Conhecer o Saboó é ter uma surpresa em cada esquina. No bairro não moram nem três mil
pessoas, mas nele se misturam modos de vida bem peculiares, como se tudo não fosse parte do mesmo todo. Há desde recantos onde as árvores
emolduram o caminho e pássaros cantam, até outros onde os moradores convivem com o ronco dos motores dos carros.
Nas imediações do cemitério residem os mais antigos, e quem quer conhecer um pouco da
história do Saboó basta chegar no bar do Waldemar e conversar com qualquer um dos freqüentadores. Melhor ainda se estiver presente Ramon Ximenes,
coveiro que enterrou Maria Féa e, em certa ocasião, se armou com um pedaço de pau para se defender de um defunto que chegou à noite, boca aberta e
olhos arregalados.
Ele desfia muitos casos, conta façanhas de outras épocas, mas as crianças de hoje estão
lá para provar que ninguém as passa para trás facilmente. Só dois exemplos: enrolam-se em jornais e assustam os mais incautos, e não demonstram
nenhum receio de comer os doces deixados no túmulo da "santinha" Jandaia.
Problemas existem, e os mais sérios são enfrentados pelos posseiros do antigo terreno
do IBC. Desde que a área passou para a Prefeitura, temem ser expulsos sem direito a nada. O prefeito anuncia a realização de obras, mas esquece as
famílias que moram ali há mais de 30 ou 40 anos.
Muitas árvores, canto dos pássaros, crianças brincando. Tudo isso ainda existe no bairro do
Saboó
Não é que o Orlando conseguiu de novo? Subiu no bonde em
alta velocidade, sem segurar no balaústre! Melhor que isso, só assistir a mais uma encenação do Adeto, que descia do bonde de costas, fingia que
tinha caído, ficava estatelado no chão, bem em frente ao ferro-velho do Avelino. Gritos, susto, confusão. O condutor parava, todos queriam ajudar
o infeliz e, de repente, ele se levantava e saía rindo, satisfeito com mais essa presepada.
As datas ninguém lembra, mas quem consegue esquecer que no Saboó, num canto pros lados do morro, era jogado o
lixo da cidade. Quantos não mataram a fome graças a esse lixão? Os atacadistas muitas vezes preferiam jogar os alimentos fora que vender
mais barato. Se alguém gritava "chegou o caminhão", era uma correria só. Estava chegando comida, a grande chance de garantir o sustento nos
próximos dias. As crianças viviam lá, catando osso, ferro e vidros para vender pro "seu" Benino, na Martins Fontes, e garantir trocados para o
cinema e doces. O lixão mudou, está na Alemoa e ainda tem gente que cata restos para sobreviver. Mas isso é outra história.
Os meninos daquela época hoje são avós e não gostam de tocar no assunto, com medo de dar mau exemplo.
Insistindo, eles confessam que muitas vezes, na calada da noite, abriram a porteira do pátio onde ficavam os bois que chegavam de trem e seguiriam
para o Matadouro. Pela manhã, só se via morador tomar um enorme susto ao abrir janelas e portas e deparar com os animais.
Susto maior, só quando havia estouro de boiada. E quantos deles o Saboó não assistiu, já que ficava bem no
trajeto entre o pátio e o Matadouro? A gritaria não poderia ser maior, todos tratando de salvar a pele. No dia seguinte, tinha boi zanzando até na
Praça dos Andradas.
Lá pros fundos do cemitério ficavam as chácaras dos japoneses, espanhóis e portugueses. Os espanhóis eram tantos
que ficavam na esquina conversando no idioma de origem. As crianças, quando não estavam por perto tentando apreender, na certa procuravam burlar a
vigilância do velhinho Mota, que tomava conta dos bananais da Companhia União de Transportes.
A molecada tinha medo porque ele vivia com uma foice de cabo muito comprido na mão. Figura muito estranha, mas
ainda assim os meninos insistiam em roubar banana, porque sabiam que era só arrancar em disparada e ele não os conseguia alcançar. De vingança,
quando o velho saía, viravam a guarita dele de pernas pro ar.
Os garotos do Saboó deram muito trabalho também para o Corpo de Bombeiros, porque iam catar coquinho lá pros
lados da Zona Noroeste e acabavam perdidos. Aprontavam cada uma! O Cândido, moleque de pernas compridas, um dia se juntou com outro, fez de barco
uma barrica e saiu remando pelo Rio Saboó, em direção ao Estuário. Quando estavam sob os trilhos da Refesa, passou o trem respingando água quente.
A lição serviu para nunca mais repetirem a façanha.
Nessa época, o Rio Saboó, que corta o terreno da Prefeitura, não era esse fiozinho de água de hoje. Seguia
largo, terreno adentro, e por ele chegavam barcaças carregadas de banana. Um dos grandes golpes contra o rio foi dado com a ampliação da estrada
entre Santos e São Paulo. Surgiram os caminhões, o trânsito cresceu e não havia mais condições de se manter também a Companhia de Transportes
Carmelo Fernandes, que chegou a ter umas 40 carroças e mais de 100 burros.
A estrada, hoje Avenida Martins Fontes, determinou ainda a extinção do enorme jardim que havia bem defronte do
Cemitério da Filosofia. Tinha até barcos, e lá rapazes e moças se juntavam nos fins de semana para conversar. Onde hoje é o Largo da Saudade
ficava o campo do Galo, famoso time de futebol. E, quando pensam nos campos que existiam por ali, os moradores lembram que, como as crianças não
tinham relógio, controlavam o tempo de jogo de acordo com os bondes que passavam. Se o bonde atrasava, o jogo também.
E qual não foi a surpresa quando o bar da esquina, em frente ao cemitério, instalou uma televisão. Novos tempos,
e o aparelhinho milagroso tornou-se a grande novidade. O Português Carlaile não deixava por menos e estabeleceu consumação obrigatória para quem
quisesse assistir aos programas.
Talvez a população não tenha visto nada de tão espetacular até que, por volta das 3 horas da madrugada de 22 de
janeiro de 1957, irrompeu um violento incêndio no cais do Saboó. Toda a cidade entrou em pânico, pois o sistema de movimentação de óleo cru,
gasolina, óleo diesel e querosene estava a poucos metros do local. Além disso, havia três petroleiros atracados no chamado cais de inflamáveis. Só
depois de oito horas os bombeiros conseguiram controlar as chamas. No dia seguinte, o corpo do líder comunista Raimundo Nonato de Oliveira foi
encontrado boiando a poucos metros de uma piroga abandonada. Motivo do incêndio, segundo os historiadores: sabotagem.
O antigo terreno do Instituto Brasileiro do Café (IBC)
ocupa boa parte do bairro e separa os núcleos residenciais
|