Quando se fala em Jabaquara, logo se pensa naquele canto lá pros fundos da Rua Rangel
Pestana. Realmente, ali está concentrado o maior número de moradias, mas o bairro não se resume àquele trecho: faz divisa com o Marapé, chega até
a altura do Túnel Rubens Ferreira Martins e abriga em seus limites a Santa Casa e o Estádio da Portuguesa, a popular Briosa.
Justo nessa área, conhecida no século XIX como Sítio Jabaquara, surgiu o maior quilombo
de que se tem notícia na história do País. Não se sabe o número de negros que lá viveram, mas é certo que até escravos do Interior se submetiam a
descer a serra a pé para viver no reduto do abolicionista Quintino de Lacerda.
Naquela época, foram os negros que se uniram para conquistar melhores condições de
vida; hoje, quem se organiza para reivindicar são os moradores das perigosas encostas do morro. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) já
cansou de apontar os riscos a que muitas famílias estão expostas e, como a Prefeitura permanece indiferente aos alertas, o pessoal decidiu
"cobrar" providências.
Pois é: as casas se multiplicaram nos lugares menos indicados e algo deve ser feito. De
resto, em sua parte baixa, o Jabaquara continua sendo um bairro tipicamente residencial. Permanece com as mesmas feições de 30 ou 40 anos atrás e
ainda não começou a ser importunado por construtores ávidos em espalhar seus edifícios.
Muitas famílias do bairro correm perigo porque as encostas do morro não oferecem segurança
Negros de todos os lugares procuravam as matas,
desesperados. Era o horror ao Libambo, ao tronco. Era a agonia pela liberdade.
E esses homens que buscavam um futuro sem senhor fizeram surgir em Santos, na extensa várzea conhecida no final
do século XIX como Sítio Jabaquara, um dos maiores quilombos do Brasil. As terras pertenciam ao abolicionista Quintino de Lacerda, que fora
escravo de Antônio de Lacerda Franco. Os dois se tornaram amigos e ele ganhou a liberdade.
Morador antigo e ex-condutor de bondes
O
Quilombo de Quintino ficou muito conhecido por aí afora. Os negros do Interior desciam a serra a pé e sabiam que, às margens do Rio Casqueiro,
havia canoas para transportá-los até as proximidades do sítio. O resto do trajeto era cumprido também a pé, à noite ou de madrugada, para não
levantar suspeitas.
Quintino de Lacerda morava na encosta do Monte Serrate, numa casa ampla, toda de tijolo e coberta de palha, onde
ninguém chegava sem a permissão dos negros que a guardavam. Sua primeira providência era garantir abrigo e alimento aos recém-chegados. Depois,
estes se integravam ao trabalho na terra, de onde se tirava o sustento para toda a quilombola. Para eles, ser livre não significava encostar o
corpo, e sim trabalhar, vigiar e poder continuar senhores de si.
E tantos negros se juntaram no Quilombo que ficou difícil empregar todos. Mas Quintino se recusava a mandá-los
para outro lugar, pois correriam o risco de serem recapturados e encaminhados para as fazendas de origem.
Quando aquele negro enorme, de olhar seguro, rosto largo e barba bem desenhada, já não sabia o que fazer,
conheceu um homem - sabe-se apenas que se chamava Joaquim - que pretendia arrendar terras para o cultivo de legumes e verduras. E firmou-se um
acordo, bom para os dois lados: Quintino cedeu as áreas que Joaquim precisava, e este deu trabalho aos negros. As verduras e legumes eram
comercializados no mercado central da época.
Devido à grande popularidade que alcançou, Quintino elegeu-se vereador em 1895. E, em reconhecimento à sua luta
pela liberdade, um grupo de pessoas entregou-lhe, em nome da comunidade santista, um relógio de ouro com a seguinte dedicatória: "Lei de 13 de
maio de 1888. Homenagem ao popular Quintino de Lacerda. Santos - 1888".
Um morro, um rio e muitas chácaras no bairro de ontem - E para que ninguém negue esse passado glorioso, o
próprio nome do bairro está de prova: jabá significa fujão e guára, paradeiro, abrigo, refúgio. Mas há quem diga que a denominação
foi tirada do pequeno rio que corria junto aos morros do Fontana, São Bento e Nova Cintra, atingindo a várzea vizinha e indo desaguar no mar,
entre Gonzaga e José Menino. Segundo essa versão, Jabaquara é corruptela de Yab-A-Qua-Ra, que quer dizer o buraquento, ou Ya-Baquara - o corredor,
o ligeiro. Em qualquer um dos casos, ficam explícitas características do antigo rio santista, canalizado e extinto com o saneamento.
Seu Arnaldo lutou por melhorias
Se existem
dúvidas quanto à origem do nome, um fato é certo: uma ponta do morro cruzava o bairro, estendendo-se até as proximidades do Morro do Lima. Para
quem não sabe, o Morro do Lima ficava em frente ao Estádio Ulrico Mursa, e aquele bloco de pedra que ainda resta lá, por trás de um muro, faz
parte dele. Nos tempos em que podia realmente ser chamado de morro, quantos não disputaram um lugar em suas encostas para assistir a partidas de
futebol na Portuguesa?
Quem se lembra bem dessas coisas é "seu" Antunes, que conheceu o Jabaquara de mais de 60 anos atrás. Seu pai,
Antônio Antunes, mudou-se para lá quando o bairro era praticamente desabitado e o mato ocupava vastas extensões de terra.
