Quando se fala em Paquetá, o pessoal logo lembra: "Lá tem a Boca, o
cemitério...". Realmente, não existe nada mais famoso no Paquetá. O cemitério é conhecido não apenas por ser o mais antigo de Santos, mas porque
lá estão sepultados muitos santistas ilustres. A Boca nem carece de apresentações: quem nunca esteve por lá, na cerca já ouviu falar sobre
suas boates, seus shows de strip-teases, a mistura de nacionalidades, a força do dólar se fazendo presente.
Mas o Paquetá não se resume a isso. Revirando seu passado, a gente descobre que em outros
tempos aquela área toda não passava de mangue, desses bem viscosos. Com a canalização de rios que cortavam Santos e a construção do cais, que
acabou com as constantes vasas de marés, o lugar tornou-se perfeitamente aproveitável. Famílias ricas transferiram residência para lá e formou-se
um núcleo bem estável.
Santos continuou crescendo, ampliando seus limites e as famílias tradicionais partiram
para os bairros na orla da praia. Muitas das casas do Paquetá, que pertenceram à aristocracia, foram demolidas para dar lugar a indústrias e
armazéns. As que restaram, transformaram-se em hotéis ou habitações coletivas. O bairro tem mais de quatro mil moradores e está completamente
abandonado. Não há creches e as crianças brincam na rua por falta de áreas de lazer.
As antigas residências são hoje apenas uma lembrança do passado
"Socorro! Sai para lá com isso! Meu irmão vai te pegar na
esquina".
O Acácio ouvia todas as ameaças e pragas morrendo de dar risada. Danado como ele só, ia até o ossuário do
Paquetá, burlava a vigilância, pegava caveiras e corria atrás das meninas, que botavam a boca no mundo e disparavam para se agarrarem na barra do
vestido da mãe, tremendo de medo. Os corações batiam tanto que só faltavam estourar o peito.
Seu Seraphim relembra a infância
Cenas como essa
estão bem gravadas na memória de Domingos Gonçalves Vieira, o Dominguinhos, que nasceu e se criou no Paquetá. Fica difícil saber quem sente
mais saudades daquela época: o Dominguinhos, o Seraphim Monteiro Pennas ou o Joaquim Dario Ribeiro Lemos, o Quincas? Quem sabe, o
Gualberto Serrachioli Filho, que nasceu ouvindo o ronco do Moinho Santista, onde trabalha há 40 anos.
Nenhum deles reside mais no Paquetá, que se tornou um lugar totalmente estranho àquele que conheceram. Mas todos
se deliciam recordando coisas de outros tempos. Um fato faz lembrar outro, volta à memória o cenário da infância, os rostos dos amigos desfilam um
a um como em uma tela de cinema. E conforme vão falando, reconstroem um período da história de Santos, apresentam a vida de um bairro.
Batuques, cantorias e carnavais animados, ricos em fantasias - O Quincas mora atualmente em Santo
André, mas define o Paquetá como seu "eterno bairro". Durante muitos anos, viveu na Rua João Pessoa, 503, em frente à Padaria Nacional, de seu
Rufino e dona Rosa, e jamais esqueceu que sua mãe, Jacira Vieira Ribeiro, foi dona da primeira pensão com cômodos do bairro, a Pensão Belo
Horizonte.
O Dominguinhos é capaz de falar horas e horas sobre as coisas passadas. Quando chega essa época do ano,
ele sempre recorda as batucadas de todas as noites na esquina da Rua Aguiar de Andrade com João Pessoa. O bloco O Sujo do Paquetá queria
fazer bonito e começava os preparativos para o Carnaval. Um grupo grande, que integrava a bateria, se juntava pra ensaiar: lá estavam sempre o
Waldemar Burra Velha (tio do Oca, ex-goleiro do Santos), Aurélio, Furado, Raul, Puca, Carica, Torresmo,
Boquinha, Lanzudo, Maracanã e o famoso cantor Zé Roberto, que levava o título de seresteiro do bairro.
De lá saíram outros blocos famosos, como o Azes do Paquetá, o Aimorés, Vassourinhas e a Escola de Samba Azul e
Branco. Seu Seraphim gosta de exibir uma fotografia tirada em 1943, ao lado do Cemitério do Paquetá, com um grupo de foliões da Escola de
Samba da Rua São Francisco.
E quem consegue esquecer-se dos corsos automobilísticos? Desfilavam pelas ruas reis, príncipes e nobres de todas
as eras, césares e senadores do Império Romano, deuses da mitologia helênica e latina, sem contar os palhaços, diabinhos muito vermelhos, pierrôs
de cara enfarinhada, colombinas etéreas e arlequins policrômicos. Defronte do Palacete dos Aranha, grupos saídos de diferentes pontos se reuniam,
trocavam confetes e serpentinas. E tudo ficava mais colorido e festivo.
