FEBEANET O novo presidente do Brasil
Dia
31 de março, 23h59. Assume o poder o novo presidente do Brasil.
Em horário escolhido da mesma forma que os comerciantes anunciam
os preços das mercadorias - (R$ *,99), em que um centavo a menos
faz a diferença na mente do consumidor, mas não no seu bolso
(já que não receberá tal centavo do comerciante, mesmo).
E pela mesma razão que outro golpe de Estado, em 1964, oficialmente
não ocorreu no dia seguinte. Sua Excelência, Fernando
B.M., doutor
honoris causa pela Universidade de Cali, na Colômbia,
posa para a histórica foto oficial com seu ministério, escolhido
entre os membros do seu grupo.
Nessa breve
pausa, relembra os antecedentes da revolução, iniciada algumas
horas antes com uma bem organizada movimentação de seus exércitos.
Não foi preciso disparar muitos tiros, bastaram algumas instruções
emitidas pelo telefone celular desde seu quartel general, conhecido como
Bangu I, no Rio de Janeiro, e em todas as cidades brasileiras o comércio
imediatamente fechou as portas, os bancos e as escolas interromperam as
atividades, as ruas ficaram desertas. Mais uma vez, sua eficiente rede
de contatos cuidou de tudo para que a população se mantivesse
em casa, aguardando novas instruções.
Verdade que
uma governadora tentou resistir, mas afinal, para que servem as granadas
e bazucas? Pena que aquele bonito palácio tenha sumido do mapa,
da mesma forma que o estado que lhe dava o nome...
Ah, os ensaios
da tropa! Fernando B.M. recorda, por breves momentos, os primeiros
testes da força de resistência. Tudo começou com
a instrução: nas favelas, polícia não entra
mais. Depois, a área foi sendo expandida, os morros foram sendo
livrados da ação policial, um após o outro, cidade
após cidade. Nas prisões, o primeiro teste foi em São
Paulo: com precisão perfeita, garantida pela moderna tecnologia
de telefonia celular e pelos computadores ligados na Internet, foi possível
comandar as rebeliões
simultâneas em mais de 30 presídios em todo o estado,
como uma demonstração de força e aproveitando para
distrair as atenções, de forma que ninguém desse atenção
a uma grande movimentação de narcóticos então
ocorrida. E, enfim, a grande demonstração de poder ao Brasil
e ao mundo: uma cidade inteira paralisada pelo
medo durante 24 horas, sem que fosse preciso disparar um tiro!
Os negócios
com a Colômbia ajudaram bastante, e o estabelecimento de uma rota
livre para a exportação dos produtos agro-industriais do
vizinho país ajudaram a obter divisas para a compra de armamento
pesado e sistemas eletrônicos, necessários para garantir a
segurança nas áreas controladas. Além disso, a contínua
movimentação de dinheiro, devidamente lavado em paraísos
fiscais, garantiu o discreto apoio da poderosa banca internacional, facilitando
bastante na hora do golpe: o sistema financeiro não iria atrapalhar
os planos de expansão de seu maior cliente.
Na área
de relações internacionais, também, a compra de armas
em grande quantidade garantiu o apoio do conglomerado industrial fornecedor
desses produtos - o mesmo que ajudou a eleger o presidente da mais
poderosa nação do planeta, um mentecapto telecomandado que
os próprios alemães comparam a Hitler (o nazista, pelo menos,
era um pouco mais esperto).
"Bem - pensa
Fernando B.M. -, preciso me lembrar de solicitar um auxílio especial
ao grande irmão do Norte, para garantir que a ONU fique fora do
meu caminho. E é tão simples: basta que o G. Washington B.
mande o recado de que não vai pagar as verbas atrasadas de manutenção
desse organismo, se eles começarem a criar obstáculos. Não
seria a primeira vez..."
