As chamas propagaram-se com rapidez, formando um cenário fantasmagórico
Foto: Arnaldo Giaxa, A Tribuna, 5/8/1985
Incêndio destrói o antigo Paço
Santos perdeu um de seus principais monumentos históricos: quatro paredes foi o que
restou do imponente prédio do Largo Marquês de Monte Alegre, parte do conjunto arquitetônico de estilo colonial, datado de 1867, destruído na
madrugada de ontem por violento incêndio que durou quase seis horas e deu muito trabalho ao Corpo de Bombeiros. O imenso casarão de três pavimentos,
que abrigou a Câmara e a Prefeitura até o ano de 1939, estava hoje completamente abandonado, sendo ocupado apenas em seu andar térreo por firmas
comerciais - uma borracharia e dois bares - também totalmente destruídas. Do conjunto de prédios, que está em processo de tombamento pelo
Condephaat, restou apenas uma parte, onde estão instalados alguns bares e o Hotel Monte Alegre. No momento em que o incêndio começou, por volta das
22h40, os hóspedes abandonaram os quartos em pânico, só retornando quando a situação foi dada como sob controle pelos bombeiros.
Para combater as chamas, que atingiam grande altura, foram utilizadas 10 viaturas e 35
homens comandados pelo capitão Almeida Lima, além de três rebocadores (dois da Wilson Sons e um da Codesp), cinco carros-pipa (dois da Prefeitura,
dois da Sabesp e um da Codesp) e uma barcaça com 100 mil litros de água, cedida pela Codesp. Evitar que o fogo se propagasse para o prédio ao lado
foi a principal preocupação dos bombeiros, que só normalizaram a situação por volta das 4h30, embora os serviços de rescaldo prosseguissem durante
todo o dia de ontem para neutralizar outros focos de incêndio.
Mesmo chegando rapidamente ao local, os bombeiros não tiveram condições de evitar a
destruição do prédio, já que, por encontrar material de fácil combustão, o fogo atingiu grandes proporções em poucos minutos, fazendo desabar o teto
e os assoalhos dos dois pavimentos superiores, tudo de madeira antiga. Nesse local, funcionou até há pouco tempo o Hotel Danny, que atualmente
estava desocupado.
Segundo o operador de comunicações do 6º GI, Décio, os soldados Nascimento e Celestino
sofreram pequenos ferimentos quando trabalhavam no combate ao fogo. Eles foram as únicas vítimas, pois os estabelecimentos comerciais instalados no
andar térreo já haviam encerrado o expediente. Décio revelou que já haviam ocorrido outros incêndios no velho casarão, a maioria dos quais
provocados por indigentes que costumam cavar buracos nas paredes para utilizá-los como cinzeiros, e muitas vezes esqueciam o cigarro aceso.
Ao tomar conhecimento do sinistro, por volta das 11 horas de ontem, quando participava
da reunião de posse da Sociedade de Melhoramentos do Campo Grande, o prefeito Osvaldo Justo disse lamentar o ocorrido, pois considera o prédio como
"uma testemunha viva do nosso passado". Lembrou que, com as obras do Projeto Aglurb, que serão realizadas do Valongo ao Paquetá, o conjunto
arquitetônico da Marquês de Monte Alegre teria sua imponência ainda mais destacada com a urbanização daquele trecho.
Há alguns anos, outro patrimônio histórico e artístico da Cidade foi também destruído
por um incêndio: o Cine-Teatro Guarani, situado na Praça dos Andradas. Dele só sobrou a fachada, ainda preservada em virtude do empenho de algumas
pessoas, que defendem a sua restauração para evitar que Santos perca de vez aquele patrimônio.
