Torre maior da Bolsa do Café, defronte à Praça Azevedo
Júnior e ao porto
Aspectos da arquitetura de Santos no Ciclo do Café
Fábio Serrano (*)
A cidade de Santos deve sua estrutura urbana e acervo
construído fundamentalmente ao ciclo do café. Mas a compreensão do processo de formação da cidade nesse período e o deslindamento de suas causas
ainda estão para ser pesquisados em profundidade. Muitas perguntas, algumas mais simples e outras mais complexas ainda não tiveram suas respostas
colocadas no papel. Qual é a herança urbana e arquitetônica do café? Quais as razões e origens das soluções estéticas, tecnológicas e funcionais
adotadas? O exame de alguns exemplares que resistem à dinâmica transformadora da cidade permite esclarecer diversos aspectos dessa arquitetura.
É ilusão procurar uma expressão arquitetônica homogênea durante o ciclo em que predominou
como atividade econômica em nosso país a produção e a exportação do café. As transformações sociais ocorridas no mundo e a revolução industrial
aceleraram de tal forma a sucessão dos fenômenos econômicos, políticos e culturais que a produção da arquitetura nesse período se transformou a
partir das expressões mais tradicionais da arquitetura colonial até o que se convencionou denominar arquitetura moderna. Para ressaltar essa faceta
de diversidade, o apogeu do ciclo do café corresponde ao período da história da arquitetura denominado ecletismo, em que justamente a variedade de
soluções é a característica predominante.
O café começou a aparecer como produto exportado pelo porto
de Santos na segunda década do século XIX e é até hoje um importante item da pauta de exportação brasileira. Entretanto, a predominância que
justificou a caracterização de um ciclo desse produto se verificou a partir do início da terceira década do século passado
(N.E.: século XIX) e somente veio perder essa posição provisoriamente durante a Segunda Guerra
Mundial e definitivamente após o golpe de 1964.
Mas, em termos políticos, as classes dominantes ligadas à produção e exportação de café
foram alijadas do poder pelo golpe de 1930, enfraquecidas economicamente pela quebra da Bolsa de Nova York que fez as cotações do café
perderem 60% do valor. Dessa forma pode-se considerar que o ciclo do café no Brasil corresponde de uma maneira genérica
aos períodos políticos conhecidos como Segundo Reinado e Primeira República, mas com reflexos econômicos e expressivos que se estendem até o início
da década de 60 deste século (N.E.: século XX), quando perdeu a posição para produtos
manufaturados e semimanufaturados.
Santos havia sido reanimada na segunda metade do século XVIII pelo segundo ciclo do
açúcar, cujas atividades haviam trazido riquezas que se traduziram em novas construções, assim como na melhoria das já
existentes, da infra-estrutura urbana e das ligações com o Planalto. A arquitetura praticada até então se filiava às
tradições construtivas coloniais renovadas pelo barroco pombalino e, com a vinda da família real, liberadas de elementos considerados arcaicos, como
os muxarabis. As paredes se levantavam em alvenaria de pedras brutas, abundantes nos morros da Ilha de São Vicente, assentadas com argamassa de
saibro e óleo de baleia, revestidas e caiadas. As aberturas tinham umbrais e vergas de madeira, estas com desenho em arco abatido. Os telhados com
duas águas para a rua e para o fundo do lote eram visíveis nos beirais com cimalhas trabalhadas. As casas térreas ou assobradadas não tinham porão,
postavam-se sobre o alinhamento e encostavam-se às vizinhas, resultando desse partido cômodos intermediários sem iluminação e ventilação. Não havia
instalações hidráulicas.
No ciclo do café, novos padrões de arquitetura se manifestaram dentro do que se conhece como
período neoclássico. Na Europa e na América do Norte, o neoclassicismo surgira em meados do século XVIII, conhecido como século das luzes,
caracterizado pela valorização da razão, pelo abandono de preconceitos, pelo respeito à liberdade de pensar e pela crença no progresso das
atividades humanas. A Revolução Industrial trouxe renovação tecnológica e, em termos políticos, a Revolução Francesa e a Independência Americana. Se
o Rococó já prenunciava a queda da monarquia absolutista e da nobreza decadente, o neoclássico foi o estilo da burguesia revolucionária que lutava
pelos direitos humanos e pela democracia política. Para isso, foi buscar na Grécia Antiga, berço da idéia da democracia, a linguagem de uma
arquitetura para a nova sociedade.
