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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 10/17/02 09:15:34
FEBEANET
O novo presidente do Brasil

Dia 31 de março, 23h59. Assume o poder o novo presidente do Brasil. Em horário escolhido da mesma forma que os comerciantes anunciam os preços das mercadorias - (R$ *,99), em que um centavo a menos faz a diferença na mente do consumidor, mas não no seu bolso (já que não receberá tal centavo do comerciante, mesmo). E pela mesma razão que outro golpe de Estado, em 1964, oficialmente não ocorreu no dia seguinte. Sua Excelência, Fernando B.M., doutor honoris causa pela Universidade de Cali, na Colômbia, posa para a histórica foto oficial com seu ministério, escolhido entre os membros do seu grupo.

Nessa breve pausa, relembra os antecedentes da revolução, iniciada algumas horas antes com uma bem organizada movimentação de seus exércitos. Não foi preciso disparar muitos tiros, bastaram algumas instruções emitidas pelo telefone celular desde seu quartel general, conhecido como Bangu I, no Rio de Janeiro, e em todas as cidades brasileiras o comércio imediatamente fechou as portas, os bancos e as escolas interromperam as atividades, as ruas ficaram desertas. Mais uma vez, sua eficiente rede de contatos cuidou de tudo para que a população se mantivesse em casa, aguardando novas instruções.
Correspondentes de guerra mostram o teatro de operações (Rede Globo de Televisão, 16/10/2002, 23H55)
Verdade que uma governadora tentou resistir, mas afinal, para que servem as granadas e bazucas? Pena que aquele bonito palácio tenha sumido do mapa, da mesma forma que o estado que lhe dava o nome...

Ah, os ensaios da tropa! Fernando B.M. recorda, por breves momentos, os primeiros testes da força de resistência. Tudo começou com a instrução: nas favelas, polícia não entra mais. Depois, a área foi sendo expandida, os morros foram sendo livrados da ação policial, um após o outro, cidade após cidade. Nas prisões, o primeiro teste foi em São Paulo: com precisão perfeita, garantida pela moderna tecnologia de telefonia celular e pelos computadores ligados na Internet, foi possível comandar as rebeliões simultâneas em mais de 30 presídios em todo o estado, como uma demonstração de força e aproveitando para distrair as atenções, de forma que ninguém desse atenção a uma grande movimentação de narcóticos então ocorrida. E, enfim, a grande demonstração de poder ao Brasil e ao mundo: uma cidade inteira paralisada pelo medo durante 24 horas, sem que fosse preciso disparar um tiro!

Palácio da Guanabara, atingido por armamento pesado dos narcotraficantes (Rede Globo de Televisão, 16/10/2002, 23H55)
Os negócios com a Colômbia ajudaram bastante, e o estabelecimento de uma rota livre para a exportação dos produtos agro-industriais do vizinho país ajudaram a obter divisas para a compra de armamento pesado e sistemas eletrônicos, necessários para garantir a segurança nas áreas controladas. Além disso, a contínua movimentação de dinheiro, devidamente lavado em paraísos fiscais, garantiu o discreto apoio da poderosa banca internacional, facilitando bastante na hora do golpe: o sistema financeiro não iria atrapalhar os planos de expansão de seu maior cliente.

Na área de relações internacionais, também, a compra de armas em grande quantidade garantiu o apoio do conglomerado industrial fornecedor desses produtos  - o mesmo que ajudou a eleger o presidente da mais poderosa nação do planeta, um mentecapto telecomandado que os próprios alemães comparam a Hitler (o nazista, pelo menos, era um pouco mais esperto). 

"Bem - pensa Fernando B.M. -, preciso me lembrar de solicitar um auxílio especial ao grande irmão do Norte, para garantir que a ONU fique fora do meu caminho. E é tão simples: basta que o G. Washington B. mande o recado de que não vai pagar as verbas atrasadas de manutenção desse organismo, se eles começarem a criar obstáculos. Não seria a primeira vez..."

