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Dois edifícios evocadores
Costa e Silva Sobrinho
Quem percorrer hoje a Rua Tuiuti, no
trecho que vai da esquina da Rua José Ricardo até a esquina do Largo Marquês de Monte Alegre,
encontrará ainda, apesar da grande transformação por que têm passado todas as ruas da cidade, duas velhas casas que nos despertam recordações de um
passado distante. São elas as que têm os números 2-4 e 28-30.
No número 30 está a empresa Expresso Piratininga Ltda.; no 28, o Hotel Central. A Companhia
Continental de Armazéns Gerais ocupa os números 2 e 4.
Benedito Calixto, cujo pincel retratou com tantos pormenores a nossa
cidade no século passado (N.E.: século XIX),
deixou-nos um esplêndido quadro desse mesmo trecho de rua. Assim, percorrendo-se com a vista as casas que ele pintou,
vamos encontrar as duas acima mencionadas.
Então, isto é, em 1886, aquela via pública não se chamava Rua Tuiuti, como hoje, mas sim Rua 24 de
Maio, e ficava à beira do mar, onde se via o porto do Bispo, outrora porto das Canoas. E deu-lhe a Câmara a denominação
de Rua 24 de Maio em 22 de agosto de 1878. Até aí o seu nome era Rua da Praia. No quadro de Calixto, vemo-la calçada,
porque tinha sido revestida com paralelepípedos em 1883. O vereador Francisco de Paula Ribeiro, na sessão da Câmara de 20 de outubro desse ano, foi
quem propôs tal melhoramento.
O Diário de Santos, do dia 23 do mesmo mês, assim noticiava o fato: "O
sr. vereador Ribeiro indicou que se mandasse calçar a paralelepípedos a Rua 24 de Maio, desde a Travessa do Neto até o Largo
Vergueiro. A Câmara aprovou a indicação, no que procedeu muito acertadamente; pois não pode ser pior o atual estado daquela rua, uma das de
maior trânsito". Do Largo do Senador Vergueiro para diante continuou ela, porém, sem
calçamento, até 1888.
Na sessão da Câmara de 3 de maio desse ano é que Lucas Fortunato fez a seguinte indicação: "Indico
o calçamento, em continuação à Rua 24 de Maio até o muro do finado visconde de Embaré, visto que em dias de chuva é impossível o trânsito para as
carroças de café e onde existem várias pontes de embarque, é um lodaçal enorme e intransitável".
Em 1896 os proprietários das casas que iam do número 2 ao número 16, nessa rua, eram estes: Manuel
Pereira da Rocha Soares, Cândido Luís Esteves, Manuel Geraldo Forjas, Elisa Barnabé e Carolina Augusta Vaz de Carvalhais, esta casada com o
desembargador Marcos Antônio Rodrigues de Sousa, Antônio Ferreira Brandão, Joaquim F. Ribeiro, José Torre Rossman, e, finalmente, Manuel Joaquim
Ferreira Neto. Este último é o comendador Neto, uma das figuras mais interessantes dentre as que floresceram no comércio de Santos, naquele tempo.
Em 1855, quando ainda era negociante no Rio de Janeiro, já pertencia ele ao quadro de irmãos da
Santa Casa da Misericórdia de Santos, tendo até feito a esta, naquele ano, um donativo de dois contos de réis. A Revista
Comercial, de 17 de setembro, além de registrar o caso, ainda disse através da pena de um dos seus colaboradores: "Quiséramos
guardar silêncio, talvez satisfazer a bondosa intenção do sr. Manuel Joaquim Ferreira Neto; porém não podemos resistir aos impulsos do nosso
coração. Releve pois o dito senhor, que patenteemos, em sinal de profundo reconhecimento, o seu nobre e generoso procedimento com o donativo, que
acaba de fazer à Santa Casa da Misericórdia desta cidade; certo de que da humanidade agradecida será abençoado. Sirva de incentivo a esses, que por
fofa basófia e vanglória não duvidam gastar quaisquer somas, mas que são incapazes de praticar ações deste quilate, de favorecer o indigente, e de
proteger o merecimento.