Paralelamente, a afirmação de valores nacionais fez ressurgir o gótico na linha de um
historicismo ainda romântico. Também as conquistas coloniais, principalmente inglesas e francesas, trouxeram a importação de estilos exóticos como o
chinês, o indiano e o egípcio. Foram características da arquitetura neoclássica uma vontade de ruptura e o desrespeito às normas dos mestres do
passado. O projeto neoclássico buscou uma independência dos elementos frente ao todo, um racionalismo radical, a geometrização e o desejo de
transformar a arquitetura em ciência exata. Expressou a preocupação funcionalista. Foi nesse período que se deu a separação da engenharia e da
arquitetura com a criação, pela Convenção Revolucionária, da Escola Politécnica de Paris, em 1784.
No Brasil, o neoclássico surgiu ainda no século XVIII com Landi no Pará mas ganhou força com
a vinda da Missão Francesa que, entre outros artistas, trouxe o arquiteto Grandjean de Montigny, iniciador do ensino regular de arquitetura na
Escola de Belas Artes criada por D. João VI no Rio de Janeiro. O neoclássico fundiu-se com a tradição colonial, surgindo uma arquitetura peculiar
nas cidades brasileiras. São seus elementos mais característicos as platibandas escondendo os telhados, portas e janelas com vergas em arco pleno e,
em muitos casos, frontões triangulares no eixo central das fachadas. Assim como foi adotado por Napoleão, deixando de ser a estética da democracia
burguesa para abrigar o expansionismo imperialista francês, no Brasil foi adotado como o estilo do império por suas qualidades de grandeza e
austeridade que serviam a um governo constitucional e parlamentarista, embora conservador, escravista e preso a um modelo agro-exportador dependente
do capitalismo inglês.
Em Santos, o principal conjunto neoclássico está situado no bairro do
Valongo, porque ali se instalou o terminal ferroviário em 1867. Como o cais do porto só foi construído 25 anos depois, as mercadorias a serem
exportadas eram descarregadas no local e transportadas em carroças para os trapiches dispostos
ao longo da "praia". A Estação Ferroviária então inaugurada não tinha as características atuais, mas apenas dois
antecorpos e não três como atualmente, nem a cobertura à inglesa nem o corpo elevado central com o relógio.
A construção da estação estabeleceu o modelo de desenvolvimento urbano a ser adotado no
ciclo do café em Santos: a substituição ou a transformação dos elementos constitutivos da estrutura urbana existente, ou seja, a construção de uma
nova cidade sobre a existente, o que implicou na destruição quase total da cidade colonial - ao contrário, por exemplo, da opção feita anos mais
tarde pelos mineiros, cuja nova capital preservou a Ouro Preto colonial.
A construção da Estação provocou o primeiro movimento preservacionista de Santos, porque
implicava na demolição do conjunto do Convento e Igreja de Santo Antônio do Valongo, vendido à ferrovia pelo superior
franciscano. A Ordem Terceira só conseguiu salvar a Igreja através da intervenção de forças sobrenaturais e do Imperador. O
convento foi demolido. É curioso observar que nesse embate inicial confrontaram-se as duas visões do mundo mais antagônicas
da época, a pobreza franciscana contra o capitalismo internacional inglês.
Nas proximidades da Estação, o português Manoel Joaquim Ferreira Netto ergueu na
Rua do Comércio um grande sobrado para sua casa comercial no térreo e residência no pavimento
superior. Na fachada simétrica, um frontão triangular encimando o corpo central domina a composição. Vergas em arco pleno e umbrais em pedra lavrada
se destacam nas paredes revestidas com azulejos coloridos esmaltados em relevo.