Fernando B.M.
lembra, aliviado, das claras mensagens ao mundo dadas pela grande potência
e suas coligadas, de que vale tudo desde que
com sua bênção. Vale a Milícia
do Norte expandir o cultivo de papoulas para a produção
de drogas, desde que o oleoduto possa atravessar o Afeganistão.
Não vale cultivar drogas na Colômbia, se o grupo não
tiver se afinado com os interesses daquelas potências. Vale atacar
a Palestina, se os capitais judeus estão afinados com a indústria
de armamentos e os governos das grandes potências. Vale trocar armas
por drogas para apoiar os opositores iranianos (pena que o mundo descobriu
a jogada do governo dos EUA, conhecida como Irã-contras). Vale atacar
país após país, com uma desculpa qualquer, se quem
ataca é uma potência. Não vale um povo se defender
de agressões continuadas ao seu território, ao seu povo,
como quando as crianças palestinas se defendem com pedras contra
os tanques israelenses que invadem suas cidades e matam seus pais. Como
sempre, aos amigos tudo, aos inimigos...
"Nesse mundo
em que nem é mais preciso disfarçar e criar desculpas, eu
assumir o poder no Brasil é até um ato legítimo -
pensa Fernando B.M. -. Pelo menos acabou com a hipocrisia dos governos
anteriores, que fingiam não saber o que acontecia enquanto tudo
estava acontecendo às vistas de todos.
Eles falavam em combater o crime organizado, usando policiais residentes
entre os criminosos e que tinham de pagar pelas próprias balas,
por falta de recursos para equipar as polícias. Recursos que nunca
faltaram para garantir o sistema bancário como sendo o maior negócio
das últimas décadas no Brasil".
Bem, chega de
recordações. É hora de começar a baixar os
primeiros atos institucionais. O PCC - com grande
número de correligionários em São Paulo - se torna
um partido político oficial. Para não dizerem que aqui não
tem democracia, sigamos os exemplos de 1964, quando os outros revolucionários
também criaram um partido acessório, para funcionar como
"oposição", hehehe: será o Comando Vermelho. Afinal,
o mundo inteiro sabe que vermelho é símbolo de oposição,
embora a foice e o martelo já não sejam mais usados...
É preciso
completar o expurgo nos quadros policiais, retirando os últimos
elementos contrários ao regime que agora assume - tais indivíduos
são subversivos, e é dever de todo governo lutar contra os
elementos que possam ameaçar a estabilidade democrática e
perturbar os negócios. Se bem que não é preciso muita
preocupação: é só mandar uns recados aos seus
familiares nas favelas e eles se aquietam. Afinal, não estão
articulados, não têm armas, sabem que nada que façam
será produtivo - pois a Justiça está
sempre com o Poder...
A área
militar também não preocupa: sem verbas, desmantela-se por
si só, até dispensa os soldados por não ter como manter
esse contingente. Quando não explode seus próprios arsenais
e afunda seus submarinos no porto, em águas tranqüilas...
O que preocupa
mesmo é que este novo governo assume praticamente sem
ter o que dar às potências internacionais, pois os governos
anteriores já entregaram tudo o que podiam: telecomunicações,
energia, bancos, navegação marítima,
instalações
industriais, base de foguetes, toda a tecnologia
nacional, até o idioma oficial passou a ser o portinglês ("preciso
me lembrar de mudar esse detalhe na Constituição, oficializando
o novo idioma nacional..."). O que não conseguiam entregar, afundaram
ou destruíram, como as plataformas da Petrosutiã.
Entregar a Amazônia,
fora de cogitação. Ela precisa ficar como está, para
que os missionários biólogos completem
sua tarefa de mapear seu potencial para a produção de remédios
patenteados no exterior. As grandes potências da área de medicamentos
não concordarão em que se oficialize uma zona internacional
nessa área, pois isso chamaria atenção demais para
o trabalho desses esforçados religiosos. Os missionários
geólogos, encarregados de conferir em terra os indícios de
minérios importantes apontados pelos satélites,
também ficariam expostos à mídia internacional. E
ainda poderia haver uma grita geral contra os EUA pelo
uso de agentes desfolhantes na Amazônia - usados para destruir
as plantações colombianas apoiadas pelos guerrilheiros, mas
que inevitavelmente escorrem para os rios brasileiros. Não, isso
tem de ficar de fora.
