o interesse econômico, como foi demonstrado por Betralda Lopes, na obra citada.
É sintomática a representação da Associação Comercial de Santos ao Presidente da
Província, em 8 de maio de 1889: O Saneamento de Santos torna-se uma necessidade inadiável para garantir não só a
vida da população mas altos interesses de ordem econômica.
Outro conceito aceito, com entusiasmo, é o positivista, que surge no Brasil em 1869.
De caráter materialista, está associado às idéias progressistas, liberais e de modernidade.
Esse conjunto ideológico é acolhido com entusiasmo pelas camadas mais abastadas da
sociedade, que são, coincidentemente, as de maior poder decisório e político.
Para modificar o terrível quadro sanitário de Santos, apresentam-se várias propostas
de saneamento. Como é sabido, o Governo do Estado criou duas comissões: a Comissão Sanitária e a Comissão do Saneamento; a primeira chefiada pelo
médico dr. Guilherme Álvaro, e a segunda, pelo engenheiro dr. Francisco Saturnino Rodrigues de Brito.
Este elaborou o plano de saneamento da cidade que, após alterações,
foi executado. Basicamente, consistia em dois sistemas: um de esgoto e outro de galerias pluviais para recolhimento das
águas da chuva. Um conjunto de nove canais de drenagem superficial cortava a parte santista da Ilha de São Vicente. Apesar de possuírem comportas,
os canais de drenagem eram ligados de modo a receberem as águas do mar, através da força das marés, impedindo que águas paradas favorecessem a
reprodução dos mosquitos, transmissores da febre amarela.
Saturnino de Brito desenhou os canais aproveitando, tanto quanto possível, a
localização dos rios e riachos existentes. Cite-se um exemplo: o curso do Rio do Soldado foi
corrigido pelo canal 1, no Paquetá e na Vila Mathias.
O projeto de saneamento de Saturnino de Brito foi concretizado pelo Governo do Estado,
no início do século XX. O canal 1 foi inaugurado, com grandes festas, em 27 de agosto de 1907.
Interessante é lembrar que a primeira idéia de saneamento de Santos foi de Francisco
Xavier da Costa Aguiar que, em 1809, propôs a expansão da vila. Escreveu ele: Deve de presente tratar-se de
continuar a Vila; pelas grandes e desafogadas planícies [...] até a Barra Grande. E sugeriu a construção de uma
vala real, para esgotar as muitas águas estagnadas dos terrenos.
Os canais de drenagem, abrindo caminho livre para as águas que
alagavam as ruas e adoeciam a população, tornaram-se uma das marcas registradas da cidade.
Até o final da década de 20, continuou o trabalho de abertura dos canais que cortaram
a ilha toda, tendo seu uso, como eixo de longas avenidas, definido a expansão urbana santista.
O saneamento transformou radicalmente as péssimas condições sanitárias da cidade,
acabando com as epidemias, para alívio do povo e satisfação dos empresários ligados ao comércio cafeeiro.
Entusiasmado com o sucesso positivo do saneamento de Santos, Saturnino de Brito tomou,
particularmente, a iniciativa de outro projeto: a Planta de Santos, que determinava a expansão urbana da cidade, e ofereceu-a à Câmara Municipal
(ver mapa 3).
Ocorre que a Câmara tinha sua Planta de Santos. Projeto de expansão da cidade de
1896 (ver mapa 2) e aborreceu-se com o não-encomendado projeto e recusou-o, alegando sua inviabilidade, utilizando-se do
parecer técnico do engenheiro A. Silva Teles, da Secção de Obras.
A polêmica ganhou aspectos de confronto, quando o jornalista Alberto Souza escreveu,
defendendo a Câmara: A municipalidade de Santos perante a Comissão de Saneamento, polêmica com o dr. Saturnino de Brito, em resposta aos
argumentos de Saturnino.
O projeto da Câmara, de 1896, era tão medíocre que, nem mesmo durante a polêmica,
ousou-se compará-lo com o plano de Saturnino. Tinha o projeto da Câmara todos os defeitos: um quadriculado monótono cobria toda a superfície ainda
livre da planície santista, sem respeitar nada, nenhum acidente natural. Quadras de igual tamanho eram deixadas livres para que funcionassem como
praças. Alberto Souza, defendendo o plano da Câmara - verdadeiramente execrável até para o mais radical adepto do geometrismo - escreveu,
timidamente: "bem ou mal, a Câmara possuía um...". O plano era mesmo indefensável,
não respeitava nada, tanto da ação do homem, quanto da Natureza (ver mapa 2).