Casa da Frontaria Azulejada, de Manoel J. Ferreira Netto, no início do século XX
Foto: Poliantéia Santista, 1986/1996, Editora Caudex, São Vicente/SP
O mesmo empresário construiu no Largo Marquês de Monte Alegre, em
frente à Estação Ferroviária, um edifício comercial de grande porte. Ocupa uma quadra inteira, com dois blocos laterais com
três pavimentos e um bloco central de união com um pavimento. Aberturas em arco pleno, platibanda, cimalhas com friso azulejado, guarda-corpos em
grades de ferro no segundo e terceiro pavimentos, ressaltam as características neoclássicas do edifício.
A falta de elementos dominantes em qualquer dos eixos de simetria e a implantação com frente
para quatro ruas com inúmeras entradas e janelas atendeu à função de abrigo de inúmeras atividades distintas em setores locados independentemente.
Mas resultou um conjunto binário indiferenciado que chega a causar inquietação ao observador pela ausência de referências em relação aos acessos e
usos internos. Certamente não se adequava ao abrigo do Poder Público Municipal que ali se instalou de 1895 a 1939.
Uma observação interessante em relação ao estilo desses dois edifícios é o contraste
estabelecido com o túmulo do seu proprietário, um dos maiores do Cemitério do Paquetá, na quadra da Ordem Terceira do Carmo.
Foi erigido em estilo gótico, em mármore primorosamente esculpido.
O edifício precursor do neoclassicismo em Santos é a Casa de Câmara e Cadeia na
Praça dos Andradas, que junto com o Teatro Guarany e o sobrado na esquina fronteira da Rua Amador
Bueno constituem um importante conjunto arquitetônico.
Teatro Guarany e o sobrado na esquina fronteira da Rua Amador Bueno, cerca de 1990
Foto publicada com o texto
A Câmara, cujo projeto é de 1836, só foi concluída por escassez de verbas em 1860, graças ao
café. Tem sido classificada como colonial, mas, na verdade, é um exemplar do Império e tem muito das características do neoclassicismo, como os
cunhais, pilastras, embasamento e cornija em pedra lavrada, embora ainda ligado à tradição, como indicam, por exemplo, as vergas das aberturas em
arco abatido.
É interessante comparar sua semelhança com os modelos sugeridos por J.N.L. Durant, em seu
livro Précis des leçons d'architecture données à l'École Polytechnique, publicado em 1802, onde defende a preocupação com a economia na obra
pública. Esse edifício estaria filiado à filosofia de construção de obras públicas da Escola Politécnica, que derivava das escolas de engenharia
militar, diferenciando-se portanto da tradição das escolas de belas artes à qual pertencia Grandjean de Montigny. Muitas de suas características de
obra do século XIX, como ornamentos sobre as vergas e as esquadrias em vidro das fachadas com os caixilhos desenhados foram retirados na restauração
realizada na década de 60, que procurou dar-lhe um aspecto colonial que nunca teve.
O Teatro Guarany foi construído, em 1882, na antiga tradição neoclássica do Teatro S. Carlos
de Lisboa de 1792 e do Teatro São João do Rio de Janeiro de 1810. Sua austera fachada apresentava um frontão no corpo central da fachada subtraído
na reforma do início deste século (N.E.: século XX) que modificou a fachada para um
desenho eclético. O sobrado do outro lado da Rua Amador Bueno na esquina com a Praça dos Andradas é dos mais importantes do estilo em Santos, com a
série de aberturas em arco pleno.
Ainda no Bairro do Valongo encontramos diversos sobrados e armazéns que preservam sua
fachada neoclássica, em especial nas ruas José Ricardo, Gonçalves Dias e Conde d'Eu. São comuns a todos as aberturas em
arco pleno, os umbrais e vergas em granito, as cornijas e platibandas, paredes em alvenaria de pedra e revestimento com argamassa de cal, podendo
ser pintados ou revestidos com azulejos.
Um exemplar de 1884 que desperta interesse é a casa do médico italiano João Éboli. Sua
construção sobre a rocha que restou da demolição do Outeiro de Santa Catarina, local onde se originou a cidade, inspirou
ao proprietário a solução romântica de uma casa acastelada com ameias e merlões na platibanda e aberturas com arcos góticos. É de se notar também
que o gótico tem exemplares em edifícios destinados ao setor da saúde, como o demolido hospital da Beneficência Portuguesa,
no Paquetá, e o da Santa Casa em São Paulo.