Fernando III
(o Fernando B.M., terceiro no poder depois do destronado em 1990 e do sociólogo
que rasgou seus próprios livros poucos anos depois) se permite um
último instante de reflexão. Lembra de como milhões
de carneirinhos - ops! Brasileirinhos -
aceitaram declarar às urnas eletrônicas (e
aos juízes que as inventaram) sua intenção de
eleger
um ex-operário para a presidência do País. Fernando
lembra como logo em seguida a ex-namoradinha do Brasil, traindo
sua biografia, aceitou fazer o pior papel de sua carreira, dizendo na televisão
nacional do seu enorme temor de que tal operário
fosse eleito. Só faltou dizer que ele comia criancinhas.
Temia a famosa
atriz as mudanças que poderiam surgir. Não lembrava que,
no regime apoiado pelo candidato
que lhe cedia espaço, um grupo de criancinhas foi morto por
policiais, nas escadarias da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro,
pelo crime de não ter onde morar, nem pais ou escolas que as acolhessem.
Esquecia que muitas outras crianças, principalmente nas praias nordestinas,
estavam sendo literalmente comidas por "turistas" interessados em prazeres
mais profundos proporcionados pela quente natureza tropical - em troca
de algumas gorjetas para comprar a água liberada a conta-gotas pelos
coronéis do sertão. Esquecia a atriz que a maior metáfora
para o governo por ela defendido era o próprio
apagão
nacional de 2001, corolário de um trabalho
minucioso de demolição do País.
Bem, chega
de recordações. Um árduo trabalho espera a nova junta
governativa, a partir do próximo minuto. É preciso melhorar
as estradas, para que o caríssimo pó esbranquiçado
cuja produção sustenta este regime possa ser levada aos pontos
de destino. Há que cuidar da saúde, pois o número
de picadas dos mosquitos da dengue já ameaça ser maior do
que as feitas pelas agulhas de seringas, nos sopés dos morros. É
preciso organizar melhor a educação,
pois o truque dos pipoqueiros nas portas das escolas já não
faz sentido e o uso de alunos-traficantes precisa ser melhor organizado,
tem havido muita queixa dos professores de que eles estão atrapalhando
as aulas.
Felizmente,
no Congresso este novo governo possui fortes
aliados, regularmente eleitos. Isso facilitará muito a passagem
"legal" de algumas medidas legais necessárias,
como o discreto fim do limite de 12% ao ano na taxa de juros, das normas
que proíbem o corte de serviços essenciais
aos devedores inadimplentes etc. No Judiciário,
também é evidente que não haverá problema,
é só analisar quantas vezes os juízes resistiram de
fato às inconstitucionalidades do governo. E eles têm a desculpa
eterna para não fazer o que precisam: estão atulhados de
processos, que levarão décadas para julgar (e preferem construir
prédios luxuosos a colocar alguns computadores que agilizem
os trabalhos)...
O tempo voa.
Já passa um minuto da meia noite. É hora de começar
a ação. Mas toda essa correria deu fome. Um lanchinho rápido
não vai mal. Começando por uma fruta que é o símbolo
de muitas republiquetas, ótima para auxiliar na digestão
do que vem por aí.
Embora se identifique
muito com o espírito da seção, mostrando as mazelas
nacionais e internacionais dos últimos tempos, o texto acima deve
ser considerado como extra-concurso, não concorrendo entre os demais
da edição 2002 do Festival de Besteiras que Assola a Internet
(Febeanet). Pelo menos enquanto a cogitada posse
de Fernando B.M. não se efetivar.
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