Polícia tão virtual que na vida real é facilmente rechaçada (Rede Globo de Televisão, 16/10/2002, 23H55)
Fernando B.M. lembra, aliviado, das claras mensagens ao mundo dadas pela grande potência e suas coligadas, de que vale tudo desde que com sua bênção. Vale a Milícia do Norte expandir o cultivo de papoulas para a produção de drogas, desde que o oleoduto possa atravessar o Afeganistão. Não vale cultivar drogas na Colômbia, se o grupo não tiver se afinado com os interesses daquelas potências. Vale atacar a Palestina, se os capitais judeus estão afinados com a indústria de armamentos e os governos das grandes potências. Vale trocar armas por drogas para apoiar os opositores iranianos (pena que o mundo descobriu a jogada do governo dos EUA, conhecida como Irã-contras). Vale atacar país após país, com uma desculpa qualquer, se quem ataca é uma potência. Não vale um povo se defender de agressões continuadas ao seu território, ao seu povo, como quando as crianças palestinas se defendem com pedras contra os tanques israelenses que invadem suas cidades e matam seus pais. Como sempre, aos amigos tudo, aos inimigos...

"Nesse mundo em que nem é mais preciso disfarçar e criar desculpas, eu assumir o poder no Brasil é até um ato legítimo - pensa Fernando B.M. -. Pelo menos acabou com a hipocrisia dos governos anteriores, que fingiam não saber o que acontecia enquanto tudo estava acontecendo às vistas de todos. Eles falavam em combater o crime organizado, usando policiais residentes entre os criminosos e que tinham de pagar pelas próprias balas, por falta de recursos para equipar as polícias. Recursos que nunca faltaram para garantir o sistema bancário como sendo o maior negócio das últimas décadas no Brasil".

Amostra do armamento apreendido com os detentos no presídio de segurança máxima Bangu 1 (Rede Globo de Televisão, 16/10/2002, 23H55)
Bem, chega de recordações. É hora de começar a baixar os primeiros atos institucionais. O PCC - com grande número de correligionários em São Paulo - se torna um partido político oficial. Para não dizerem que aqui não tem democracia, sigamos os exemplos de 1964, quando os outros revolucionários também criaram um partido acessório, para funcionar como "oposição", hehehe: será o Comando Vermelho. Afinal, o mundo inteiro sabe que vermelho é símbolo de oposição, embora a foice e o martelo já não sejam mais usados...

É preciso completar o expurgo nos quadros policiais, retirando os últimos elementos contrários ao regime que agora assume - tais indivíduos são subversivos, e é dever de todo governo lutar contra os elementos que possam ameaçar a estabilidade democrática e perturbar os negócios. Se bem que não é preciso muita preocupação: é só mandar uns recados aos seus familiares nas favelas e eles se aquietam. Afinal, não estão articulados, não têm armas, sabem que nada que façam será produtivo - pois a Justiça está sempre com o Poder...

A área militar também não preocupa: sem verbas, desmantela-se por si só, até dispensa os soldados por não ter como manter esse contingente. Quando não explode seus próprios arsenais e afunda seus submarinos no porto, em águas tranqüilas...

O que preocupa mesmo é que este novo governo assume praticamente sem ter o que dar às potências internacionais, pois os governos anteriores já entregaram tudo o que podiam: telecomunicações, energia, bancos, navegação marítima, instalações industriais, base de foguetes, toda a tecnologia nacional, até o idioma oficial passou a ser o portinglês ("preciso me lembrar de mudar esse detalhe na Constituição, oficializando o novo idioma nacional..."). O que não conseguiam entregar, afundaram ou destruíram, como as plataformas da Petrosutiã.

