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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 12/15/01 12:23:38
FEBEANET
Brasil se ejeta da corrida espacial

Verdadeiro festival de absurdos está contido no acordo entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos para uso pelos EUA da Base de Lançamentos de Alcântara, no Maranhão. O maior absurdo é que o acordo fere claramente a soberania brasileira sobre seu próprio território, já que a partir dele os EUA passam a ter pleno direito de agir como quiserem, com seus representantes entrando e saindo de território (que era) brasileiro, com quaisquer cargas, sem que o Brasil possa exercer a necessária fiscalização. Além disso, o Brasil perde a soberania de negociar com outros países quaisquer acordos que não tenham a bênção dos EUA (artigo III, alínea F).
 

Base de Alcântara: captura de tela de reportagem da Rede Globo de Televisão às 0h06 de 24/10/2001 Base de Alcântara: captura de tela de reportagem da Rede Globo de Televisão às 0h06 de 24/10/2001

Indefinido - O mais interessante é que tal acordo não se define, nem tem definição clara pelo governo brasileiro, pois nas versões preliminares era chamado de acordo de cooperação e na versão final virou acordo de salvaguardas tecnológicas.

Se é um contrato de aluguel, em lugar algum está especificado o valor da locação. Existe apenas a restrição - mais um atentado à soberania brasileira - de que a renda obtida com tal acordo não poderá ser empregada no programa espacial brasileiro (exceto na melhoria de acessos e instalações que facilitem as atividades para os norte-americanos, conforme o artigo III, 1, E). Mas o governo diz que não é acordo de aluguel e que os recursos obtidos se diluirão no caixa único do Tesouro Nacional, que é soberano para aplicá-los como desejar. De qualquer forma, mesmo sendo inútil na prática, o que faz em tal acordo uma cláusula assim, subordinando apenas o Brasil, em vez de exigir o mesmo dos dois signatários? Por que não é exigido o mesmo dos EUA, que os recursos obtidos com os lançamentos não sejam empregados no programa espacial estadunidense?

Se é um acordo de salvaguarda de interesses, torna-se desnecessário como instrumento entre países, já que existem para isso acordos internacionais e legislações nacionais. Mesmo os acordos bilaterais costumam ter um caráter mais genérico, enquanto o documento recém-assinado lembra mais um contrato. Entre empresas, tais interesses seriam salvaguardados nos próprios contratos, que aliás não podem ferir leis nacionais e acordos internacionais.
 

Base de Alcântara: captura de tela de reportagem da Rede Globo de Televisão às 0h06 de 24/10/2001 Base de Alcântara: captura de tela de reportagem da Rede Globo de Televisão às 0h06 de 24/10/2001

Se, entretanto, como afirma em seu título, é um acordo de cooperação, entre dois países, não há informação alguma sobre que cooperação estará sendo prestada pelos Estados Unidos ao Brasil em contrapartida à cooperação brasileira. Por exemplo, em nenhum ponto há a referência de que o Brasil ganha direito de acesso ao Centro de Lançamento da NASA nas mesmas condições, podendo transitar por território norte-americano com pessoas e equipamentos lacrados livres da vigilância aduaneira daquele país, ou que o Brasil terá, em reciprocidade, direito a uma área exclusiva para suas atividades em Houston, na qual só poderão entrar pessoas autorizadas pelo governo brasileiro. 

Pelo contrário, a preocupação maior do acordo é justamente evitar que o Brasil se beneficie de alguma forma com a transferência de tecnologia. É notável como até a soberania brasileira é desrespeitada seguidamente, para garantir o sigilo das operações norte-americanas em território brasileiro. Se os EUA quiserem lançar desde Alcântara foguetes com ogivas nucleares, o Brasil só ficará sabendo quando elas explodirem, ou após algum acidente provocar vazamento radioativo durante o percurso das cargas lacradas pelas cidades e estradas brasileiras... (não há qualquer salvaguarda quanto a isso no documento... seria proposital? Bom lembrar que os EUA recém-decidiram revogar unilateralmente a participação no acordo ABM de restrição a anti-mísseis balísticos e estão empenhados no projeto Guerra nas Estrelas).

