Canal São Jorge, antigo problema que preocupa a população
O
pessoal do Jardim Santa Maria sofreu um bocado no passado. Quando a chuva insistia em cair forte, a água subia mais de um metro de altura, invadia
casas e deixava todo mundo desesperado. Cada um tratava de pôr sua família em lugar seguro e saía para socorrer as demais. Quantas e quantas vezes
seu Manoel Maria não percorreu aquilo tudo de barco para salvar mulheres e crianças?
Ainda na década de 60, cenas como essa eram comuns, mas mesmo assim o lugar crescia.
Caminhando-se por lá naquela época, só se via morador jogando aterro e limpando valas, porque a Prefeitura nunca se lembrava de lá.
Graças a essa gente que não desistiu de morar no Santa Maria, mesmo diante de tantas
situações adversas, o bairro se firmou e se destaca como um dos melhores da Zona Noroeste. Todas as ruas são asfaltadas e casas boas muito comuns.
Não há mais do que oito lotes vagos e cada um deles não custa menos de Cr$ 3 milhões.
Mas o Santa Maria precisa de áreas de lazer e pede que a Prefeitura pelo menos faça a
manutenção do único parquinho existente, na Praça Maria Coelho Lopes. O serviço de varrição só é executado de ano em ano e a construção de mais
uma passagem sobre o Canal de São Jorge continua sendo um velho sonho.
O trânsito de veículos nunca é intenso e os moradores podem caminhar tranqüilos
pelo meio das ruas desse bairro de sete mil habitantes
"Não sou caranguejo para morar no mangue". A resposta, um
tanto malcriada, vinha sempre acompanhada de um inesquecível ar de desdém. Era isso que muita gente dizia quando algum amigo sugeria que comprasse
um lote no Jardim Santa Maria, um bairro que começava a surgir, na Zona Noroeste.
Seu Juca, o mais antigo morador
No Noroeste de
Santos do final da década de 1940 não faltavam manguezais, matos daqueles bem bravos e bananais. Fora isso, o Matadouro, um ou outro chalé
soltando fumaça pela chaminé e os trilhos por onde o Bonde 1 seguia sacolejante, assustando os pássaros que cruzavam o céu.
E com os olhos um tanto arregalados de espanto e surpresa, os passageiros do bonde começaram a notar uma
movimentação diferente lá para aqueles lados. Corria o ano de 1952 e muitos caminhões de aterro avançavam sobre o mangue. Os loteadores - Tomás
Amarante, Ivo Merlin e Nagib Haddad - iniciavam as primeiras transformações daquele lugar conhecido popularmente como Santa Maria, em homenagem à
Virgem Santíssima. Só que o Santa Maria daquele tempo incluía áreas que hoje pertencem ao Chico de Paula e ao Saboó.
Os primeiros 60 centímetros de terra jogados lá não deram nem para disfarçar o mangue. Quando chovia, a água
subia mais de metro, deixando tudo em estado de miséria. Mas, aos trancos e barrancos, o Santa Maria ganhou ares de núcleo residencial.
Os estouros de boiada provocavam corre-corre e davam o que falar - Seu José de Alcântara, o
Juca, se considera o morador mais antigo do Santa Maria. Logo que soube da venda de lotes, juntou uns cobres, pediu mais alguns
emprestados e garantiu o seu. Era a grande oportunidade de se livrar do aluguel e ter um canto próprio.
O barbeiro Juca passava a maior parte do tempo com tesoura, barbeador, pente e outros apetrechos na mão.
Trabalhava no Salão Líder, na Rua Dom Pedro II, 16, e em todos os momentos de folga corria para ver como andavam as obras da casa. Até que
finalmente mudou-se, para nunca mais sair daquela residência da Rua Viriato Correia da Costa.
Se ele tem algo que nunca esquece é o susto que levou naquela madrugada escura, cinco dias depois de haver se
transferido para o Santa Maria. Acordou com a casa estremecendo, parecia até um tremor de terra. Pulou da cama, abriu a janela e deparou com mais
de 400 bois, caminhando a passos bem firmes. A morte os esperava bem à frente, no Matadouro.
As cenas dos bois passando, por muito tempo, fizeram parte da rotina daquele núcleo cada vez mais movimentado.
Uma das distrações daquela gente era vê-los daquele jeito, tão juntos, com seus mugidos tristes de dar dó. Tomavam conta dos trilhos e nem
deixavam o bonde ir em frente.
Mas tudo corria sem maiores transtornos, a menos que houvesse um estouro da boiada. Aí a coisa ficava feia. Quem
mais podia, correr, subir em árvores - uma habilidade até então muitas vezes desconhecida - e se enfiar no quintal de desconhecidos. Valia tudo
nessa hora em que o importante mesmo era salvar a pele!
