Ah, Boqueirão, bairro famoso como ele só! Imaginem: sua fama vem desde o século XIX,
quando sequer levava esse nome. Tudo começou porque na altura da hoje Rua Osvaldo Cruz havia a única "saída grande" para a Barra: era o
boqueirão ou abertura. E Boqueirão ficou. Por causa dessa
saída, para lá acorreram santistas e turistas, quando se descobriu que a praia é um ótimo lugar para a prática de lazer. Uma coisa acaba
puxando outra, logo o bairro ganhou uma linha de transporte coletivo e uma casa de jogos e recreação - o Miramar -, bonita e bem instalada, capaz
de fazer inveja a outras existentes no País e fora dele.
Quando se configurou um novo conceito de bem morar e as famílias ricas começaram a
transferir residência para a orla da praia, o Boqueirão atraiu muitas delas justamente por causa do Miramar. Daí para a frente, o bairro cresceu
como ele só e, ironia do destino ou não, suas áreas valorizaram tanto a ponto de ser mais interessante destruir o tradicional Palácio Dourado
(como era chamado o Miramar) e edificar prédios de apartamentos.
Pois é, o Boqueirão mudou muito, perdeu áreas verdes e ganhou escolas, hospitais,
escritórios e uma infinidade de casas comerciais. O movimento de carros e pessoas segue crescendo em suas ruas e avenidas, e os moradores formam
um contingente de quase 40 mil pessoas.
Os moradores de outros bairros são obrigados a dar o braço a torcer: o Boqueirão é um
dos melhores de Santos. Fora as enchentes que ocorrem quando a chuva cai muito forte, não registra grandes problemas. Pelo contrário, há a praia
(poluída, mas ainda encantadora), comércio diversificado, hospitais, escolas e tudo mais que um lugar precisa para ser considerado
auto-suficiente. E, se nos voltarmos para o passado, saberemos que o Boqueirão foi pioneiro no uso da praia para banhos e lazer.
O Boqueirão do passado mudou muito, perdeu áreas verdes, ganhou escolas, hospitais, prédios...
mas continua com sua música
Coisas do século XIX. Quem em Santos se interessaria em
morar para os lados da praia? O mato era tanto que até cobria parte da areia branca e cheia de conchas cor-de-rosa; quando chovia, muitas áreas se
transformavam num verdadeiro charco; não havia ruas abertas e ninguém tinha o costume de tomar banho de mar ou se bronzear.
Uma prova de que a praia não representava um atrativo é que em 1845 havia uma única saída grande para a
Barra, chamada de boqueirão ou abertura. Essa saída era o trecho final do Caminho Velho ou Caminho Velho da Barra, que começava na
atual Rua Braz Cubas, proximidade da Vila Matias, seguia o traçado da Rua Luís de Camões, atravessando a Rua Otaviana (hoje Avenida Conselheiro
Nébias) para formar a conhecida Encruzilhada, na esquina da Avenida Rodrigues Alves. Seguia então por dentro, percorrendo, mais ou menos, o atual
traçado da Rua Oswaldo Cruz.
O fundador da Sociedade de Melhoramentos
Quando os homens
começaram a descobrir as delícias de um banho de mar, se serviam do caminho. Isso explica por que o Boqueirão (como ficou conhecida a região por
aqueles lados) foi pioneiro no uso do mar para banho e turismo. Em 1860, já se via muita gente metida em compridos calções e pronta para gozar a
praia calma, de águas incrivelmente transparentes.
Nessa época, o Boqueirão registrava a tranqüilidade típica de um local tomado por chácaras. E as pessoas de
visão imaginaram o que estava por vir quando, em 1864, foi instalada uma linha de transporte coletivo (gôndolas) entre o Largo da Coroação (hoje
Praça Mauá) e o Boqueirão.
Tempo de mudanças. O crescimento rápido exigiu a abertura de uma via que pudesse dar vazão ao trânsito de bondes
puxados a burros, que vinham da Biquinha do Itororó até a esquina do Caminho da Ponta da Praia, a hoje Avenida Epitácio Pessoa. A partir dessa
necessidade surgiu a Rua Otaviana, por onde, já em 1872, circulavam bondes que partiam do Largo da Matriz (hoje Praça da República).
E as coisas melhoraram tanto que, em 1876, foi inaugurado o serviço de água encanada no Boqueirão. Em agosto do
mesmo ano, o bairro teve a subida honra de receber a visita do imperador dom Pedro II, que percorreu em bondinho especial a hoje Avenida
Conselheiro Nébias.
Cada vez mais o bairro dava o que falar. Em 1895, Júlio Conceição adquire a Chácara Carneiro Bastos e inicia o
famoso Parque Indígena, tido como o primeiro orquidário municipal. Ocupava nada menos que 22 mil metros quadrados, e ia desde a Avenida Vicente de
Carvalho até a Rua Embaixador Pedro de Toledo, e da Avenida Conselheiro Nébias até o prédio da Pensão Glória, hoje edifício do mesmo nome.
Quem ainda duvidava que não se podia segurar o crescimento do Boqueirão não teve mais dúvidas quando, em 1896,
foi inaugurado o Recreio Miramar, com luz elétrica e outros melhoramentos próprios dos pontos chiques da época. Ao criá-lo, a Viação Paulista nada
mais pretendia do que estimular o afluxo de passageiros. Mal imaginavam os proprietários que o Miramar ganharia fama internacional.