A Planta de Saturnino propunha uma enorme via que, vindo da ponta do morro do
José Menino, tomava direções diversas, cortava o centro da planície e se dirigia à Ponta da Praia, onde se bifurcava até atingir o mar. O plano
previa arborização, parques em locais diversos - um deles junto à praia, entre a Av. Ana Costa e a Washington Luíz (canal 3). Respeitava as ruas,
logradouros e caminhos já existentes (ver mapa 3).
A comparação das duas plantas dá medidas extremas do modernismo em projetos urbanos. A
planta oficial, fria, mecânica, geométrica. A de Saturnino, com avenidas arborizadas, mudanças de direção, jardins e grandes praças, evitava a
monotonia, embora também empregasse o geometrismo.
Analisando este caso, podemos chegar a compreender melhor as relações de poder. Na
disputa Câmara-Saturnino, houve um outro componente poder/saber: a Câmara podia; Saturnino sabia; Saturnino queria mandar; a Câmara pretendia saber.
Apesar da áspera polêmica, o plano de Saturnino, pela sua evidente superioridade,
predominou, embora bastante modificado.
A DISCUSSÃO TEÓRICA
Considerando, ainda, as idéias propostas, pode-se visualizar as bases teóricas que as
inspiraram.
O projeto da Câmara, de 1896, apresentava-se com um geometrismo rígido inspirado na
idéia de que as linhas retas eram as linhas ideais, representativas de um novo conceito de progresso. Passando por cima dos caminhos curvilíneos
abertos pela população; dos leitos dos rios e ribeiros e outros obstáculos naturais, pretendia impor o predomínio do poder político. É o desejo de
sobrepor a força do homem à da Natureza, de subjugá-la através de um racionalismo exacerbado.
Saturnino de Brito, engenheiro sanitarista, propõe uma malha urbana geométrica
abrandada por recursos tomados à Natureza.
Percebe-se no seu plano as preocupações de alguém que conhecia e seguia as idéias de
Camillo Sitte. Esse engenheiro vienense (1843-1903) defendia o respeito às construções antigas, à conservação das plantas irregulares dos largos e
praças, e a colocação dos monumentos escultóricos nas laterais dos mesmos, para permitir a livre circulação dos transeuntes nos espaços públicos;
enfim, a busca de uma cidade estética. Combatia, assim, a monotonia dos complexos urbanos modernos, defendendo a beleza dos conjuntos
arquitetônicos.
Sua obra principal: A construção das cidades segundo seus princípios artísticos,
publicada em 1889, teve grande repercussão na Europa, principalmente na Alemanha e Áustria. Influenciou, em vários pontos, a obra de Saturnino de
Brito. Nota-se, no brasileiro, a preocupação com o aspecto do saneamento, a beleza das construções. Escreveu a respeito:
A ordenação das cidades [...] garantirão às populações interessadas mais higiene, mais bem-estar, mais felicidade de
circulação, respeitando totalmente as belezas naturais, as lembranças arqueológicas. (Citado por Carlos Roberto M.
Andrade em De Viena a Santos - Camilo Sitte e Saturnino de Brito).
Para ambos, Sitte e Saturnino, a cidade era como um organismo vivo com um corpo
saudável e capaz de viver com prazer e de trabalho produtivo. Por isso, no plano para Santos, de Saturnino, o centro antigo foi respeitado, pois o
traçado urbano surgido, meio ao acaso, foi produto de uma ação do povo. O ideal para Saturnino era, segundo suas palavras, integrar "de maneira
adequada, critérios higiênicos, racionais e estéticos".
Daí, as grandes e largas avenidas que facilitariam a livre circulação dos ventos, os
canais que de mar a mar permitiriam a livre passagem das marés. Ventos e águas para arejar e limpar a cidade. Ruas, parques e espaços públicos
arborizados tinham idêntica função higiênica e deveriam ser belos para a contemplação dos habitantes. No caso de Santos, Saturnino buscou conciliar
as necessidades santistas com as idéias de Camillo Sitte, unindo a técnica à beleza.
A EXPANSÃO URBANA
Vivendo durante quase 350 anos no centro urbano que ia do Outeiro de Santa Catarina
até o Valongo, Santos, no século XIX, começou sua expansão. A princípio, de modo tímido, o crescimento ocupa a cidade: os bairros do Paquetá, para o
Leste; e passando o Monte Serrat, povoa a Vila Mathias. Mas os imigrantes atraídos pelo café e
os negros "fugindo ao cativeiro", como disse Vicente de Carvalho, aumentam a população, apesar das epidemias que duram
até 1905, aproximadamente.
Em 1867, é aberta a Avenida Conselheiro Nébias, por iniciativa de Ignácio Wallace da
Gama Cochrane, um engenheiro de ferrovias, cuja experiência lhe influenciou o trabalho. Teve várias vinculações com Santos: comissário de café,
membro da Associação Comercial de Santos e presidente da Câmara Municipal. A Avenida Conselheiro Nébias tornou-se a mais longa reta de Santos, que
vai do paredão do cais até a praia ou Barra, como se dizia, cortando toda a Ilha de São Vicente, na área santista.
