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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS
O adeus da Sorocabana

Foi com certo alívio que a população santista recebeu o anúncio do fim das atividades com carga da Fepasa/Sorocabana no trecho urbano. Havia a perspectiva de acabarem assim inúmeros problemas urbanos, como passagens de nível insuficientemente sinalizadas, causando acidentes, e as demoradas manobras dos trens, paralisando e congestionando o trânsito urbano. Parte dos planos então anunciados acabou sendo alterada com a privatização do sistema ferroviário, promovida logo depois. Mas o clima da época se reflete nesta matéria, publicada em 15 de outubro de 1995 pelo jornal santista A Tribuna:

A Sorocabana vai embora

Trens de carga da Fepasa vão sair da Cidade, liberando o trânsito para os demais veículos nas mais movimentadas avenidas

Áureo de Carvalho
Da Redação (e Pesquisa A Tribuna)

Agora é verdade: a Fepasa (ex-Estrada de Ferro Sorocabana) vai mesmo tirar da Cidade os trens de carga que cortam as principais ruas e avenidas de Santos e São Vicente, onde bloqueiam o trânsito e transtornam a vida dos moradores.

O fim dos trens de carga nas áreas urbanas da Ilha de São Vicente foi oficialmente anunciado pelo presidente da Fepasa, Renato Casali Pavan, que esteve em Santos no último dia 4, inaugurando o transporte intermodal Brasil-Paraguai. Pavan não fixou datas, mas garantiu que a ferrovia estatal vai vender as áreas que possui, hoje supervalorizadas, entre as avenidas Ana Costa e Bernardino de Campos, incluindo os armazéns que dão frente para a Rua Pedro Américo.

Com a venda, a Fepasa espera conseguir os US$ 4,5 milhões de que precisa para terminar a implantação do terceiro trilho entre o Perequê (Cubatão) e o Valongo (Santos), e, dessa forma, promover um desvio das composições de carga, diretamente ao porto, como previu um convênio assinado em 1990, envolvendo a Codesp, a Rede Ferroviária Federal e a ex-Sorocabana. Pelo acordo, caberá à Rede Ferroviária Federal a sinalização eletrônica do trecho de 16 quilômetros, que vai custar cerca de US$ 4 milhões, e prevê a integração do novo sistema com o já existente. Com isso, dois trens de carga poderão trafegar lado a lado, um na bitola métrica da Fepasa, e o outro na bitola de 1,60 m da Rede Ferroviária Federal, ambos no mesmo sentido, sem nenhuma interferência entre os dois.

No Valongo, uma locomotiva da Codesp receberá os vagões da bitola métrica da Fepasa, promovendo a distribuição nos armazéns e cais do Porto, onde houver necessidade, para carga ou descarga.

Trilhos ficam - O remanejamento dos trens de carga da Fepasa, de Santos para Cubatão, e dali ingressando no Porto através do Valongo, vai tirar da Cidade um dos maiores problemas de tráfego: o bloqueio, ainda que momentâneo, das principais avenidas de acesso às praias.

Os transtornos provocados pelos trens existem há mais de 50 anos, agravados com o crescente aumento das composições, para atender à demanda das exportações pelo cais da Codesp. Por isso, há mais de 50 anos se fala em Santos que a Sorocabana vai retirar os trilhos que cortam o perímetro urbano, com prefeitos, vereadores e até deputados procurando junto ao Governo do Estado uma solução que atenda os santistas, sem prejudicar a ferrovia, cujo crescimento acompanhou as necessidades do Município.

A retirada dos trens de carga, por outro lado, não significa a erradicação do ramal ferroviário, cujos trilhos serão conservados até por medida estratégica, para uso eventual nas emergências. Os trens de passageiros, segundo a Fepasa, não sofrerão solução de continuidade, cumprindo o transporte de caráter social a que se propôs.

O presidente da Fepasa, Renato Casali Pavan, não descartou o aproveitamento mais intensivo da linha férrea existente, com a criação de um serviço rápido de transporte de passageiros metropolitano, de Santos a São Vicente, Cubatão e Guarujá, o chamado metrô de superfície, prometido para a região nos últimos meses do Governo Quércia, mas construído na área de Campinas.


Sem trens de carga, área ocupada pelas linhas da Fepasa
pode ser urbanizada e melhor aproveitada
Foto: Valter Mello/Arquivo

Trem era único transporte

A área que a Fepasa ocupa, no Campo Grande, forma dois triângulos perfeitos: um tem os lados na Avenida Francisco Glicério, Rua Carlos Gomes e Avenida Bernardino de Campos; o outro tem os lados nas ruas Arnaldo de Carvalho e Pedro Américo e avenidas Ana Costa e Francisco Glicério, sem interferência no quadrado onde está localizada a estação de embarque/desembarque de passageiros.