Edifício do banco italiano na Rua XV de Novembro, depois sede da Construtora Fenix
Foto: cartão postal do início do século XX
A
expansão do cultivo do café pelo Estado de São Paulo se deu em grande parte através da introdução de mão-de-obra imigrante. À Inglaterra interessava
liquidar a escravidão para ampliar os mercados consumidores de seus produtos manufaturados. O Império, enfraquecido pelo descontentamento dos
militares, da Igreja e dos setores urbanos, caiu com a abolição da escravatura ao perder o apoio dos cafeicultores fluminenses e do vale do Paraíba.
O neoclássico passou a ser identificado como a expressão formal do regime arcaico deposto.
Com a República, diversos aspectos sociais, econômicos e culturais promoveram transformações na
arquitetura. A Inglaterra perdeu sua posição privilegiada de fornecedora de materiais manufaturados, sofrendo a concorrência de outros países
europeus, em especial Alemanha, França e Bélgica. Essa situação está registrada na arquitetura de alguns edifícios, como o banco francês da
Praça Mauá, fazendo frente também para a Rua XV de Novembro, um projeto erudito com uma bela serliana e diversos
elementos decorativos simbólicos, como o escudo da Republique Française, o busto de Mercúrio, cornucópias, frontão, tudo com forte inspiração
palladiana. Na Rua XV, esquina com Rua D. Pedro, outro edifício, construído por banco italiano, ostenta uma fachada cujo desenho remonta às
tradições renascentistas florentinas. A Ponte Pênsil, em São Vicente, construída para
sustentar os dutos para descarga da rede de esgotos de Santos na ponta de Itaipu, é obra da indústria alemã.
Na Praça Mauá, a sede do Banco Sudameris do Brasil guarda, na sua fachada restaurada,
elementos da influência francesa na arquitetura eclética em Santos
Foto publicada com o texto
A Igreja, separada do Estado, passou a buscar sua identidade própria. Isso ficou expresso na
construção da nova catedral inaugurada em 1924 segundo projeto do arquiteto Maximiliano Hehl, que também projetou o
Quartel do Corpo de Bombeiros, mas com linguagem clássica. A catedral, na Praça José Bonifácio, circundada por ruas por todos os lados, seguiu o
estilo neogótico, retomando a linguagem medieval, período de predomínio da Igreja no Ocidente. A planta em cruz latina forma um octógono central
coroado por uma cúpula com oito lados e seção formando arco em ponta como a de Brunelleschi em Florença, mas revestida com chapas metálicas. A
reduzida extensão das naves faz predominar o espaço octogonal sob a cúpula. A cúpula e o espaço interno centralizado contraditoriamente acrescentam
à linguagem neogótica um caráter volumétrico e espacial renascentista.
Duas torres e uma galilé com três arcos góticos avançam além da fachada da nave principal.
As duas torres têm desenho e altura diferenciadas. A da esquina da Rua Amador Bueno é mais alta, com planta quadrada, posicionada a quarenta e cinco
graus com cobertura piramidal de base octogonal acompanhada por agulhas nos quatro cantos. A outra, mais baixa, tem planta octogonal e cobertura
piramidal. A posição das torres e as naves curtas provocam o tumulto no posicionamento dos arcobotantes.
É interessante comparar a solução da Catedral com a da Basílica de
Santo Antônio do Embaré, da década de 30, projetada pelo mesmo arquiteto e tão semelhante na sua volumetria tranqüila às catedrais francesas. O
que teria levado o arquiteto a duas soluções tão distintas? Exigências dos clientes, por ser uma para o clero secular e outra para o regular? Não é
provável, pois a liturgia era a mesma. O espírito da época não seria, pois são quase contemporâneas. Parece mais provável que o arquiteto,
defrontando-se com uma localização ingrata, em que o terreno ocupa uma esquina de praça sem tomar toda a frente da quadra, optou por uma solução em
que o eixo central vertical é dominante, o que foi conseguido através da cúpula, das naves curtas, dos arcobotantes deslocados e do eixo a quarenta
e cinco graus da torre da esquina.