Do imponente casarão restaram apenas as quatro paredes externas
Foto: Walter Mello, A Tribuna, 5/8/1985
Rescaldo prosseguiu pela manhã
Ontem de manhã, enquanto uma equipe do Corpo de Bombeiros prosseguia o trabalho de
rescaldo, tentando eliminar os focos de incêndio que ainda existiam no meio do grande amontoado de madeira e borracha, os proprietários dos
estabelecimentos comerciais que funcionavam no andar térreo do prédio sinistrado comentavam entre eles as possíveis causas do incêndio. As versões
foram as mais desencontradas, pois, enquanto alguns afirmavam que o fogo começou no primeiro andar, onde até há cerca de um mês funcionou o Hotel
Danny, outros insinuavam que o sinistro teve início na borracharia instalada no andar térreo, pertencente a José Luiz Hernandes, também proprietário
do Bar São Paulo, localizado ao lado.
Pelas notícias que corriam no local, a única testemunha foi José Augusto Silva,
empregado da borracharia, que estava dormindo no prédio e acordou com o cheiro da fumaça. "O incêndio começou no andar de cima", disse ele, para
explicar que correu até um bar da esquina para pedir que alguém telefonasse para o Corpo de Bombeiros. Já uma outra versão dava conta de que o fogo
começou justamente na borracharia, propagando-se para o andar superior (Hotel Danny), onde não havia ninguém.
No meio de tantos boatos, comentou-se, também, que, apesar do hotel estar desativado
há um mês, o local era ocupado por indigentes que teriam sido os causadores do sinistro. Alguém, que acompanhava o trabalho dos bombeiros defronte
da estação de trem, chegou a afirmar que a luz do hotel estava acesa antes do incêndio, indicando a possibilidade do local ter sido invadido por
estranhos. Só que a porta do hotel, que fica de frente para a estação da RFFSA, estava lacrada, daí porque não foi possível comprovar essas
afirmações, permanecendo um mistério que possivelmente nunca será desvendado.
Desolado com as conseqüências do incêndio, Irineu Rodrigues, sócio de José Luiz
Hernandes no Bar São Paulo, que ocupava quatro portas do prédio, comentava que eles adquiriram o bar há um mês e que estavam reformando o
estabelecimento para melhorar seu aspecto interno. Lembrou que há cerca de três semanas ladrões roubaram todas as calhas de cobre do hotel e que,
por isso, teve de providenciar a recuperação do telhado para impedir a infiltração de água.
Explicando que não sobrou nada do bar, Irineu acrescentou um outro detalhe sobre a
possibilidade de invasão de desocupados nos andares superiores. Disse que, para entrar no local, essas pessoas entravam pelo Hotel Monte Alegre, que
fica na outra parte do conjunto arquitetônico não atingido pelo fogo e, de lá, alcançavam o Hotel Danny, que estava com suas janelas quebradas. Pelo
que se soube, o fogo teria começado realmente no pavimento do meio.
Outro estabelecimento que ficou totalmente destruído foi o Bar Ponto 1, também de
frente para a estação ferroviária. Edson Teles de Andrade, um dos sócios da firma, calculava prejuízo em torno de Cr$ 50 a 60 milhões. Ele foi
avisado durante a madrugada e não teve tempo de retirar nada, lamentando principalmente a perda de um fogão e uma geladeira, em estado novo, que
comprara para sua futura residência, já que está com o casamento marcado. Entre os objetos destruídos pelo fogo, estavam três mesas de esnúquer que
possibilitavam maior receita ao bar.
Quando o dia clareou, os bombeiros puderam ver melhor
os grandes estragos provocados pelo fogo, que praticamente destruiu o interior do velho edifício
Foto: Walter Mello, A Tribuna, 5/8/1985
Surpresa, a historiadora não acreditou na notícia
"Não brinca! Não é possível! Que horror!"
Foi assim que a historiadora Wilma Therezinha Andrade reagiu ao tomar conhecimento da
destruição da metade do velho casarão. Sem esconder um pouco de revolta pela demora no andamento do processo de tombamento pelo Conselho de Defesa
do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico - Condephaat -, iniciado em 1976, ela comentou o empenho do Centro de Estudos
Históricos - Cehist - da Faculdade de Filosofia, da Sociedade Visconde de São Leopoldo, para preservação do imóvel.