Ali não existiam moradias próximas quando a ferrovia foi construída, mas aos poucos, com o crescimento da cidade, todos os terrenos vizinhos passaram a ser ocupados. Na área junto à Fepasa, entre outras construções, se destaca o Hospital Ana Costa, um dos maiores de Santos.

A Fepasa, todavia, dispõe de outras áreas em Santos, que provavelmente serão desocupadas, no Macuco. São as que formam um quadrilátero nas ruas Borges, Padre Anchieta, João Guerra e Avenida Senador Dantas, onde são realizadas manobras ferroviárias e formados os trens que procedem do porto, com destino ao Planalto. As outras áreas estão junto à estação de São Vicente e em Samaritá.

Importante - Todas as cidades da Baixada e Litoral Sul, incluindo Santos, que hoje abominam a presença dos trens de carga nos respectivos perímetros urbanos, muito devem à ferrovia, que abriu caminhos e promoveu o transporte de passageiros e cargas que se fazia necessário.

Cidades como Mongaguá, Peruíbe, Pedro de Toledo e Juquiá não existiriam sem o velho trem da Sorocabana, que chegou à região bem antes das rodovias, levando ao porto a riquíssima produção agrícola do chamado Vale do Ribeira, hoje servido por inúmeras estradas de rodagem.

O turismo, que sustenta a economia das cidades litorâneas, como Praia Grande, Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe, teve na ex-Sorocabana um dos maiores incentivadores. O passeio preferido de milhares de santistas e vicentinos, nos fins de semana e feriados prolongados, era viajar nos trens da Fepasa, desembarcando nas praias do percurso, e que por isso mesmo ficaram conhecidas e povoadas, atraindo por outro lado as atenções dos paulistas e paulistanos.

Antes da Fepasa e da Sorocabana, a Southern San Paulo Railway Company, que implantou a ferrovia no Litoral, sempre zelou pelos seus bens e pela segurança do tráfego. Em cada cruzamento de via público, junto à cerca de arame farpado que isolava os trilhos, havia uma placa de bronze com os dizeres de alerta: "É proibido transitar pela linha. Pena de multa 5$000".

Não se tem conhecimento de alguém, em Santos, que tenha sido multado por caminhar sobre o leito da ferrovia, cujas placas foram mantidas pela Sorocabana até 1950.


Manobras de trens de carga param o trânsito da Cidade
Foto: Carlos Nogueira/Arquivo

Ativando projetos antigos

O desvio dos trens de carga da Fepasa, procedentes do Planalto, de Santos para Cubatão, ingressando no porto através do Valongo, faz parte de um projeto muito antigo, da década de 30, quando a ferrovia ainda tinha o nome de Sorocabana.

O projeto previa a ligação ferroviária de Mairinque, na linha-tronco da Sorocabana, no Planalto, com a Baixada, pela Serra do Mar, passando por Evangelista de Souza até alcançar Samaritá, na região continental de São Vicente, o que foi conseguido por volta de 1932. A execução do ramal ferroviário na Serra do Mar observou um plano de extraordinária visão do futuro, com uma estrutura de grande arrojo, quando foram construídas pontes, viadutos e túneis com largura suficiente para duas linhas, cada uma com bitola dupla, sem esquecer o espaço necessário ao posteamento para eletrificação do trecho.

A segunda etapa do projeto era a construção do ramal Paratinga (Samaritá), até o lugar chamado Perequê, em Cubatão, contornando a Serra do Mar, num total de 32 quilômetros, onde os trilhos fariam junção com os da São Paulo Railway (SPR, hoje Rede Ferroviária Federal). Desse ponto em diante, o tráfego ficaria por conta da SPR para chegar ao porto, e ingressar na malha da Companhia Docas.

O ramal de Paratinga, todavia, ficou parado por falta de recursos, e só foi reativado na década de 70, quando o Governo Federal, através do Ministério dos Transportes, deu outra dinâmica ao Porto de Santos, construindo inclusive outro ramal ferroviário, que vai de Piaçagüera aos terminais de fertilizantes e de contêineres em Conceiçãozinha (Guarujá), na Margem Esquerda do Estuário, passando pela Ilha Barnabé e Vicente de Carvalho.

Outra ligação - A ligação Paratinga-Perequê já está com bitola mista, de um metro e de 1,60 m, completando outro projeto, que era o de promover a ligação de Campinas com a Baixada, sem passar pelas áreas congestionadas da Grande São Paulo. Os trens de carga que procedem do Interior, da chamada Alta Paulista, e os que chegam do Sul de Minas e do Triângulo Mineiro, em Campinas, entram na linha da antiga Cia. Ituana, até Mairinque, e depois descem a Serra, até Samaritá, Paratinga e Cubatão.