Com a imigração, vieram trabalhadores não só para a agricultura mas
também para a indústria e para a construção civil. Trouxeram novas técnicas construtivas e uma capacidade de executar obras mais complexas em pedra,
madeira, estuque, metais. Em São Paulo, fundou-se a Escola Politécnica que passou a formar engenheiros civis e engenheiros-arquitetos, assim como o
Liceu de Artes e Ofícios, que formava artífices qualificados e produziu em suas oficinas o que se fez de melhor em mobiliário e componentes para a
construção civil.
Novos materiais importados passaram a ser largamente empregados. O ferro em vigas foi
empregado nas estruturas internas, assim como colunas em ferro fundido com uma decoração clássica abastardada, tijolos de barro cozido, tijolos
laminados recozidos, telhas francesas de Marselha, telhas de ardósia, calhas etc. Vinte anos após a implantação da ferrovia já começaram a aparecer
edifícios com características totalmente novas em relação à antiga tradição construtiva que o neoclássico não conseguira alterar em profundidade.
Alguns arquitetos estrangeiros passaram a atuar em São Paulo. Iniciou sua atuação
profissional Ramos de Azevedo, engenheiro arquiteto que fora estudar em Gand na Bélgica (N.E.: cidade portuária também
chamada Ghent ou Gent) em 1875. Foi grande a influência de Bezzi que veio do Rio indicado pela Corte para projetar e
construir o palácio que hoje abriga o Museu do Ipiranga. A arquitetura erudita que apareceu em Santos foi praticada por profissionais radicados em
São Paulo, fenômeno que perdurou até meados deste século (N.E.: século XX). Os novos
estilos chegaram a Santos com algum atraso em relação a São Paulo. Iniciou-se o período chamado eclético.
O ecletismo foi a cultura arquitetônica própria de uma classe burguesa que dava primazia ao
conforto, amava o progresso (especialmente quando melhorava suas condições de vida), amava as novidades, mas rebaixava a produção artística e
arquitetônica ao nível da moda e do gosto. O projeto arquitetônico, dentro do ecletismo, seguiu três correntes principais: a da composição
estilística, baseada na adoção de formas que no passado correspondiam a um estilo preciso; a do historicismo tipológico em que o estilo se orientava
segundo a finalidade do edifício; a dos pastichos compositivos que, com uma maior liberdade, inventava soluções historicamente inadmissíveis.
O ecletismo e o urbanismo no século XIX desenvolveram-se na mais perfeita simbiose. A cidade
teve que enfrentar uma nova escala de fenômenos, com o crescimento de habitantes, veículos e serviços. O urbanismo se ateve a duas linhas de
atuação: a intervenção na cidade preexistente, com a abertura de novas praças e artérias por razões de trânsito, higiene e estética; a segmentação
das funções urbanas, com a expansão de novos bairros residenciais, em especial os burgueses, separados dos bairros administrativos e comerciais.
Casa de João Éboli, sobre os restos do Outeiro de Santa Catarina
Foto: Prefeitura Municipal de Santos, 1998
Uma
característica foi o isolamento dos novos "monumentos" que passaram a dominar a cena urbana não tanto em função do estilo ou da qualidade
arquitetônica como pela grandeza e exaltação das três dimensões. A burguesia compôs as fachadas de suas casas com
colunas, pilares, frontões etc., buscando a monumentalidade. A proliferação da grandiosidade acabou empobrecendo a potencialidade expressiva e
simbólica e produzindo a monotonia. O que permitia o destaque eram as torres e cúpulas utilizadas nas esquinas.
O ecletismo teve seus primeiros exemplares devidos à iniciativa privada, seja em edifícios
destinados ao comércio do café, seja em residências nos novos bairros e avenidas em desenvolvimento, como Vila Mathias,
avenidas Conselheiro Nébias e Ana Costa e nas chácaras da praia da
barra.
Um dos mais notáveis edifícios ecléticos da cidade é o da Bolsa Oficial
do Café, levantado pela Companhia Construtora de Santos em 1922. O edifício ocupa um terreno com frente para as ruas XV de Novembro, Frei Gaspar
e Tuiuti, ponto de maior prestígio social da Santos colonial. Com quatro pavimentos, sua fachada está organizada em três faixas: embasamento, plano
nobre e ático.
