Que estranho motivo leva os moradores do Marapé a amarem tanto o seu bairro,
perguntaria alguém ao constatar o bairrismo da população. Mas o motivo não é tão estranho assim. Há muito o que ver, desvendar e aprender no
Marapé. Antigos moradores estão nos portões e esquinas, dispostos a
reviver a história e reconstituir um passado que se perdeu. Sob a sombra que os prédios projetam em seus quintais, relembram a época em que
chácaras de japoneses, capinzais e campos de várzea dominavam a paisagem. E, evidentemente, jamais esquecem do "glorioso" Bloco Dengosas do Marapé.
E o bonde 37? Ah, esse ganhou até música. E ninguém melhor para falar sobre bondes do
que Romão Torres Toledo, o Cubano, que foi motorneiro durante 32 anos. Só vendo os velhinhos contarem os causos, sempre acompanhados
de gestos e expressões! O ar de satisfação desaparece apenas quando recordam a tragédia de 1956: o Morro do Marapé desabou e dezenas de pessoas
morreram.
Ninguém se conforma também com a ameaça de expulsão que pesa sobre mais de 200 famílias
de um núcleo encravado entre as ruas Carvalho de Mendonça e Heitor Penteado. São posseiros temerosos, mas dispostos a provar que têm direito à
terra.
Talvez não haja em Santos um bairro mais amado por seus moradores do que o Marapé.
Moradores que se orgulham de seu passado, suas tradições, seu folclore, enfim, sua história. As manifestações de carinho surgem por meio de
palavras ou se concretizam em olhares e gestos. Os times de várzea e seus grandes jogadores, os tocadores de seresta, a misteriosa Cruz de Pedra,
a Igreja de São Judas Tadeu, tudo é motivo de orgulho. No domingo, se comemora o Dia do Marapé. A data não pode passar em branco, e as faixas
anunciando o acontecimento estão espalhadas por todos os lados.
É hora de esquecer que a Companhia Imobiliária Atlântica ameaça expulsar posseiros e
que o surgimento de prédios representa os primeiros sintomas de mudanças nos hábitos da população.
O bairro guarda na memória as chácaras de japoneses e o bonde 37, hoje tema de música
E lá vinham os operários cantando no reboque: "O 37
balança/O 37 balança/O 37 balança, mas eu não vou a pé; O 37 balança/O 37 balança/E balançando eu vou pro Marapé".
Não dá para dissociar o passado do Marapé do tradicional bonde 37. E nem das chácaras dos japoneses, dos
capinzais, dos campos de várzea e goiabeiras.
Foi um bairro assim, praticamente inabitado, que Lucas Gonçalves Peres conheceu em 1913. Para construir seu
chalé, um dos primeiros da área, a família teve que carregar madeira nas costas, em meio a carreirinhos, porque nem ruas havia. O sossego era
tanto que dava até para dormir do lado de fora, nos dias de calor. Ninguém para assaltar ou mesmo perturbar.
Em compensação, não tinha condução e "seu" Lucas perdeu as contas das vezes que foi trabalhar a pé. Os bondes
puxados a burro chegariam ao bairro muito tempo depois. E atentem para o detalhe: quando se chegava no final da linha, o bonde propriamente dito
não virava, apenas os cavalos eram trocados de lugar. Os passageiros, por sua vez, tratavam de virar os bancos, de modo a ficar na posição
tradicional, de frente para o trajeto a ser cumprido.
Depois das 22 horas, não se via mais ninguém pelas ruas. As cavalarias faziam rondas, revistavam todos que
encontravam depois desse horário e acompanhavam até a porta de casa, para ter certeza de que a pessoa não dera um endereço falso. E "seu" Lucas,
87 anos de idade, não resiste à vontade de fazer uma comparação com os tempos atuais: "Se eles vissem coisas que se vê hoje, morreriam de susto.
Seria um Deus nos acuda".
Ele segue contando, se empolga e pede licença da palavra sempre que se refere a vacarias e estábulos. E sabe o
que mais? Foi um dos que chegou a pegar lagosta e camarão no canal. Isso mesmo, no canal, com a ajuda de um pneu velho.