Sobre a abertura da Conselheiro Nébias, afirmou Silva Sobrinho,
formada estava a espinha dorsal do sistema urbanístico da cidade de Santos. A orientação da Avenida Ana Costa e dos canais de
Saturnino de Brito ficava previamente determinada. Achavam-se preestabelecidas as condições do paralelismo e verticalismo das futuras ruas
(Silva Sobrinho, "Ignácio Cochrane, o urbanista", A Tribuna 22/out/1967).
Para vencer a extensão de 6 quilômetros, uma linha de bondes
puxados por muares foi inaugurada em outubro de 1872, ampliada com um ramal para o Embaré, no ano seguinte. Aliás, o sistema de transporte por
bondes, tornado elétrico, em 1909, foi fundamental para a expansão urbana. Era ligeiro e percorria os itinerários com freqüência regular. A abertura
de avenidas e ruas seria pouco útil, se não houvesse um sistema de transporte público.
Na Barra, existiam chácaras de moradia e de recreio, e a ocupação da orla da praia
aumenta com rapidez.
Na década de 80, abriu-se na Vila Mathias a Avenida Ana Costa
que, paralela à Conselheiro Nébias, é, como esta, linha mestra do urbanismo, tornando-se as duas linhas principais que ligam o centro antigo e a
Vila Mathias à praia.
A abertura de largas avenidas está ligada à idéia de modernidade, associada à
aplicação da linha reta no urbanismo, do domínio do homem sobre o espaço e pelo encantamento, que, nas pessoas, exerciam as perspectivas geométricas
para o infinito.
Entre as duas áreas - o Centro, agora antigo, e a Barra - havia um enorme espaço
vazio, revestido com vegetação baixa: zona intermediária que começou a receber construções ao longo das avenidas e ruas principais (ver
mapa 1 - Planta da Cidade de Santos e seus arrabaldes, 1903).
Nas avenidas, a classe abastada constrói grandes residências no variado gosto da
época; o neo-clássico, o "art nouveau", o "arte déco" e um estilo composto que, comodamente, é chamado de eclético.
No início da Primeira República, já estavam em formação os bairros da Vila Mathias
(1880-1910) e o da Vila Macuco (a partir de 1890). Na orla da praia, além das chácaras, constroem-se hotéis e áreas de
lazer.
No José Menino: o Hotel
Internacional do final do século XIX, em plena areia da praia, e próximo, o Palace Hotel. O Hotel Internacional foi
demolido em 1959. No seu lugar, destaca-se uma série de altos edifícios (em frente ao Caiçara Clube), a qual interrompe a visão magnífica da baía de
Santos. O Palace Hotel foi inaugurado em 1910: de aparência majestosa, tinha salões de jogos, como os grandes hotéis da época. Derrubado, em 1964,
no seu lugar construiu-se o Universo Palace.
No Gonzaga, o Parque Balneário e o
Hotel Atlântico propiciaram a ocupação de lazer, voltada para a praia, durante o dia, e para o jogo, durante a noite. No Boqueirão, entre a
Avenida Conselheiro Nébias e a Rua Oswaldo Cruz, havia o Miramar, centro de lazer, cassino, depois cinema. Do outro lado,
o Parque Indígena do empresário Júlio Conceição, exemplo remanescente das antigas chácaras da Barra, incrementado pelo
proprietário com viveiros de pássaros, tanques de peixes exóticos e plantas diversas, principalmente orquídeas. Desaparecido o Parque Indígena, após
a morte de seu dono, na década de 30, deu origem ao Aquário (na Ponta da Praia) e ao
Orquidário (no José Menino).
A Ponta da Praia era atingida pela Avenida Barnabé, atual Epitácio Pessoa. O lazer era
de caráter esportivo: clubes náuticos, área de pesca. Dois centros de estudo: o Instituto Dona Escolástica Rosa (de 1906) e a
Escola de Aprendizes Marinheiros (de 1909), construída no lugar onde existiu o forte de Estacada ou forte Augusto, da
época colonial.
Novos bairros surgem na Primeira República, formando-se ao longo de avenidas ou
compridas ruas abertas. É o caso da Carvalho de Mendonça (que aparece delineada na planta de 1903) e que unia o Caminho
Velho da Barra (altura da Rua Luís de Camões) ao morro do Marapé e que deu origem a três bairros: Vila Belmiro
(1910-1915); Marapé (1930) e Campo Grande (1915-1925) (ver mapas 1 e
4). O preenchimento da ponta da Ilha, a atual Ponta da Praia, já pertence a outra época; é a última
área desse lado da planície a ter interior ocupado.