O plano nobre se divide em dois pavimentos. As janelas do plano nobre são desmembradas em
duas, sendo as inferiores valorizadas com frontões triangulares e de segmento (curvos), alternados, e as superiores tratadas como aberturas de
mezanino. O corpo central da fachada da Rua Frei Gaspar tem uma arcada com cinco vãos no pavimento térreo encimado no
plano nobre por uma loggia com colunata jônica. O corpo central é demarcado por dois blocos destacados encimados no plano nobre por frontões
de segmento e prolongado com alas com janelas em arco no térreo e pilastras no plano nobre.
As fachadas da Rua Tuiuti e da Rua XV têm tratamento semelhante
mas sem destaque em função da pequena extensão, apenas um pequeno frontão de segmento. Nas esquinas foram dispostas duas torres. Na esquina da Rua
Tuiuti, a mais alta, que dominava a cidade à sua época, com o dobro da altura do prédio, com relógio e cúpula. Na esquina da Rua XV, a outra torre,
em que somente a cúpula sobressai do prédio, apresenta a solução de servir de acesso principal ao prédio. (O acesso pela esquina foi também
utilizado no Teatro Coliseu e no Atlântico Hotel).
Atlântico Hotel. Cerca de 1920, um prédio substituiu as edificações de frente para a praia
A planta circular dividida em seis partes permitiu a disposição de quatro pares de colunas
com rusticação palladiana, dispostas radialmente. A torre está disposta no eixo do trecho da Rua XV que liga à Rua do Comércio, onde fervilha o
comércio do café, dominando-o visualmente. Trabalhando com os elementos clássicos, em um tratamento barroco, a Bolsa é um exemplar típico do
ecletismo por diversas características: as torres nas esquinas como elemento de composição urbana, o agrupamento de corpos diferenciados, a falta de
um elemento dominante central e a destruição da simetria do conjunto pelas torres díspares. A Bolsa foi um dos primeiros edifícios em concreto
armado na cidade.
A Primeira República, para demonstrar suas preocupações sociais, deixou registradas ações
nos campos da saúde e da educação. Ainda temos o testemunho do antigo Hospital do Isolamento, hoje Guilherme Álvaro, com sua solução em pavilhões
distribuídos em meio a grande parque. Temos também os edifícios da Escola Barnabé e da Escola Cesário Bastos, este se destacando pela riqueza da
ornamentação das fachadas.
O ecletismo também deixou uma vasta herança disseminada pela cidade, em especial nos bairros
centrais em residências burguesas, de classe média e até algumas tentativas frustradas de moradias populares. Em geral a cargo de profissionais
práticos, apresentam uma linguagem que foi se afastando cada vez mais de seus modelos eruditos, mas que não deixam de ter interesse por alguns
momentos de criatividade ou por caracterizarem conjuntos urbanos.
A última grande obra pública eclética, erudita e de linguagem clássica foi a nova sede da
Prefeitura e da Câmara Municipal, um projeto que incluiu não só o edifício, mas também o paisagismo da Praça Mauá e a regulamentação do gabarito dos
edifícios com frente para a Praça. Com sete pavimentos, sua fachada, como a da Bolsa, está organizada em três faixas horizontais: embasamento com
dois pavimentos, plano nobre com três e ático com dois. O corpo central destacado inclui o acesso principal através de galilé com três arcos
triunfais, que se atinge através de rampas e escadarias adornadas com luminárias em bronze trabalhado e as figuras recostadas de Atena e Hermes,
deuses gregos protetores das cidades e do comércio. A galilé é encimada no plano nobre por uma loggia com colunas e pilastras de ordem
colossal coríntia. Seu eixo de simetria domina longitudinalmente a Praça. A forte hierarquia centralizante que caracteriza a composição do edifício
talvez decorra do espírito fascista e autoritário então vigente no País e na Europa.
Cabe lembrar três tendências que podem ser enquadradas dentro do período do ecletismo. A
primeira, de pouca difusão mas interessante, foi o Art Nouveau, um movimento romântico e individualista, neobarroco e anti-histórico, que afetou a
Europa entre 1890 e 1910. Exprimiu uma tendência essencialmente decorativa, visando colocar em relevo o valor ornamental de uma linha de origem
floral ou geométrica, determinando formas tridimensionais, delicadas, sinuosas, ondulantes e sempre assimétricas.