Mesmo que tal acordo seja parte de um conjunto de entendimentos, a serem (ou que já tenham sido) complementados por outros documentos, não há nenhuma referência a esses outros documentos bilaterais, vinculando tal acordo de cooperação a tais entendimentos. Com isso, tal acordo tem "vida" própria, dando a uma potência estrangeira direitos de soberania sobre território nacional sem exigir qualquer contrapartida. Deixa de ser uma relação de troca, saudável ou não, para se tornar um acordo de cessão de direitos. Como os que os vencidos costumam assinar com os vencedores, ao final de uma guerra. Só que nem precisou haver guerra, a julgar pelos dados disponíveis o Brasil já se rendeu por antecipação... 
 

Base de Alcântara: captura de tela de reportagem da Rede Globo de Televisão às 0h06 de 24/10/2001 Base de Alcântara: captura de tela de reportagem da Rede Globo de Televisão às 0h06 de 24/10/2001

Sem fiscalização - Pelo acordo, o Brasil na prática cede aos EUA parte de seu território, pois perde o direito de fiscalizá-lo (artigo VI) e de que qualquer de seus cidadãos por ele transite sem a permissão expressa dos Estados Unidos. Perde também o direito de fiscalização aduaneira de cargas destinadas à base de Alcântara (artigo VII, 1, B), podendo os EUA transitar por portos, estradas e cidades brasileiras com tais cargas sem que o governo brasileiro tenha ao menos o direito de conferir o que está nelas contido. Mais: estrangeiros autorizados pelo governo norte-americano poderão transitar livremente pelo Brasil, acompanhando tais cargas (artigo VI, 3). 

Com isso, fica anulada na prática a alegação (apresentada em documento aos congressistas pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, em 5/8/2001) de que o governo brasileiro mantém soberania inclusive militar sobre o centro de lançamentos de Alcântara: como fiscalizar, se não tem acesso pleno? E onde está no acordo a proibição da presença de militares estrangeiros, ainda mais que o texto obriga o Brasil a permitir o acesso e trânsito das pessoas ("servidores do governo dos Estados Unidos da América", artigo VI, 3) designadas pelos norte-americanos? Aliás, a fiscalização das cargas lacradas será feita pelas autoridades brasileiras mediante documentos emitidos pelos EUA, sendo vetada pelo acordo a conferência física da carga pelo Brasil (artigo VII, 1, B). 

Até o direito à informação, tão caro aos Estados Unidos que se sobrepõe a outros na Constituição daquele país, é restringido no acordo de Alcântara, na medida em que, caso ocorra um acidente e partes dos veículos lançadores ou de suas cargas caiam em território brasileiro, o governo impedirá que eles sejam "fotografados de qualquer maneira" (artigo VIII, 3, B). Ora, em tais situações é problema dos interessados tentar ocultar as informações, não se podendo negar ao jornalista o direito de divulgar as informações que obtiver. Como em uma guerra, aliás: os governos podem ocultar ou omitir informações que considerem importantes, mas não têm o direito de impedir que cheguem ao público as informações que a imprensa conseguir.
 

Base de Alcântara: captura de tela de reportagem da Rede Globo de Televisão às 0h06 de 24/10/2001 Base de Alcântara: captura de tela de reportagem da Rede Globo de Televisão às 0h06 de 24/10/2001

Cancelamento - Se o Brasil quiser cancelar o acordo por qualquer motivo, terá de manter a vigência do mesmo por ao menos um ano após a notificação aos EUA (artigo X, 3). O acordo não expressa qualquer restrição ao uso da base de Alcântara para fins militares, até mesmo contra países amigos do Brasil. Na prática, pode-se entender que obrigatoriamente todo inimigo dos EUA será automaticamente inimigo do Brasil, sem que os brasileiros possam ao menos deliberar sobre isso. O que significa efetivamente o preâmbulo "cooperação realizada sob a égide do Acordo-Quadro entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América sobre a Cooperação nos Usos Pacíficos do Espaço Exterior, assinado em 1º de março de 1996", quando os EUA estão denunciando tais acordos e se propondo a militarizar o uso do espaço exterior?