A década de 20 ainda corresponde à "época áurea do café", como ainda costumam dizer os
antigos santistas. É o período da construção do Palácio da Bolsa Oficial do Café, no Centro ou "Cidade".
Deve-se mencionar a construção dos chalés de madeira, nos
bairros populares. Capítulo à parte da arquitetura de Santos, foi o chalé uma solução encontrada pela classe trabalhadora para resolver o seu
problema de moradia. Edificação clandestina, para fugir à fiscalização da Prefeitura, era feita nos fins-de-semana, em sistema de mutirão. Ainda
subsistem muitos deles, nos bairros do Jabaquara e do Macuco. Contrapõem-se às residências dos abastados na orla da praia
e das largas avenidas.
A construção dos jardins, nos 7 quilômetros da praia na década
de 30, arrematou o tratamento urbanístico, valorizando a paisagem da baía de Santos.
Os jardins da praia tornam-se marca da cidade, assim como os canais, muitos deles
embelezados por árvores nas calçadas laterais. Nesta época, a população de Santos era de, aproximadamente, 140.000 habitantes.
MAPA 4 - A expansão urbana de Santos e São Vicente - 1532-1950
(clique na imagem para detalhá-la)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A expansão urbana de Santos está ligada ao projeto de Saneamento da Cidade.
Basicamente, o enxugamento da planície e a resolução do problema dos esgotos fizeram com que os terrenos planos pudessem
ser ocupados. Os canais de drenagem, as grandes avenidas - Conselheiro Nébias, Ana Costa, Epitácio Pessoa, Afonso Pena,
Rodrigues Alves - orientam o crescimento das áreas urbanas.
O plano em xadrez predomina na execução da malha urbana e poucas áreas foram
reservadas para jardins, ao contrário do que preconizava Saturnino de Brito.
O Relatório de 1924 informava que: o progresso
sempre crescente da nossa cidade, em todos os ramos de atividade humana, faz crer que em poucos anos Santos se tornará uma das mais belas cidades da
América do Sul.
Ufanismo à parte, o café patrocinava a maior parte desse progresso relacionado com o
comércio e a prestação de serviços.
O ideal de beleza urbana de Camillo Sitte e adotado por Saturnino de Brito, no seu
plano de saneamento, tornou Santos - de local insalubre - em cidade saneada aprazível.
Na verdade, a idéia do progresso teve, por base, razões preponderantemente comerciais
e, do ponto-de-vista urbanístico, a inserção de Santos no moderno processo de urbanização.
De um modo geral, a conjunção desses dois fatores - racionalidade e beleza - tornaram
Santos a ser a cidade que é.
A queda do café, em 1930, causou um impacto e transformou a economia da cidade,
empobrecendo-a. As belas casas das avenidas das praias ou próximas a elas foram, na sua maioria, vendidas e ocupadas por pensões e hotéis para
veranistas. Demolidas, deram lugar a prédios de apartamentos, para fins-de-semana dos paulistas, depois usados como moradias permanentes. Poucas
mansões subsistiram. A Casa-Branca da praia, antiga residência da família Pires, sobreviveu à especulação imobiliária e, desapropriada pela
Prefeitura, é atualmente ocupada pela Pinacoteca Benedicto Calixto. Honrosa exceção!
Os moradores de Santos gostam de relembrar "os tempos do café" e até pessoas nascidas
depois de 1930 foram afetadas por este fato e têm atitudes só explicáveis em função do efeito produzido pela riqueza da época do café.
Arriscando-nos a entrar no campo da Sociologia, poderíamos afirmar que isto faz parte de um imaginário coletivo santista.
Como se viu, este tema - Santos: urbanismo na época do café, 1889-1930 - enfoca
um período extremamente rico da história de Santos e deve continuar a merecer o interesse de pesquisadores, pois ainda há muito o que descobrir.
Santos, após o período da crise cafeeira, continuou sua expansão. Mas as linhas
básicas de seu crescimento urbano mantiveram as contradições da época do café: racionalidade e beleza.
(*) Wilma Therezinha Fernandes de Andrade é mestra
e doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Licenciada em História e Geografia (PUC-SP). Professora de História do Brasil e
Coordenadora do Centro de Documentação da Baixada Santista (UniSantos). Vice-presidente do Museu de Arte Sacra de Santos.
FOTO 2 - RUA SENADOR FEIJÓ, ANTIGA RUA DA ALFÂNDEGA - À direita, o Monte Serrat. O
bonde, os postes de iluminação elétrica, as casas de moradia ao longo das ruas retas davam, na época, o toque de modernidade
Foto publicada com o texto
FONTES E BIBLIOGRAFIA:
ÁLVARO, Guilherme. A campanha sanitária de Santos: suas causas
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