"Boa estréia para a nova administração da Santa Casa, que, além das suas rendas acaba de receber o
generoso donativo, que lhe fez o sr. Ferreira Neto; oxalá que tenha muitos imitadores. Que tendo à sua testa o atual provedor, que sempre se tem
distinguido pela sua honradez, atividade e zelo, consiga aquelas reformas salutares, que tão pio quão útil estabelecimento reclama. Temos fé no
atual provedor".
Não foi essa, aliás, a única vez que o comendador Neto aqui fez esmolas e benefícios, como nos dá
a saber O Comercial, de 17 de novembro de 1859, nesta notícia: "Consta-nos que o sr.
Manuel Joaquim Ferreira Neto acaba de fazer ao hospital da Misericórdia desta cidade o importante donativo de 24 camas de fero. Não é este o
primeiro ato de filantropia praticado pelo sr. Neto em prol da Irmandade da Santa Casa, da qual é um dos mais prestantes e devotados membros".
No ano compromissal de 1857-1858 tinha sido ele provedor da Irmandade.
Em 1865 foi também eleito vereador suplente. Antes de entrar ao cargo, como pretendesse
ausentar-se do município por algum tempo, apresentou na sessão da Câmara, de 18 de maio do mesmo ano, ao presidente, dr. Cócrane
(N.E.: outras fontes indicam que Inácio Wallace da Gama Cochrane foi
vereador de 1865 a 1876, mas só assumiu a presidência em 1868 a 1872, sendo que em 1865 o presidente seria
Antonio Ferreira da Silva Júnior, o visconde do Embaré),
um requerimento, que a respectiva ata assim mencionou:
"Ofício do cidadão Manuel Joaquim Ferreira
Neto, datado de ontem, dizendo que, tencionando retirar-se para Campinas por alguns meses e imediatamente depois para a Europa, não deve prestar
juramento do cargo de vereador, como fora convidado, sentindo não poder partilhar dos trabalhos da Câmara. - A Câmara resolveu, enviando-lhe de novo
a autêntica, responder que não pode atender à escusa pedida, visto como o motivo alegado de ausência não existe atualmente e só pode ser atendido
quando efetivamente se der, devendo, portanto, o sr. vereador suplente comparecer na próxima sessão para prestar juramento".
O comendador Neto foi casado com d. Teresa Luísa Centeno Neto, e faleceu sem descendência em 5 de
abril de 1868.
A casa n. 28-30 da atual Rua Tuiuti acha-se descrita no seu inventário da seguinte maneira: "Uma
morada de casas de sobrado com frentes para as ruas de Santo Antônio e da Praia, partindo do lado da Rua de Santo Antônio
com propriedade dos herdeiros do finado João Antônio de Sá, e desta herança, do lado da Rua da Praia parte com propriedade dos herdeiros dos finados
João Antônio de Sá e comendador Barnabé Francisco Vaz de Carvalhais. Para o lado da Rua da Praia, com dois andares, com 7 portas na frente para a
Rua de Santo Antônio, e 4 para a Rua da Praia".
Além desse imóvel, construiu o mesmo proprietário aquele casarão enorme do Largo Monte Alegre,
defronte da Estação, onde esteve a Câmara Municipal há anos atrás. Neste edifício, como no da Rua
Tuiuti, as portadas são todas de alvenaria lavrada, vindas de Portugal.
No prédio da Rua Tuiuti esteve durante muitos anos a firma Teles Neto & Cia., de cujo armazém era
chefe José Domingues Martins, mais conhecido na praça por J.D. Nessa casa, defronte de uma das portas do armazém, aconteceu um dia um fato que fez
estrondo, segundo nos conta Henrique Porchat de Assis.
José Domingues Martins fora procurado ali por Eduardo Antônio Domingues da Luz, artífice que fazia
trabalho ao torno e empreitava obras. Era este um tipo impagável. Ninguém, absolutamente ninguém, em Santos, tinha uma fisionomia igual à dele.