A água subia mais de metro e transformava o bairro em um mar - Apesar dos maus momentos que enfrentavam
às voltas com os bois, essa é uma das boas recordações que os moradores guardam de outras épocas. Mesmo porque, parecia bem mais fácil se livrar
dos bois do que das enchentes que transformavam o Santa Maria em um mar.
"Os moradores fizeram o bairro", na opinião de Américo
No
verão, o drama sempre se repetia. Famílias inteiras tinham que sair às pressas, deixando para trás o que conseguiram com muito sacrifício. Cada um
punha mulher e filhos em lugar seguro e saía para ajudar os vizinhos. Um dia seu Juca deparou com a mulher do Batista em cima da mesa,
desesperada ao ver que a água insistia em subir.
Quantas e quantas pessoas seu Manoel Maria não transportou em seu barco, nessas horas em que o barco
praticamente desaparecia sob as águas. E, enquanto os adultos lamentavam a má sorte, os moleques aproveitavam para se divertir: davam pulos
sensacionais de cima dos armários e nadavam como nunca. Os pais ganhavam novos fios de cabelos brancos.
Como se não bastasse, a luz só chegou ao bairro três anos depois da venda dos primeiros lotes. Mulheres como a
dona Angelina, esposa do seu Juca, nunca se esquecem do sacrifício que passaram, às voltas com os pesados e pouco práticos ferros de
carvão.
Enquanto elas ganhavam queimaduras nas mãos e nos braços, os maridos limpavam valas, aterravam as ruas e
gastavam todas as economias para levantar a casa e, dessa forma, se livrar das inundações. Nenhum morador escapou disso, tanto os mais antigos,
como seu Batista, seu Lara, seu Monteiro e seu Américo, como outros que chegaram lá pela década de 1960, como seu
José Novaes. E ninguém pode negar que essa gente fez o bairro, porque o Poder Público investiu muito pouco lá.
O Paulistinha e as brincadeiras que a molecada inventava - Problemas não faltavam, mas o Santa Maria
também tinha seus momentos de distração e lazer. E o Paulistinha, clube que os moradores relembram com muita saudade, sempre garantiu boas doses
de alegria.
Quando seus craques jogavam, metidos em seus uniformes azul e branco, moradores de todas as ruas se postavam na
beirada do campo. Incentivados pela torcida, os rapazes faziam de tudo para proporcionar um bom espetáculo. Tudo pelo prazer de ver a bola rolar
bonito de pé em pé e, finalmente, balançar a rede.
O campo ficava onde estão hoje as casas do Lordeiro. Além das partidas de futebol, era lá que se realizava
desses festivais bem engraçados, onde os homens se vestem de mulher e requebram as cadeiras. Uns de maiô, outros de saias, muita maquilagem e
vontade de se divertir. Tão bom como esses festivais, só mesmo os bailinhos que o Paulistinha promovia, com música ao vivo e tudo. Apenas as
crianças preferiam se ver diante de um saco de pipocas bem cheio, preparado pelo Maneco Pipoqueiro. Mesmo que na boca restasse um gosto de
peixe, conseqüência do óleo velho onde fora estourado o milho.
Os moleques não ligavam. Saíam dali satisfeitos, prontos para matar preás nos matos ou rã nos brejos das
proximidades. Quando não, escapavam para o Morro do Careca para descobrir coisas novas por lá.
Arnaldo, Edinho, Pato Roco, Antônio Carlos, Calão, Roberto, Paulo, Mobral e Dudu,
alguns dos meninos que faziam parte da turma, não perdiam tempo. Logo se cansavam de brincar de garrafão, jogar bola ou empinar pipa e se metiam
em verdadeiras aventuras. Iam nadar no Canal de São Jorge e se deixavam arrastar pela correnteza sempre forte depois das chuvas. Certo dia, um
deles tentou fazer uma bacia de barco e acabou morrendo afogado.
Esse episódio triste, o Antônio Carlos relembra até hoje. Também recorda a escolinha da dona Palmira e o bar do
Azambuja, sergipano que promovia um quebra-quebra de pratos todo dia 1º do ano. Com a filha Kelly no colo, lamenta que até as crianças de hoje
tenham se tornado egoístas, por culpa dos próprios pais. Não quer um mundo como esse para a menina que tem nos braços. E uma outra cena da
infância volta à sua mente: um dos meninos chega com um sanduíche daqueles bem caprichados, os outros gritam macaquinho e ele divide a
gostosura com todos. Sem reclamações, com o maior prazer do mundo.
Com a filha Kelly no colo, Carlos Alberto relembra brincadeiras da infância
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