O Art Nouveau estendeu-se a todos os campos das manifestações artísticas (arquitetura
e urbanismo, gráfica, publicidade e desenho de objetos). Recebeu diferentes nomes nos países onde se manifestou: Style Nouille (estilo
macarrônico) na França; Style Coup de Fouet (estilo golpe de chicote) na Bélgica; Modern Style (estilo moderno) na Inglaterra;
Jugendstil (estilo de juventude) na Alemanha; Style Liberty (estilo livre) na Itália e Modernismo na Espanha. Chegou ao Brasil nos
primeiros anos da República, com o nome de Arte Floral, estendendo-se até quase o Modernismo.
Em Santos o Art Nouveau se manifestou em alguns poucos edifícios e monumentos. Restou
uma residência situada à Avenida Ana Costa, 77. O monumento a Braz Cubas na Praça da República
tem um friso esculpido no mármore branco da base com motivo floral art nouveau. A residência da Avenida Bartolomeu de
Gusmão que abriga a Pinacoteca Benedito Calixto tem diversos detalhes decorativos art nouveau mesclados com a decoração clássica.
A segunda tendência teve larga difusão, a arquitetura neocolonial que surgiu em São Paulo
por volta da segunda década deste século (N.E.: século XX...). Dentro do quadro mais amplo
do ecletismo, procurava retomar a arquitetura colonial como expresão dos valores formais nacionais. Por ironia, teve como pregador o arquiteto
português Ricardo Severo e como um dos arquitetos mais importantes Vitor Dubugras, francês educado na Argentina. Não foi uma tendência
exclusivamente brasileira, mas permeou toda a América nos anos 20 e 30, preconizando a independência das culturas nacionais.
Dubugras projetou, em 1922, os edifícios do Caminho do Mar. Em
Santos, os edifícios de maior expressão no estilo neocolonial são o Hospital Santo Antônio da Sociedade Portuguesa de Beneficência e a fachada
reformada da Escola Escolástica Rosa. São neocoloniais ainda: o Aquário Municipal, na Ponta da Praia; a
Estação da Estrada de Ferro Sorocabana, na Avenida Ana Costa; o Asilo de Inválidos, na Avenida
Francisco Glicério; um sobrado comercial, na Rua do Comércio; dois edifícios de mais de 9 pavimentos: um de escritórios na
Rua Amador Bueno e outro residencial, na praia; o edifício Copacabana; diversas residências em Santos. A igreja de Nossa
Senhora do Rosário, na Praça Rui Barbosa, teve suas fachadas reconstruídas em estilo neocolonial quando sofreu o recuo para o alargamento da Rua
João Pessoa.
O estilo neocolonial resistiu ao modernismo e tem sido utilizado até hoje, principalmente em
residências. Também teve difusão o estilo colonial latino-americano (missões, californiano mexicano) que foi extensamente utilizado em residências
isoladas e geminadas e que marca até hoje os bairros de Santos.
Por último, pode ser citado o estilo Art Déco, que teve sua denominação oriunda da
realização da Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas em Paris em 1925. Desenvolveu-se plenamente ao longo dos anos 30.
O art déco sofreu influências do art nouveau, cubismo, futurismo, Bauhaus e artes asteca e egípcia. Apresenta tendência ao geometrismo,
conciliando linhas retas e curvas. O art déco teve ampla difusão na arquitetura santista. Inúmeros edifícios comerciais construídos na
terceira e quarta décadas deste século (N.E.: XX...) têm suas fachadas resolvidas neste
estilo. Como destaques podemos citar a Matriz de Cubatão; a Alfândega em Santos; o saguão do antigo
Rádio Clube, hoje Cine Alhambra e o Grill do Atlântico. Um caso interessante é a
sede da Sabesp, na Avenida São Francisco, que tem uma composição volumétrica clássica, com detalhes art déco.
(*) Fábio Eduardo Serrano é mestre em Arquitetura e
Urbanismo (FAU/USP) e professor de Teoria da Arquitetura e Urbanismo (UniSantos).
Hospital Santo Antonio, da Sociedade Portuguesa de Beneficência, em estilo neocolonial
Foto publicada com o texto
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