Mas, antes de pensar na ligação com o porto, através de Cubatão, a antiga Sorocabana tinha traçado um outro acesso à faixa portuária, em 1930, quando ainda existia o Matadouro Municipal na Avenida Nossa Senhora de Fátima. Para executar esse outro acesso, a ferrovia reservou nas matas da Baixada, entre Santos e São Vicente, uma faixa irregular de terreno, com mais de 30 metros de largura, cortando áreas hoje densamente povoadas, como os bairros Jardim Santa Maria, Bom Retiro, Rádio Clube, Jardim Castelo, Areia Branca, Jardim Guaçu, Jardim Paraíso e Jardim Nosso lar, até a junção com a linha que cruza o perímetro urbano vicentino.

Em Santos, a junção com o SPR se daria à altura do Saboó, passando nos fundos do antigo Matadouro, e na área onde hoje está o Horto Municipal. Mas até hoje essa ligação não foi executada.


O transporte de passageiros continua e pode crescer
Foto: Irandy Ribas/Arquivo

Na Cidade desde 1908

A Fepasa, ex-Sorocabana, chegou a Santos nos  primeiros anos do século quando, em 1908, a Prefeitura deu autorização à Southern San Paulo Railway Co., para o assentamento "de uma linha de ferro, de Oeste para Leste, fazendo cruzamentos com as vias que se fizerem necessárias, desde a divisa da Comarca de São Vicente, até a divisória dos terrenos aforados ao Governo da República pela Companhia Docas de Santos, quando a interessada fizer prova de propriedade das áreas lindeiras que ocupar, por 50 anos".

Seis anos depois, em 17 de janeiro de 1914, a Southern San Paulo Railway co. inaugurava a linha ferroviária de Santos a Conceição do Itanhaém, passando por São Vicente. Enquanto isso, segundo registros da época, "prosseguiam os serviços na ponte sobre o Rio Itanhaém, um braço de mar forte e violento que, há dias, destruiu todo o estaqueamento feito pelos trabalhadores. Para reforçar o trabalho, foram mandadas vir do Paraná diversas toras de eucalipto, algumas de mais de dez metros de comprimento, parecidas com as que foram usadas na ponte de São Vicente".

A viagem de Santos a Itanhaém, conforme relato de J.C. Martins em Crônicas do Litoral de Anchieta, "durava meio dia, e outro tanto para a volta porque a máquina (locomotiva) fazia constantes paradas no percurso, para abastecimento de lenha e água, além de desenvolver pouca velocidade, para manter nos trilhos o vagão de passageiros, que sacolejava bastante.

"Nas paradas, o foguista (maquinista auxiliar) descia do comboio e se embrenhava nas matas vizinhas, bem próximas dos trilhos, para recolher lenha seca e reabastecer o tanden (depósito de lenha ou carvão das locomotivas a vapor), garantindo assim o alimento à voraz caldeira, sempre insaciável".

Também em Crônicas do Litoral de Anchieta, J. C. Martins conta que antes de chegar a São Vicente "o trem passava por um túnel que a estrada de ferro tinha construído, para se proteger da fúria das ondas do mar, naquele trecho da praia.

"Mais adiante, havia uma grande ponte sobre um rio, tão largo que nem se via direito quem estava do outro lado. A força das águas era tanta, naquele local, que a ponte parecia se deslocar com o peso do comboio. Depois, os trilhos faziam uma curvatura à esquerda, para fugir dos terrenos alagadiços".

Até Juquiá - Nos anos seguintes, a Southern San Paulo Railway Co. conseguira concluir o assentamento dos trilhos até Itanhaém, chegando a Peruíbe, "onde vivia o padre José de Anchieta", e depois de vencer um pequeno trecho de serra, chegando também a Juquiá.

O trem era o único meio de transporte de toda a região, e passou a escoar toda a produção de frutas (predominantemente bananas) e madeiras para o porto, seguindo dali ao Planalto, também por trem, da São Paulo Railway (SPR).

A produção de banana cresceu muito com o transporte ferroviário entre Juquiá e Itanhaém, passando a ocupar todos os vagões disponíveis da estrada de ferro, que se viu forçada a investir na compra de novas unidades, além de outras locomotivas. Na década de 1920 a Southern San Paulo Railway foi adquirida pela Estrada de Ferro Sorocabana, que pertencia ao Governo do Estado de São Paulo, ganhando a denominação de Linha Santos-Jundiaí, situação que se manteve até meados da década de 1930, quando a mesma Sorocabana completou o ramal de Mairinque, interligando o Litoral ao Planalto.

Para atender às necessidades da Linha Santos-Jundiaí, a Sorocabana montou em Santos uma fábrica de vagões e oficina de reparos de locomotivas, que funcionaram na área entre as ruas Padre Anchieta e João Guerra, no Macuco. Na década de 40, a ferrovia transferiu para Sorocaba todas as suas oficinas de Santos, levando também todo o pessoal técnico. As áreas do Macuco foram transformadas em pátio de manobras dos trens de carga, enquanto todo o serviço de passageiros ficou concentrado na estação da Avenida Ana Costa, concluída na década de 40.

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