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História do porto de Santos 1
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No tempo dos trapiches
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Carlos Pimentel Mendes Editor
"Tristes tempos aqueles! De velhos pardieiros erigidos em trapiches alfandegados, tortuosas e alquebradas pontes de construção pré-histórica serpenteavam pelo lodaçal até penetrarem algumas braças nas águas turvas da baía. Sob o tremendo bochorno dos dias estivais, a pele suarenta e escaldante, enxameavam por eles turmas de homens brancos, que a sedução de um El Dorado para tantos enganoso atraíra de além-mar, de envolta com os negros filhos da raça escravizada da África, arquejando todos ao peso de carga de que iam aliviando o bojo dos navios e atestando os trapiches. Os barcos, cuja atracação se apresentava problemática por muito tempo ainda, descarregavam mesmo ao largo, sobre pontões – sorte de velhos cascos aposentados, onde as mercadorias, a troco de grossa armazenagem, jaziam até o dia em que o fisco, cobrando-se das respectivas taxas, permitia seu livre ingresso no território nacional”.
Como esse, outros velhos textos da imprensa santista registraram o contrabando fácil, a má fama do porto de Santos em fins do século passado, os mosquitos, o mau cheiro, a febre amarela e outras doenças facilmente contraídas, e que matavam inúmeras pessoas a cada dia.
Praia do
Consulado em 1882. Tela de Benedito Calixto
Porto modesto até meados do século XIX, e que tinha no açúcar a base principal da sua movimentação, a partir de então começou a enfrentar os problemas resultantes de um número cada vez maior de barcos que o procuravam, em virtude da riqueza cafeeira estar tomando conta das antigas áreas canavieiras, e da criação em 1867 da São Paulo Railway, ligando as zonas produtoras e a capital paulista ao litoral.
O relato dos historiadores permite reconstituir a feição da vila de
Santos na época, trabalho aliás facilitado pela existência de inúmeras pinturas e bicos-de-pena, principalmente do pintor Benedito Calixto.
Naquela época, junto ao estuário, acompanhando a linha da preamar, alguns sobrados serviam simultaneamente de escritório e de armazém para os comerciantes; com as marés, as margens lodosas do estuário apareciam e desapareciam; troncos de árvores permaneciam amontoados à beira d’água, para uso na armação de trapiches, que facilitavam a movimentação de cargas dos navios, já que não havia condições para que os navios se aproximassem de terra sem o risco de encalhe.
Santos em 1865, uma das mais antigas fotos da cidade, em foto de Militão Augusto de Azevedo (albúmen com 18,0 x 24,0 cm – Coleção Beatriz Pimenta Camargo) Imagem reproduzida no livro Santos e seus Arrabaldes - Álbum de Militão Augusto de Azevedo, de Gino Caldatto Barbosa (org.), Magma Editora Cultural, São Paulo/SP, 2004
Um texto de 1866 assim descrevia o porto santista: “É ele uma bacia natural que se comunica com a baía denominada de Santos por um canal profundo e relativamente estreito. As ondulações do mar, mesmo nos maiores temporais, não se podem propagar até o porto e os altos morros que o cercam de todos os lados não permitem que os ventos possam levantar maretas que impeçam a carga e descarga dos navios. As marés fazem-se sentir com toda a regularidade no porto, porém a sua correnteza que não excede 2.160 m, ou pouco mais de uma milha por hora, não pode pôr em risco aos navios que se acharem amarrados no cais ou estacionados no ancoradouro”.
Na mesma época se afirmava: “Sendo de urgente necessidade proceder a construção das obras de melhoramento de que carece o litoral da cidade de Santos a fim de facilitar o crescente movimento de seu importante comércio marítimo de importação e exportação”. No entanto, o início das obras de construção do mesmo só ocorreu efetivamente em 1888...
Outros comentários de época: “Santos infelizmente é um porto condenado: a febre amarela – esse phantasma cruel e desolador victimando milhares de infelizes todos os anos, de tal modo tem-se desenvolvido que até o presente não desapareceu um só dia, dando a cada hora horríveis signaes da sua presença. Sabem todos os estragos que actualmente ela vai causando, e basta referir que há navios que perderam totalmente as suas tripulações.”