"Meu pai foi praticamente o fundador disso aqui", diz com certo orgulho "seu" Antunes, sem esconder a saudade
que sente da chácara onde morava e da infância saudável naquele reduto tranqüilo. Barulho que destoasse do normal só mesmo o das pedreiras e dos
pequenos trens que recolhiam as pedras. Pedras que saíam dali para ajudar a dar novas feições a uma cidade que insistia em crescer.
Enquanto Santos se modificava em outros cantos, o Jabaquara permanecia com suas imensas chácaras bem cuidadas,
onde verduras e legumes garantiam um espetáculo de beleza. Dava gosto ver como as alfaces, os tomates e ervilhas cresciam naquela terra fértil e
sob os cuidados de um bom conhecedor do assunto.
Leite bom, sem uma gotinha de água, também estava sempre à mão. "Seu" Januário, o italiano dono de estábulo,
cobrava um tostão por uma caneca de leite quentinho, tirado às vistas do interessado. Quem preferisse, podia dar uma chegadinha na vacaria de
"seu" Antônio, outro fornecedor insuspeito. Não era à toa que a molecada ostentava aquelas bonitas bochechas rosadas: comia do bom e do melhor e
vivia solta naquele mundo onde não havia lugar para a poluição.
Muitas festas, campos de várzea e a luta por melhorias - As casas eram todas de madeira, cada uma mais
bonita do que a outra. Luxo não faltava naqueles chalés com alpendres, sempre instalados em amplos quintais. Os moradores tinham muito zelo, mesmo
não sendo donos das terras: pagavam aluguel à família Marinangele, proprietária de tudo aquilo. Só as benfeitorias lhes pertenciam.
Segundo "seu" Antunes, a vizinhança mais parecia uma grande família. Quando alguém ficava doente, não faltava um
vizinho para preparar um chá com uma daquelas ervas cultivadas num canto do quintal. Alguns chegavam a matar galinha para preparar uma canja rala,
daquelas que toda mãe obriga o filho a comer quando adoece. Sabe como é: pouco sal e no máximo umas rodelas de tomate, para a carne da ave não
ficar muito esbranquiçada.
Na época das tradicionais festas brasileiras a alegria era sempre maior. Os olhos de "seu" Antunes ganham um
brilho especial quando relembra as festas juninas. Aliás, é comum antigos moradores de Santos confessarem a saudade que sentem dos imensos balões
que iluminavam o céu nas noites frias de junho. Sem dúvida, representavam a principal distração entre uma e outra tentativa de pular a fogueira.
Imaginem o que não significavam essas festas para a criançada, que nunca precisa de muito para se divertir. No
mais, bastava explorar aquele mundo à volta e esquecer-se da vida em meio aos capinzais de metro e meio de altura, tão comuns para aqueles lados.
Os que gostavam de futebol certamente se regalavam com as partidas disputadas no campo do Edú Chaves, clube que
tinha arquibancada e um gramado para ninguém botar defeito. O Hespanha (com h mesmo), hoje Jabaquara AC, nasceu no bairro e tinha seu campo
no vazio hoje ocupado pela Santa Casa. Sem contar o Santa Isabel, o Juventus e o chamado Jabaquara da várzea, o velho time sempre disposto a dar
vez à garotada.
À medida que o lugar crescia, chácaras e campos se subdividiam para dar lugar a novas moradias. A realidade a
ser enfrentada era aquela das valas de esgoto, das ruas sem asfalto. E as pedreiras, que não representavam muito problema para um bairro
desabitado, tornaram-se caso de polícia. A antiga Cia. Docas explorava uma pedreira ali para os fundos da Joaquim Távora e tinha vez de voar pedra
para tudo quanto era lado.
E se o Jabaquara conquistou melhorias ao longo do tempo, muito se deve ao esforço de seus moradores. Arnaldo de
Jesus ainda se lembra da luta que empreendeu com o vizinho Baraçal para que a Rua Joaquim Távora tivesse um pouco mais de atenção da Prefeitura.
Não suportavam mais andar com os tornozelos enfiados na lama ou se equilibrar sobre os trilhos dos bondes para evitar o lamaçal.
Tanto fizeram que a Prefeitura se comprometeu a construir um passeio, de um metro de largura, em um dos lados da
rua. Mas qual lado seria beneficiado? "Seu" Arnaldo morava no lado par e "seu" Baraçal no ímpar. Não tiveram dúvida: tiraram a sorte no cara ou
coroa. "Seu" Baraçal levou a melhor.
Condução, pelo menos, o pessoal tinha. Pela Avenida Rangel Pestana circulava o bonde 16, o famoso Lavageiro.
Dizem que o bonde tinha um mau cheiro insuportável, porque o pessoal do Morro da Nova Cintra (um dos acessos começa justo no final dessa avenida)
carregava lavagem para porcos nos reboques. Vai daí o apelido, nada lisonjeiro.
Quem morava para os lados da Joaquim Távora se servia do bonde 17, que seguia pela Bernardino de Campos até a
Rua João Caetano e, posteriormente, do 37. E saibam que o primeiro condutor do 37 mora no Jabaquara, para onde se mudou há 56 anos. José Alberto
da Costa Ramos foi condutor durante "35 anos, sete meses e sete dias", mas a memória falha quando ele tenta relembrar histórias dos bondes.
Comenta apenas que, depois que se aposentou, poucas vezes andou num daqueles veículos que fizeram parte do seu
dia-a-dia. Apontando as pernas enfraquecidas, diz: "Deu cupim, deu cupim".
Pessoas carregando objetos nas costas, uma cena comum
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