Depois da afundada P-36, é a vez da plataforma P-34 quase submergir por falha não explicada (Rede Globo de Televisão, 16/10/2002, 23H58)
Entregar a Amazônia, fora de cogitação. Ela precisa ficar como está, para que os missionários biólogos completem sua tarefa de mapear seu potencial para a produção de remédios patenteados no exterior. As grandes potências da área de medicamentos não concordarão em que se oficialize uma zona internacional nessa área, pois isso chamaria atenção demais para o trabalho desses esforçados religiosos. Os missionários geólogos, encarregados de conferir em terra os indícios de minérios importantes apontados pelos satélites, também ficariam expostos à mídia internacional. E ainda poderia haver uma grita geral contra os EUA pelo uso de agentes desfolhantes na Amazônia - usados para destruir as plantações colombianas apoiadas pelos guerrilheiros, mas que inevitavelmente escorrem para os rios brasileiros. Não, isso tem de ficar de fora.

Fernando III (o Fernando B.M., terceiro no poder depois do destronado em 1990 e do sociólogo que rasgou seus próprios livros poucos anos depois) se permite um último instante de reflexão. Lembra de como milhões de carneirinhos - ops! Brasileirinhos -  aceitaram declarar às urnas eletrônicas (e aos juízes que as inventaram) sua intenção de eleger um ex-operário para a presidência do País. Fernando lembra como logo em seguida a ex-namoradinha do Brasil, traindo sua biografia, aceitou fazer o pior papel de sua carreira, dizendo na televisão nacional do seu enorme temor de que tal operário fosse eleito. Só faltou dizer que ele comia criancinhas. 

Temia a famosa atriz as mudanças que poderiam surgir. Não lembrava que, no regime apoiado pelo candidato que lhe cedia espaço, um grupo de criancinhas foi morto por policiais, nas escadarias da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, pelo crime de não ter onde morar, nem pais ou escolas que as acolhessem. Esquecia que muitas outras crianças, principalmente nas praias nordestinas, estavam sendo literalmente comidas por "turistas" interessados em prazeres mais profundos proporcionados pela quente natureza tropical - em troca de algumas gorjetas para comprar a água liberada a conta-gotas pelos coronéis do sertão. Esquecia a atriz que a maior metáfora para o governo por ela defendido era o próprio apagão nacional de 2001, corolário de um trabalho minucioso de demolição do País.

Bem, chega de recordações. Um árduo trabalho espera a nova junta governativa, a partir do próximo minuto. É preciso melhorar as estradas, para que o caríssimo pó esbranquiçado cuja produção sustenta este regime possa ser levada aos pontos de destino. Há que cuidar da saúde, pois o número de picadas dos mosquitos da dengue já ameaça ser maior do que as feitas pelas agulhas de seringas, nos sopés dos morros. É preciso organizar melhor a educação, pois o truque dos pipoqueiros nas portas das escolas já não faz sentido e o uso de alunos-traficantes precisa ser melhor organizado, tem havido muita queixa dos professores de que eles estão atrapalhando as aulas.

Felizmente, no Congresso este novo governo possui fortes aliados, regularmente eleitos. Isso facilitará muito a passagem "legal" de algumas medidas legais necessárias, como o discreto fim do limite de 12% ao ano na taxa de juros, das normas que proíbem o corte de serviços essenciais aos devedores inadimplentes etc. No Judiciário, também é evidente que não haverá problema, é só analisar quantas vezes os juízes resistiram de fato às inconstitucionalidades do governo. E eles têm a desculpa eterna para não fazer o que precisam: estão atulhados de processos, que levarão décadas para julgar (e preferem construir prédios luxuosos a colocar alguns computadores que agilizem os trabalhos)...

O tempo voa. Já passa um minuto da meia noite. É hora de começar a ação. Mas toda essa correria deu fome. Um lanchinho rápido não vai mal. Começando por uma fruta que é o símbolo de muitas republiquetas, ótima para auxiliar na digestão do que vem por aí.

Embora se identifique muito com o espírito da seção, mostrando as mazelas nacionais e internacionais dos últimos tempos, o texto acima deve ser considerado como extra-concurso, não concorrendo entre os demais da edição 2002 do Festival de Besteiras que Assola a Internet (Febeanet). Pelo menos enquanto a cogitada posse de Fernando B.M. não se efetivar.