As dezenas de vielas, vilas e becos de Vila Belmiro garantem um ambiente que não se encontra
em qualquer outro lugar de Santos. Grandes avenidas cortam o bairro e o tornam semelhante a outros, onde o corre-corre faz parte da rotina.
Mas, caminhando sem destino por aquelas dezenas de ruas, é possível constatar a rotina
típica de pequenas cidades. E cenas que parecem ter desaparecido surgem para quem sabe apreciar a beleza de chalés com jardins, da descontraída
brincadeira de pega-pega ou de um ninho repleto de filhotes de passarinho.
Esses detalhes são suficientes para provar que há muito mais o que se apreciar na Vila
Belmiro do que o Estádio Urbano Caldeira, o Santos Futebol Clube e seus troféus. Por certo não se pode tirar os méritos do clube, porque afinal,
graças a ele, a Vila ficou conhecida no mundo inteiro. Mas, o Santos e as lembranças das jogadas geniais de Pelé representam apenas uma parcela da
vida e da história do bairro.
E quem se interessar em conhecer melhor seus sobradinhos geminados e poéticas vielas
deve estar atento, porque o bairro apresenta sinais de futuras grandes mudanças: enormes prédios estão sendo construídos e começa a
descaracterização de um estilo arquitetônico bem peculiar. Não demora muito e esses tais sobradinhos serão apenas lembrança do passado, como o são
o bonde 27, os campos de várzea e as chácaras.
No coração da famosa Vila fica o Estádio Urbano Caldeira, sede do Santos, orgulho da Cidade
Tangerina não parava uma no pé! A Maria do Pombal podia dar
corrida nos moleques, esbravejar e fazer ameaças. Nada adiantava, porque eles sempre voltavam. Esquivavam-se entre os pés de cana, fingiam que
estavam admirando o enorme pombal e quando menos se esperava atacavam os pés de tangerina, sem se importar com os espinhos. Depois, num canto
qualquer, até babavam ao saborear as frutas.
Eles recordam os velhos bons tempos...
São imagens na
memória de antigos moradores da Vila Belmiro, hoje avós respeitáveis que se divertem recordando os velhos tempos. De um assunto pulam para outro,
relembram um detalhe aqui outro ali e reconstituem um pouco da história do bairro. Uma história que não está dissociada das chácaras de japoneses,
dos imensos capinzais que ocupavam boa parte do bairro, dos brejos cheios de sapos e rãs.
Oswaldo Antônio Caixote lembra com saudades das brincadeiras com bolinhas de gude no meio da rua, a alegria de
segurar um pião rodando, na palma da mão, as peripécias para se pegar balões. Ah, os balões! Grandes, repletos de luzes, uma festa para os olhos
daqueles moleques que disparavam em busca deles, sem se importar com mais nada no mundo. Não raro se chocavam contra árvores, caíam em valas e se
quebravam inteiros. Tudo pelo prazer mágico de pegar e soltar um balão.
"Seu" Oswaldo teve uma infância dessas de fazer inveja a muita gente. Esquivava-se de ajudar o pai, dono do
Açougue Bonfim, para mergulhar nos montes de palha de arroz que firmas jogavam na Rua Princesa Isabel, ou pescar camarão no Canal 1. Isso mesmo,
dava camarão no Canal 1, em plena Vila Belmiro. Para pescá-los, nada mais fácil: bastava furar uma lata, amarrar um barbante bem direitinho e
mergulhá-la na água. Os camarões vinham vermelhinhos como eles só. A etapa seguinte já se pode imaginar: montar um fogareiro com dois tijolos e
carvão e deixar os bichinhos ficarem mais vermelhos ainda.
Na época, as pontes sobre os canais eram improvisadas pelos próprios moradores, porque pontes mesmo, feitas pelo
Poder Público, só muito tempo depois, quando o bairro viveria uma fase de expansão. Enquanto as melhorias não vinham, o jeito era amassar lama,
pular valas e cruzes! escapar de cobras e outros bichos.
E se tinha animais que não metiam medo eram as preás. Essas havia aos montes, no matagal que existia pelos lados
da famosa Ponte Vermelha, que continua sendo chamada assim, apesar de não ostentar mais essa cor. A molecada gostava de caçar preá por farra,
simples variação naquela vida de rua e brincadeiras.
Por falar em brincadeiras, a criançada só sossegava um pouco para assistir às sessões de cinema do Silvestre. Um
cineminha muito mambembe, mas não tinha quem não gostasse. Olhem só a idéia do Silvestre: recortava figuras de revistas, montava uma tela com um
lençol e, com a ajuda de uma vela, conseguia "projetar" imagens. Dava um efeito bem bonito e era a melhor opção quando os pequenos não conseguiam
dar uma escapadinha para assistir a filmes de verdade, nos cines Avenida e Campo Grande.