Tão gostosos e alegres, só mesmo os bailinhos na casa da dona Luzia, sempre animados pelo conjunto formado por
João do Violão, Dito do Banjo, seu estilo, Toninho Birolha, Furado e Chico do Pandeiro. Também não ficavam para
trás os fados e guitarradas que de vez em quando eram realizados na casa do seu Gino, pai do Dominguinhos, ou no bar do seu
Antônio.
E já que se está falando de batuques e cantorias, não se pode esquecer o cego Arnaldo Santana, considerado o
dono da voz mais bonita do rádio paulista. Cantou durante muito tempo na Rádio Atlântica, e só não ficou mais famoso porque era um desses boêmios
inveterados, bebia como ele só. Não havia quem não gostasse dele no Paquetá, onde nasceu e se criou, e não faltou torcida quando ele participou do
concurso para escolha da voz que substituiria a de Chico Alves. Arnaldo não ganhou por pouco!
Turma da São Francisco, no Carnaval de 1943
Alegria com os bailes e com o Paquetá FC, o orgulho da rapaziada - Falar em época de São João para os
pais e avôs respeitáveis de hoje, moleques daquela época, é lembrar o céu forradinho de balões. Os preparativos para a grande festa começavam
muito tempo antes. Quantas vezes seu Seraphim e os amigos não roubaram velas no Cemitério do Paquetá pra fazer as lanternas?
João Bulo, Valentim, Dominguinhos e tantos outros levavam horas e mais horas confeccionando os balões,
porque havia escolha dos mais bonitos e maiores. Alguns adultos também entravam na disputa, e o Rufino, dono do Bar Melo, sempre deixava todo
mundo de boca aberta com o tamanho dos seus, que se destacavam entre os maiores de Santos. Quando se via algum balão caindo, mais de 100 moleques
corriam atrás, sem respeitar o cemitério e nem os terrenos da Cia. Docas.
Mas o grande orgulho do bairro era o Paquetá Futebol Clube, que foi fundado em 1935 por Waldemar Raposo e
outros. Ficou algum tempo desativado, até que em 1945 o Toninho Raposo, o Dominguinhos, o Pai João e alguns mais tornaram a
reerguê-lo como infantil. E como o pessoal gostava de ver o Pila, João Marques, Nívio e Waldemar em campo! Com a chegada de Lanzudo,
Torresmo, Marino, Minoro, João, Lelé, Cabelinho, Waldemar, Aurélio, Maximino e outros, o Paquetá FC passou a juvenil. O clube
existe até hoje, só que sua sede fica na Vila Nova.
Seu Domingos não esconde o orgulho quando conta que, como diretor de futebol, conquistou dois títulos;
Campeão dos Bairros de 1957, juntamente com o Tino, e de 1962. Seu filho Sérgio era o mascote da equipe de 1957, e seu irmão Vadico
destacou-se como artilheiro do time, com seis gols. Outra façanha que ele não esquece: certa vez, o Paquetá representou Santos em um torneio onde
participaram times de Pedreira, São Bernardo, Ribeirão Pires e outras cidades, sagrando-se campeão. Nesse mesmo dia, o 2º quadro fez uma prova de
honra contra o Martins Fontes e venceu.
Esses que hoje nos contam essas histórias não podem reclamar das traquinagens dos netos, porque aprontaram
muitas e boas na infância. As peladas de rua começavam às oito horas e se estendiam até a noite, com uns 20 moleques de cada lado. Quando a bola
caía no cemitério, os coveiros rasgavam. Tinha dias que perdiam mais de seis bolas de borracha. As mães ralhavam e diziam que não dariam mais
dinheiro para eles botarem fora, mas não resistiam quando viam o Pé de Ferro, o Formiga, o Maravilha (pai do Maravilha
que jogou na Portuguesa), o Seraphim, o Zézinho, o Reinaldo e outros amigos implorando um trocadinho para comprar outra bola. Não tinha
jeito, acabavam cedendo.
E quando os moleques se agarravam nas carroças de café para pegar um gozinho? O carroceiro largava o
chicote para trás, mas dificilmente alcançava alguns deles. Eles também deram um bocado de trabalho para os condutores de bonde, pois se grudavam
no estribo com o veículo andando.
Um condutor querido de todos era seu Lima, do bonde 9. Conhecia todos do bairro e os atendia com a maior
delicadeza possível. Quando alguma mãe precisava mandar o filho em algum lugar, avisava seu Lima onde o garoto deveria descer e podia ficar
tranqüila: ele tomava conta do menino e cuidava para que descesse no local indicado.
E se tem uma coisa que realmente marcou tantos quantos moraram no Paquetá foi o cemitério. Era ali que as
meninas passeavam aos domingos, esticando os olhos para os lados dos meninos. Estes se valiam dos muros baixos, pulavam e pegavam ovos nos ninhos
de passarinhos que ajudavam a enfeitar as árvores lá plantadas.