Curiosamente, um item interessante do acordo, que permite anulá-lo (se algum governante brasileiro tiver coragem para tal), é a alínea 1 do artigo III, onde consta: "A República Federativa do Brasil não permitirá o lançamento, a partir do Centro de Lançamento de Alcântara, de cargas (...) cujos governos, a juízo de qualquer das Partes, tenham dado, repetidamente, apoio a atos de terrorismo internacional". Ora, mesmo não contando estranhas intervenções em países da América Central, da África etc., o simples fato de os Estados Unidos terem dado apoio logístico e financeiro ao terrorista internacional Osama Bin Laden, durante todo o tempo em que este agiu contra os russos no Afeganistão, já bastaria para caracterizar o governo estadunidense, "a juizo de qualquer das Partes", está incurso nesse dispositivo. Seria interessante, para variar um pouco, ver o Tio Sam usar sua dialética para sair dessa, sem usar a força bruta!

Base de Alcântara: captura de tela de reportagem da Rede Globo de Televisão às 0h06 de 24/10/2001
Valores - Como alerta a Rede Praxis, que em suas páginas Web denuncia a manobra, tudo isso está sendo feito para que o Brasil receba US$ 40 milhões/ano, em troca de benefícios quase inestimáveis ao mercado internacional de lançamento de foguetes (estimado em US$ 4,5 bilhões/ano, 80% em mãos norte-americanas): o simples fato do Centro de Lançamento de Alcântara (que custou ao Brasil algo como US$ 300 milhões) estar posicionado junto à linha do Equador permite economia de até 31% no combustível usado para a propulsão de tais veículos. 

Nem é bom (para os EUA) lembrar que uns 30% a menos de combustível também podem significar cerca de 30% mais de espaço vendido para transporte de carga útil. Há outras vantagens, como a maior "janela" para lançamentos (períodos em que há condições adequadas para a colocação de satélites em órbita) e a maior ocorrência de dias com clima favorável, em relação às instalações nos EUA. O que significa maior número de lançamentos possíveis, com mais carga comercial enviada ao espaço.

Benefício colateral para os norte-americanos é garantir o afastamento de pretensões brasileiras à participação na corrida espacial, já que o local onde grande parte das pesquisas brasileiras vinha sendo feita agora fica praticamente tomado pelos "licenciados" dos EUA, restringindo-se o acesso brasileiro ao local. 

Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão
Detalhe final: não há uma linha no acordo para salvaguardar a tecnologia brasileira, garantindo que ela fique livre de alguma "inspeção" por autoridades estrangeiras (que poderá ser feita até sem prévio aviso ao Brasil - só depois de feita tal inspeção os brasileiros ficarão sabendo - talvez - se, por acaso, não terão sido fiscalizados também os segredos nacionais). A propósito, embora o acordo inicial seja aprovado pelos dois governos, seus termos podem ser modificados ("emendados") com base em negociações diretas entre as partes (Artigo X, 2). Em tese, cada novo acordo também deve ser apresentado ao Congresso para exame, mas na prática não é impossível que ocorram ajustes em nível diplomático, não levados à deliberação pelo Legislativo. Muitos ajustes secretos já foram feitos entre governos no passado, o que permite tal especulação.

Por tudo o acima demonstrado, e principalmente pela forma como foi e é impedido à sociedade brasileira o pleno debate sobre o texto, o acordo de Alcântara está devidamente lançado nos anais deste Festival de Besteiras que Assola a Internet (Febeanet)...  

Veja mais:
As "explicações" do governo brasileiro ao Congresso
O acordo (fac-símile) entre Brasil e EUA: 
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