O que não faltava no Marapé eram rãs, ali era conhecido como Vila Sapo. Joaquim de Oliveira, o Sabiá,
cobrava três mil réis por uma dúzia de rãs e não esquece quando uma negra lhe pediu que arrumasse um sapo vivo. Ficou desconfiado e até hoje
repele a idéia com uma frase: "Tá louco!"
Época de São João, os moradores faziam balões para ninguém botar defeito. No carnaval, varavam noites na folia,
não se importavam com a chuva e até esqueciam de comer.
E o primeiro alambique do Marapé, logo ali na subida do morro? Quem se lembra bem é Abílio de Almeida Filho,
morador há 62 anos. Quantas vezes não carregou capim para as vacas, cumprindo a condição imposta pelo proprietário para ganhar um copo de caldo de
cana. Quer dizer, não era bem um copo, porque a molecada podia beber caldo à vontade. A tarefa era só um jeito de manter o respeito.
Antigos moradores relembram o passado e trazem de volta velhos fatos e
tradições
Campos de várzea e bons jogadores no bairro de antigamente - A boa memória de João Augusto nos ajuda a
desvendar muito do Marapé que conheceu nas primeiras décadas do século. Onde hoje está o Grupo Escolar Olavo Bilac ficava o campo do Edu Chaves
Futebol Clube, agremiação que revelou craques como Nandinho, Augusto, Gabira e Henrique. Seguindo pela Avenida Pinheiro Machado, lado ímpar, se
deparava com a venda de "seu" Gabriel, com um chafariz na frente, à disposição de quem não tinha água encanada.
Nessa altura, mas do outro lado do canal, havia o Campo do Cereja, onde jogaram Galdino e Adão Camargo, pai de
Joel Camargo, ex-jogador do Santos e campeão mundial em 1970. E, passando a Evaristo da Veiga, outro campo: o do São Paulo. E como Justino,
Deco, Caramelo Juquiá, Valente e Bolacha faziam a torcida vibrar! Tanto quanto os craques do Sul América, conhecido como
Príncipe Varzeano. Envergaram a camisa verde e branco nada menos que Peneco e Otávio (Portuguesa), Edmundo e Mateus (Espanha) e Edgard (Atlas
Flamengo). Quando a turma não estava assistindo aos treinos do time, se reunia nos fundos, no bar e venda do Monteiro, para ouvir transmissões de
jogos pelo rádio, o único das imediações...
A Rua 9 de Julho sediava o Clube Varzeano Interrogação, que durante muitos anos foi presidido por Nilo Silva,
caixa da Associação Predial de Santos. E o Clube Atlético Madrid também era do Marapé, só que seu campo ficava na Praça Olímpio Lima, na Vila
Belmiro. Entre os bons jogadores, pode-se citar Veloso, Dvaldo Costa, Oliveira, Guilherme e Rico.
Um caminho estreito, para os lados da sapataria do "seu" Abílio, levava a mais um campinho de futebol, onde
jogavam craques como Chico Forquilha, Ricardo, Luiz Bonito, João Bacalhoca, Albino, Pinga, Aurélio, os irmãos Dodô
e Juca Limeres, Durvalino e João Augusto. Torcedora só tinha uma: a balzaquiana Adelaide.
Isso sem falar no Santópolis, clube que deixou muita saudade. O então diretor de esportes, José Limeres, não
consegue esconder o orgulho quando fala sobre a festa que o Santópolis preparou para recepcionar o Aurélio, expedicionário recém-chegado da
Itália. Um balão enorme, muitos fogos e um baile que varou a noite. Até hoje o Marapé se orgulha do Aurélio e de outro expedicionário, Waldemar
Neves da Guerra, que são considerados filhos ilustres.
Antigos moradores relembram o passado e trazem de volta velhos fatos e tradições
Das
vendas e valentões aos grupos de chorões, seresteiros e cantores - Espanhóis, japoneses, portugueses e até alguns nortistas conviviam
pacificamente no Marapé de outros tempos. João Augusto, que não perdia oportunidades de conhecer todos os recantos do bairro onde morava, ainda se
lembra da chamada Vila Souza, na Pinheiro Machado com Carvalho de Mendonça, e dos comerciantes Kasu, Augusto Tamanqueiro, Antônio e dos
donos do Bar e Café Paraíso.