Quando se aproximava algum enterro, os meninos corriam para segurar as coroas de flores, em troca de alguns
trocados. Seu Seraphim dá umas boas gargalhadas quando relembra o entusiasmo da garotada ao ver um féretro de gente importante, com muitas
coroas de flores. Quem mais podia se alegrar e dizer, esfregando as mãos: "Opa, hoje o enterro é bom!"
Na memória de Maria José Aranha de Rezende, outra antiga moradora, ficaram marcados os enterros de anjinhos.
Passavam bem em frente da sua casa e eram tão comuns que impressionavam. Ela nunca esqueceu.
O palacete, símbolo de uma época, não resiste ao novo tempo - Tanto o seu Seraphim como o seu
Domingos costumam destacar que naquela época a vizinhança formava uma grande família. E não é exagero, pois seu Domingos cita uma lista bem
longa de gente daquela época: os Raposo, seu Pimenta, seu Garrido, seu Gaspar, dona Mirinda, os Bulo, os Oca, os Martins, os
Melo, os Marques, os Tino e a família do inspetor Gonzaga, na época comandante da Guarda Civil.
Maria José não se esquece do palacete onde viveu
Após
o jantar, o pessoal se reunia sob a luz dos lampiões a gás para espiar a lua e conversar. As moças falavam sobre namorados, os velhos comentavam
sobre os navios que chegavam e saíam do Porto ou sobre a falta de gêneros de primeira necessidade.
A criançada jogava peteca, brincava de roda, de casamento japonês, de pegador, de soldado e ladrão, uma-na-mula
e tantas outras brincadeiras. Volta e meia conversavam sobre as aulas na escola da professora Leonilda, onde faziam o primário e aprendiam o
catecismo. E tinha assunto de sobra quando a banda do Tiro de Guerra desfilava pela Rua São Francisco com o seu mascote, um carneiro, à frente.
Quando morria alguém, era uma tristeza danada. E que correria houve no dia em que a menina Pilara Gonçalves
Golfinho, de 9 anos, ficou sob as rodas de um bonde puxado a burro! Hoje, com quase 90 anos de idade, ela comenta que não se machucou e tudo não
passou de um grande susto.
Pois é, mas essas coisas todas ficaram no passado. Nem existe mais o palacete dos Aranha, que por muitos anos
emoldurou a esquina da General Câmara com a Conselheiro Nébias. Foi o primeiro palacete de Santos e tudo nele chamava a atenção: a enormidade do
terreno, os jardins, os terraços, o mirante, a beleza do estilo. E que dizer das palmeiras imperiais que se erguiam na frente? Tão bonitas,
altivas, fizeram a moradia ficar conhecida como Casa das Palmeiras.
Maria José Aranha de Rezende conta que foi construída por seu avô, Pedro Souza Aranha, em 1889. Por perto morava
muita gente importante - Saturnino de Brito, Martins Fontes e médicos como Moura Ribeiro e Lobo Viana, para citar apenas alguns - e costumava-se
chamar aquela concentração urbana genericamente de Cidade.
No Palacete dos Aranha viveram o poeta Vicente de Carvalho e sua mãe, Augusta Bueno de Carvalho, que tinham
parentesco com o proprietário. E muito do que Maria José recorda, da famosa moradia, foi contado por sua mãe, Georgina, que mudou-se para lá aos
quatro anos de idade, e lá mesmo casou-se, teve filhos e netos.
Mas o Paquetá ganhou novas características e a família Aranha partiu. O palacete, com todo seu requinte de
construção e materiais finíssimos, virou sede do Centro de Saúde, que ocupou o imóvel por 15 anos. E, pior ainda, foi demolido pela Açucareira
Santista (Cia. União de Refinadores), que a substituiu pelas instalações escurecidas e sem graça que se vê hoje.
A casa e as palmeiras estão imortalizadas em cartões postais de Santos antiga e numa pintura de Garcez que Maria
José exibe em sua sala. E são tema de uma poesia - Minha Casa - e de uma crônica - A Casa das Palmeiras - dessa moradora até
hoje inconformada com a demolição do imóvel, que poderia ter sido transformado em um museu, por tudo que foi e representou.
Também não existem mais a sede do bem freqüentado Eden Clube (1895/1935), na Conselheiro Nébias com General
Câmara, e nem a terceira sede do Clube XV, na Amador Bueno com Constituição. Tampouco restaram vestígios do primeiro hospital da Beneficência
Portuguesa, que ficava em um terreno orlado por copadas árvores e esguias palmeiras.
Sobraram apenas lembranças e fotografias. Nada mais.
O Paquetá FC era um orgulho e a seleção de 1957 sagrou-se campeã santista
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