Eles recordam os velhos bons tempos: o bonde 27,
os campos de várzea, os matagais e as chácaras de japoneses
Os campos se extinguiram, o bonde 27 e os bailes com orquestra nos salões do Santos - Ai que um pai
daquela época pegasse um filho praticando algum abuso. Era pontapé, bofetada, puxão de orelha e tudo mais de fazer o moleque parar numa bacia de
água e sal. O Oswaldo levou muitas sovas dessas, tudo porque adorava futebol e sempre que podia dava uma fugidinha pra algum campo de várzea.
Também, que tentação! Campos de várzea não faltavam, entre eles o do São Paulo, Interrogação, 9 de Julho e Americana. O do Santos, a criançada
invadia com a maior facilidade em dias de jogos, porque as folhas de zinco não serviam de barreira para eles.
Dos campos de futebol da época, só o do Santos resistia ao crescimento da Cidade e do bairro. A Associação
Atlética Americana existe até hoje, mas há tempo não tem nada a ver com futebol ou Vila Belmiro. Flodoardo Antônio Ferreira Filho, tesoureiro há
mais de 50 anos, conta que o campo do Americana ficava junto ao do Santos, exatamente onde estão hoje as escolas estaduais Primo Ferreira e
Azevedo Júnior.
Eles recordam os velhos bons tempos...
Craques
como Dudu, Dão Meira, Motinha, Paco, Alfredinho e Verano brilharam no gramado do Fidalga, como era chamado o
Americana. O próprio Flodoardo foi um dos bons jogadores desse clube, fundado a 14 de abril de 1912 e hoje muito bem instalado na Rua Azevedo
Sodré com Jorge Tibiriçá, no Gonzaga.
Na década de 1950, a Prefeitura resolveu desapropriar o campo da Vila Belmiro. Queria a área para instalar
escolas, e o Americana acabou se transferindo para a Rua Floriano Peixoto, 93. Lá chegou a construir um estádio, mas houve erros de construção e o
Americana decidiu acabar de vez com futebol. Optou pelo ciclismo e já conquistou uns 10 ou 12 títulos na modalidade.
E se o Americana deixou muitas saudades na Vila Belmiro, que dizer do bonde 27? Quem fala dele com o maior
prazer do mundo são as irmãs Janete, Rosenda e Narcisa e a cunhada Margarida. No dizer de Janete, era o "bonde da alegria", porque só viajavam
nele pessoas conhecidas, ali do bairro mesmo, que aproveitavam o trajeto para conversar e pôr as novidades em dia. Na época de Natal e Ano Novo,
não tinha morador que não presenteasse motorneiro e condutor com um litro de vinho ou champanha.
E sabem o que aconteceu outro dia? Em pleno Baile da Saudade do Francisco Petrôneo, as irmãs depararam com
ninguém menos que o condutor Arthur. Veja só, depois de todos esses anos! Também, quem poderia esquecer o Arthur, um condutor tão bonitinho?
Se o bonde 27 traz boas recordações para Janete, Rosenda e Narcisa, que dizer dos tradicionais bailes do Santos?
As orquestras de Cabral Júnior e Aroldo Moura eram qualquer coisa de deixar os bailarinos flutuando. Quem não conseguia dançar ao som daqueles
instrumentos mágicos?
Mas qualquer um se satisfazia apenas ouvindo aquelas seleções de bolero que enchiam o salão de romantismo. Os
bailes eram tão cotados que as mocinhas faziam questão de vestir roupa nova a cada semana. Na época, a grande sensação estava em usar aquelas
saias imensas, tipo guarda-chuva, com vários saiotes para ficarem bem armadas. Entre uma música e outra, os flerts, que não raro terminavam
em casamento.
Muitas histórias com um casal de 81 anos e a resistência de um bangalô - As histórias da Vila Belmiro
parecem não ter fim. E quem quiser ouvir "causos" e mais "causos" basta conversar com o casal Caetano Rodriguez e Ludevina Perez Gonçalves
Rodriguez, 81 anos de idade e 55 de casados. Ele recorda as grandes valas nas ruas, as vacarias da Carvalho de Mendonça, o chafariz do curvão,
os burros que ficavam pastando onde é hoje a EMPG Olavo Bilac.
Ludevina ainda se lembra direitinho do trajeto do bonde 27, e Caetano "sai" da Vila Belmiro para reviver o
Centro de antigamente, os duros tempos em que se trabalhava 14 horas por noite no Café d'Oeste e ganhava apenas 70 mil réis por mês.
A casa onde foram morar quando casaram, na Rua Francisco Otaviano, já deu lugar a um prédio. Em compensação, o
bangalô da Avenida Pinheiro Machado, 379, de Félix Azevedo e Cecília Lourenço, um dos primeiros do bairro, ainda resiste. Testemunha fiel do
passado, não deixa que a história se resuma a relatos e escritos.
Eles recordam os velhos bons tempos: o bonde 27,
os campos de várzea, os matagais e as chácaras de japoneses
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