Vendas não faltavam: tinha a do Zé Miséria e a do subdelegado Coimbra, a do Magalhães, e a dos Parada, ao
lado do campo de malha do EC Sete de Setembro. Sem contar o Empório do João Russso, perto da Ponte Vermelha, e o Empório do Martins. E a famosa
Casa Braga? A construção, uma novidade: era de cimento armado.
A portuguesa Maria, com seu tabuleiro sempre cheio de verduras; o açougue do pai do Carlos, Toninho e Neco;
a loja do pai do Tufy, o campo de malha do Internacional; o EC de Malha Serrano, campeão santista várias vezes; e o Eleutério Santana, 7º colocado
na São Silvestre de 1931, deixaram muita saudade.
Bons tempos aqueles em que os trilhos do bonde ficavam sobre um areião, o que facilitava os moleques fugirem sem
pagar: nunca se machucavam em caso de quedas. E mais: como não havia bancas de jornais, o jornaleiro deixava uma pilha de A Tribuna (não
havia outro periódico santista) em frente ao muro do Bar Paraíso. Na volta, encontrava o dinheiro certinho, sem que ninguém alterasse o troco ou
levasse jornal a mais. Como diz João Augusto, "isso é que era honestidade".
O Marapé não tinha "valentões profissionais", mas um punhado de homens que não levavam desaforo para casa. Só
para citar alguns: Augusto Português, Agostinho Preto, Fumaça, Marapé, Maneco Louco e Lulu. Argentino,
Azedo e Arnaldo? Esses tinham outra especialidade: viviam enganando incautos com o jogo das duas chapinhas e uma bolinha. Tem um outro que
ficou famoso não propriamente por suas qualidades. Quem não se lembra do Batatão, o Homem da Capa Preta, que tinha a mania de perseguir e
assustar crianças? Seu fim não poderia ser mais trágico: foi morto pela esposa, com uma machadada na cabeça, enquanto dormia.
Há quem prefira relembrar outras histórias do Marapé. Foi lá que nasceu o Choro dos Aborrecidos, um dos maiores
conjuntos musicais de Santos. Sem falar nos portugueses que se reuniam na casa do Avelino, em bares, clubes ou mesmo nas esquinas, para tocar
fados e viras. O conjunto era formado por Adão (solo de violão), Avelino, Alberto Cunha, Gonçalves (cantor), Modesto, Teixeira (cavaquinho),
Canhoto (violão), Maneco (bandolim) e mais tarde Lili (violão). E a lista de seresteiros fica mais extensa se forem citados o
Joca (cavaquinho), Juca Alves (violão), Pedro (pandeiro), Duduca (saxofone) e Jumba (cuíca). E quem se esquece do cantor Manoel
Reis e dos compositores Sininho e Bastião?
As chuvas de março arrastam consigo mais de 40 chalés - Os instrumentos musicais se calaram e não houve
cantoria nas esquinas no dia 1º de março de 1956. Às 14h30 começou um forte temporal e, horas depois, o Morro do Marapé desaba sobre mais de 40
chalés das ruas do Contorno, Godofredo Fraga e Tarquínio Silva, destruindo-os totalmente. Até hoje não se sabe ao certo o número de mortos, mas
alguns dados servem para avaliar a extensão da tragédia: o Brasil Futebol Clube perdeu quase todos os seus jogadores, pois moravam no morro, no
trecho compreendido entre as ruas Carvalho de Mendonça e Napoleão Laureano.
O drama das famílias inspirou Miguel Ângelo e Oswaldo Cruz a fazerem um sambinha, Adeus Marapé, onde
apontam o impasse dos que vivem no morro, sabem do perigo, mas não têm outro lugar para morar. A música foi sucesso na voz de Luís Américo, filho
do bairro, e diz em um de seus trechos: "...eu saí para trabalhar/Não sabendo na volta, o que ia encontrar/O barraco que estava lá em cima/Veio
parar aqui no chão/E no meio dos destroços, eu vi o paletó do Bastião/Adeus, Marapé/Adeus, Marapé/Que levou meu filho e também minha
mulher".
Moradores afixam faixas em frente às residências, numa clara demonstração de carinho
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