Um novo conceito de bem morar e mudanças na orla da praia - Nasce um novo século (XX). Santos cresce, o
comércio se expande e o Centro começa a perder o status de melhor zona residencial. O novo conceito de bem morar e o desenvolvimento da
chamada função balneária levam a um processo de parcelamento dos terrenos litorâneos e ocasionam uma grande mutação no padrão geral de uso do
solo.
Seu Suppa: muita saudade
As
chácaras de veraneio da orla da praia aos poucos são substituídas por palacetes e muitas famílias preferem se mudar para o Boqueirão devido ao
Miramar, que passou a ser nada menos que o melhor centro de diversões da América do Sul. As habitações mais luxuosas ficavam nas avenidas
Bartolomeu de Gusmão, Vicente de Carvalho e Presidente Wilson, sendo mais valorizadas aquelas próximas à Avenida Conselheiro Nébias.
Lá pelos anos 30, os segmentos mais abastados da sociedade santista habitam em caráter permanente entre o
Gonzaga e o Boqueirão, mais precisamente entre as avenidas Ana Costa e Conselheiro Nébias, área posteriormente denominada Vila Rica.
Cada vez mais Santos se consolida como uma cidade turística e o que se vê, entre o final dos anos 1930 e durante
a década de 40, são velhos palacetes sendo transformados em pensões. Ao mesmo tempo, numa faixa posterior à chamada orla da praia, surgem moradias
de classe média. E quantos de fora não se interessaram em construir casas de veraneios?
Um dos que se entusiasmou com a idéia de ter uma casa em Santos foi o Domingos Antônio Suppa. Ele e a esposa,
Jurema, costumavam se hospedar na Pensão da Rafaella, que ficava no número 505 da Rua Oswaldo Cruz.
Um belo dia, o casal estava em uma janela que dava para a Rua Colômbia e seu Suppa comentou: "Se a gente tivesse
uma casa para fim de semana por aqui..." Dona Rafaella ouviu e foi logo dizendo que um senhor, seu José Félix, tinha terrenos nas imediações e
estava vendendo alguns. Naquele mesmo dia seu Suppa não só acertou a compra do terreno, como contratou um construtor para levantar a moradia.
Tempos depois, veio ver como andavam as obras. Olhou, olhou e não viu nada. De repente, no meio do capinzal
alto, avistou a ponta de um telhado. Não deu outra: a casa era aquela mesma, perdida no meio do matagal.
Ele não esconde o orgulho quando conta que foi a primeira casa de alvenaria das redondezas (fica na Rua Clóvis
Bevilaqua, 1). E com muita satisfação relembra: certa época alugou-a para Judite Monteiro Lobato, irmã do famoso escritor, que a transformou em
pensão.
Em 1946, a família transferiu-se definitivamente para Santos, a tempo de assistir ao primeiro campeonato oficial
de tamboréu na praia, ali mesmo no Boqueirão. E os bondes, como poderia esquecer? Tinha o 13, que seguia até a Ponta da Praia; o 4, que vinha do
Centro, via Conselheiro Nébias, cumprindo o trajeto do trólebus 4, que o substituiu; o N, noturno, famoso por transportar boêmios que varavam
madrugadas nas boates do Centro; e o X, que não parava, vinha direto do Centro para o Boqueirão.
O bazar, casa tradicional
A ordem é ocupar todos os espaços e os prédios multiplicam-se - Quem também se lembra muito bem dos
bondes é o mais antigo comerciante do bairro, José Esteves Fernandes, proprietário do famoso Bazar 5 de Outubro. Seus irmãos, João Esteves
Abrantes e Luís de Jesus Fernandes, são igualmente antigos comerciantes e donos de estabelecimentos tradicionais: o Bazar Rosa Maria e a Padaria
Clássica.
Mas quem liderou as vendas por pelo menos 10 anos, não só no Boqueirão mas em Santos, foi a Mercearia Carioca,
do seu Zé Silvares, que ficava no número 21 da Epitácio Pessoa. E quem não se lembra da Padaria Independência, instalada onde está hoje a
Drogasil, na Epitácio Pessoa, quase esquina com Avenida Conselheiro Nébias?
Essas duas casas comerciais não mais existem, assim como as crianças não podem fazer das movimentadas ruas onde
moram uma extensão de seus quintais.
Muita coisa mudou desde o final da década de 40, quando surgiram os primeiros edifícios da orla da praia. Em
1955 já estava em pleno curso a corrida imobiliária e, no Gonzaga e Boqueirão, construções ocupam todas as áreas vagas. Quando não havia mais onde
se construir, o boom imobiliário desencadeia um processo até então inusitado: a reedificação de certas porções do espaço.
Graças aos disputados apartamentos dos grandes edifícios próximos à praia, em 1960 o Boqueirão já tinha 18.200
habitantes. Cinco anos depois tinha 20.020; em 1970, 20.081 e hoje seus moradores formam um contingente de quase 40 mil pessoas.
No dizer de Domingos Antônio Suppa, os arranha-céus se multiplicaram feito rojões espocando. A transformação se
deu de uma hora para outra e fica difícil acreditar que há pouco mais de 30 anos sua casa estava no meio de um capinzal. Para matar as saudades
dos velhos tempos, ele recorre às aquarelas onde registrou (e registra) muitas cenas de Santos. |