Possuía um formidável nariz virgiliano. Lábios grossos, bigode de guias longas e retorcidas, e uma pera de chibo, rala e ruiva, que lhe tremia no
queixo quando ficava zangado. Os cabelos crescidos surdiam-lhe de sob um chapéu de abas longas. Enroscava-se, no seu colarinho de bicos compridos,
uma grande gravata de cetim quase sempre lilás. Usava, enfim, calças muito justas, jaquetão, e botinas de elástico.
Os seus requerimentos à Prefeitura, quando precisava de licença para iniciar as construções, eram
escritos no estilo mais arrebicado deste mundo. Faziam rir às gargalhadas quem quer que os lesse.
Pois bem. Esse homem tinha às vezes os seus rompantes. Tornava-se grosseiro e malcriado.
Desaveio-se naquela ocasião com o J.D., e este, que era bom capoeira, correu-lhe o pé,
estendendo-o ao comprido no chão. Nesse dia o valentão de rópia e chulice pensou no adágio: "Braguês
com braguês, e cortês com cortês..." Tornou-se daí em diante delicado e acolhedor!
Testemunha de outras épocas é igualmente o prédio ns. 2-4 da citada Rua Tuiuti. Concluiu-o em 1884
Manuel Pereira da Rocha Soares, nascido em S. Mamede de Manhuncelos, bispado do Porto, filho de Antônio
José Soares Pereira e Joaquina Pereira Soares. Casou-se em Santos, em 15 de julho de 1865, com d. Amélia Carolina Vieira Bueno. Teve diversos
filhos, como Ana, nascida em 1871, em Jundiaí; Antônio, nascido em Santos, em 1873, e outros.
As casas da Rua do Comércio, que vão do n. 141 ao 151, mandou-as ele
fazer em 1883. Em 1882 foi eleito presidente da diretoria da Sociedade Portuguesa de Beneficência. Ocupou de novo o cargo
em 1886.
A Câmara Municipal, na sessão de 20 de outubro de 1883, concedia licença a Manuel Alexandre
Gonçalves para construir um chalé sobre o armazém de Rocha Soares & Cia., à Rua 24 de Maio, conforme o plano executado nos armazéns dos mesmos
senhores, à Rua de Santo Antônio.
Rocha Soares, em 15 de fevereiro de 1887, era presidente da Companhia de Seguros Marítimos e
Terrestres "A Previdência Paulista".
No quadro de Calixto vê-se, enfim, um sobrado, que já não existe hoje em dia. Tinha o n. 6.
Pertencia a Cândido Luís Esteves, português, natural de Covilhã, bispado da Guarda, filho de José Luis
Esteves e Maria Joaquina Esteves, e casado em 23 de janeiro de 1871, com d. Augusta Helena Fernandes, natural do Funchal, na
Ilha da Madeira, filha de Manuel Fernandes Júnior e Antônia Fernandes. Foi negociante de gêneros alimentícios
e de madeiras.
Teve ele numerosa prole. Sua filha Augusta, nascida em 9 de fevereiro de 1872, foi casada com
Antônio Augusto Bastos (Totó Bastos), jornalista, que deixou na imprensa desta cidade e de S. Paulo copiosa colaboração.
Homem probo, pacato e generoso, Cândido Luís Esteves foi procurador da Sociedade Portuguesa de
Beneficência, em 1882. Quando se construiu o hospital dessa sociedade, no Paquetá, foi ele quem deu toda a madeira de que precisou o edifício.
A cidade de Santos, como se vê, está cheia de história, desde os seus monumentos até os seus mais
afastados recantos. Oferece-nos ela inúmeros lugares muito propícios para estas jornadas ao passado, que os santistas de hoje, através de um nimbo
de saudade, poderão rememorar com emoção.
O Porto do Bispo e um trecho da Rua 24 de Maio, em 1886
Imagem: bico-de-pena
de Ribs, publicado com a matéria original |