Wilma lembrou que foi justamente em virtude de uma reforma, que estava desfigurando a
fachada do imóvel, que o Cehist reivindicou o tombamento. A obra foi concluída e, para alívio da historiadora, verificou-se que, depois de tombado,
o prédio teria condições de voltar a ter suas características originais, datadas de 1867. Ocorre que a reforma foi simples, com substituição de
algumas portas por janelas.
Foi o comendador Ferreira Neto, um rico capitalista, quem construiu, em duas etapas, o
casarão do Largo Marquês de Monte Alegre. A primeira foi concluída em 1867, e a outra, cinco anos depois, ambas em estilo neoclássico, que estava em
moda na época do imperialismo. O mesmo comendador construiu o casarão de frontaria azulejada, situado na
Rua do Comércio, recentemente desapropriado pela Prefeitura.
Segundo a historiadora, a suntuosidade era tanta que a construção acabou gerando
boatos sobre a transferência da sede do governo da província para Santos. Mas ele foi edificado para servir de moradia (parte alta) e casa de
comércio (andar térreo). Wilma afirma que 30 anos depois de construído ele passou a ser a sede da Câmara e da Intendência de Santos (antiga
Prefeitura), que lá permaneceram até 1939, quando foi inaugurado o Paço Municipal, na Praça Mauá.
Lamentando o incêndio, Wilma comentou que a Cidade perdeu mais um pouco do seu passado
histórico. Na sua opinião, era importante a homogeneidade da área do Valongo, onde se concentra a maior quantidade de prédios antigos que ainda
guardam suas características originais: "Em comparação com o restante da Cidade, é a área que ainda preserva, no seu conjunto, um patrimônio
histórico muito grande. Mais vale o conjunto do que um prédio antigo preservado, mas isolado, no meio de construções modernas".
Tombamento - Quando foi feita a reforma, a historiadora protestou com
veemência: "Estão destruindo um dos principais prédios do Brasil em estilo imperial, que se encontra principalmente na Bahia e Rio de Janeiro. O
imóvel mostra a influência neoclássica, com o uso do arco romano nas janelas e portas, gradis e vidraças. Recebeu também influência da arquitetura
francesa, que começou no Primeiro Império".
Já naquela época, Wilma defendia o aproveitamento do Largo Marquês de Monte Alegre,
argumentando que poderia ser utilizado como um potencial turístico da Cidade: "De um lado está a Igreja do Valongo, em estilo barroco; do outro, o
prédio em estilo imperial; de frente para ele, a estação da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, um monumento vitoriano.
Talvez o local pudesse ser aproveitado para uma feira de artesanato", sugeria a historiadora em abril de 1974.
Num trabalho de pesquisa, denominado A Antiga Prefeitura de Santos, Wilma
aborda a transferência do Paço, que funcionava num velho casarão da Praça dos Andradas, para o prédio do Largo Marquês de Monte Alegre: "Em setembro
de 1894, as autoridades santistas conseguiram realizar o velho sonho. Pela lei 39, do dia 28, assinada pelo presidente do Estado, Bernardino de
Campos, a municipalidade foi autorizada a arrendar o prédio. O Paço somente mudou para lá em 1895, depois de procedidas amplas reformas".
De acordo com a planta, a Prefeitura e a Câmara estavam distribuídas nos dois andares:
no primeiro, sala de sessões, sala das comissões, Prefeitura, diretoria, secretaria, portaria, vestíbulo, quarto de café, telefone, polícia e
higiene, biblioteca, sala da presidência, hall e arquivo da Câmara; no segundo andar, sala dos engenheiros, amanuenses, diretoria, inspetor
de viação, inspetoria literária, arquivo, vestíbulo, sala dos contínuos, diretoria, subdiretoria, secretaria, câmara escura, sala para fiscais. No
andar térreo havia um depósito e um armazém de secos e molhados.
Consta que os herdeiros do último proprietário do casarão destruído pelo incêndio
moram no Rio de Janeiro, mantendo o imóvel sob a responsabilidade de um procurador. |