As embarcações de alto mar ficavam a mais de 100 metros de distância dos locais onde eram depositadas as mercadorias e ligadas aos velhos trapiches por pontes de madeira, por onde transitavam os escravos e outros trabalhadores do porto, transportando nas costas a maioria das espécies de carga, além das já centenas e milhares de sacas de café descidas do planalto, anualmente.
Porto de Santos próximo à Alfândega, em foto de Militão Augusto de Azevedo (albúmen com 10,8 x 17,0 cm, Acervo Instituto Moreira Salles) Imagem reproduzida no livro Santos e seus Arrabaldes - Álbum de Militão Augusto de Azevedo, de Gino Caldatto Barbosa (org.), Magma Editora Cultural, São Paulo/SP, 2004
Logo perceberam os administradores da província as queixas dos negociantes sobre a precariedade das condições do porto, que, como os demais do país, não fora ainda organizado. As mercadorias se amontoavam às margens do estuário, da praça da Alfândega ao Valongo, em pátios de terra, improvisados e exíguos, sofrendo as conseqüências de permanecerem ao relento, particularmente nos meses de verão, quando as chuvas aumentavam.
Além do mais, as próprias autoridades sentiam-se impotentes para garantir aos proprietários as mercadorias desembarcadas, dado a uma verdadeira indústria de rapinagem que se organizava em Santos, ao sentido de se apoderarem de partes do que era desembarcado nas praias do estuário, ou mesmo para a cobrança das tarifas alfandegárias, em virtude do caos em que ficavam as cargas de exportação e de importação. Dentre as queixas que se faziam às autoridades da Corte e da Província, continuadas depois, já na República, transcrevemos duas, bem características, e divulgadas no próprio ano da inauguração dos primeiros 260 metros de cais. A primeira partiu de um grupo de comerciantes e industriais de São Paulo:
“O porto de Santos, o único porto deste estado francamente aberto à navegação de longo curso, acha-se no mais deplorável estado. Sem cais e sem meios de descargas, assolado pela febre amarela e pela varíola, com uma alfândega desmantelada, que não possui um guindaste, que não possui armazéns para receber e acondicionar as mercadorias, que não possui o pessoal suficiente para as conferir e despachar com a indispensável presteza, que não possui até os mais necessários utensílios, tendo a sua baía coalhada de navios que esperam longos meses que lhe chegue a vez de descarregar, tendo as ruas e praças da cidade atulhadas de mercadorias de toda a espécie, expostas ao tempo e à rapinagem, vendo morrer diariamente a tripulação dos navios em estadia,
dizimada pela febre amarela, tal é o triste espetáculo que hoje oferecem o porto e a cidade de Santos aos olhos do mundo”.
A segunda, da Associação Comercial de Santos: “Verdadeira anarquia reina em quase todos os serviços de Santos: os armazéns da alfândega, as pontes, os armazéns particulares, as praças e ruas públicas, acham-se empilhadas de mercadorias, a maior parte sujeita às intempéries e ao roubo.
“A gatunagem tem tomado súbito impulso: quadrilhas para tal fim organizadas dão caça às mercadorias assim abandonadas e a polícia sente-se impotente para dominar essa nova indústria, porque nem de força pública dispõe”.
Cais do
Valongo, no início do século XX
Em trabalho comemorativo aos 80 anos da então Companhia Docas de Santos, em 1972, o jornalista e historiador Rubens Rodrigues dos Santos lembrava uma notícia da época da fundação da CDS: “É impossível que o comércio do exterior teime em servir-se do porto de Santos: e nós sabemos que muitas companhias já proibiram que suas embarcações demandem tão infeccionada cidade. Até o próprio governo, reconhecendo o perigo, consentiu que a linha do Lloyd desviasse os seus paquetes dos mares santistas. Ora, se o nosso governo assim procede, o que os estrangeiros não farão? Que fazer? Melhorar as condições higiênicas de Santos”.
“Não se imaginava, então, que Oswaldo Cruz conseguiria sanear a cidade, como não se avaliavam também os imensos benefícios que as obras posteriormente realizadas pela Companhia Docas de Santos trariam à população local. Transformar as margens lodosas e pestilentas do estuário em faixa de cais foi o mesmo – no dizer de Saturnino de Brito (engenheiro que projetou o sistema de drenagem por canais em Santos, entre outras obras) – que 'envolver a cidade por um cinturão sanitário'”, completou Rubens. |