Terceiro prédio da Santa Casa, destruído no desabamento parcial do Monte Serrate em
1928 (no lugar mostrado no canto direito da foto seria construído o Túnel Rubens Ferreira Martins).
Vê-se o hospital, a igreja, a farmácia, a maternidade, o Pavilhão Dr. Soter de Araújo e o elevador de acesso do mesmo pavilhão, ao alto
Foto: Calendário de 1979 editado pela Prodesan - Progressso e Desenvolvimento de
Santos S.A., com o tema Imagens Antigas e Atuais
O Hospital e a Igreja da Misericórdia
Época e local da fundação - Um ponto de confiança para a colonização - Seus
provedores e sua atualidade
Quando se transferiu para junto do povoado de Enguaguaçu
o antigo Porto de São Vicente, o fundeadouro oficial que durante trinta anos seguramente existira ao fim da praia de Embaré
(atual Ponta da Praia), e isso pela altura de 1541, o pequeno povoado, que mais tarde seria Santos, começou a ser chamado
pelo nome do porto recém-transferido, constando, desde então, como o novo Porto de São Vicente, fato de que lhe adveio um progresso mais acentuado.
A volta de Braz Cubas de Portugal, verificada em 1540,
trazendo o seu estabelecimento em local fronteiro, na antiga ilha Pequena (hoje Barnabé), trouxera também, e como
conseqüência, essa grande vantagem para o povoado, ignorando-se, porém, se essa e outras iniciativas posteriores tomadas pelo ilustre patrono dos
primeiros tempos santistas foram resoluções próprias, ou produto das recomendações trazidas do reino, cujo intuito fosse favorecer a obra da
colonização. Quer nos parecer que houve, aí, um pouco das duas hipóteses.
Mal se havia feito a transferência do porto para o fundeadouro do lagamar, quando se
verificou em São Vicente o movimento do mar em 1541/42 que pôs em sobressalto toda a vila, houve naquele princípio de
1542 o êxodo dos mais timoratos para o outro lado da ilha, onde o remansado das águas oferecia maior tranqüilidade de espírito e uma maior extensão
de terras cultiváveis, convidando a preferência do agricultor estrangeiro.
Assim, ganhou o povoado do Porto um acréscimo regular de população, surgindo então a
idéia da criação de um hospital nele, para assistir os doentes de terra ou os que chegavam a bordo dos navios em trânsito. Pôs-se Braz Cubas à
frente da iniciativa, colhendo o auxílio dos companheiros de colonização, obtendo, entre todos, os meios necessários ao início imediato da obra
ideada, e afinal, no mesmo ano de 1542, em que se produziu o êxodo de São Vicente, dava-se começo à casa dos enfermos no povoado agrícola que se
engastava na face oriental da ilha vicentina, participando certamente, deste merecimento, os fundadores Pascoal Fernandes, Domingos Pires, José e
Francisco Adorno e Luís de Góis, além de outros.
A inauguração do estabelecimento verificou-se em 1543, e com muita probabilidade
também no dia 1º de novembro, observado o espírito extremamente religioso do povo daquela época, motivo por que teria ele recebido a invocação de
Todos os Santos com que se iniciou, e não somente por imitação ou analogia a um congênere existente em Lisboa.
Esse hospital foi o primeiro instalado no Brasil e a sua existência assume uma
importância capital na história da cidade e da própria colonização portuguesa, embora não pareça a muitos, visto que, com ele, se criou a confiança
do imigrante ante a ameaça dos perigos e dos males tropicais, o qual até então estivera sem a garantia de uma assistência efetiva em favor de sua
vida, necessária à tranqüilidade dos que partiam e ao sossego dos que ficavam no reino na expectativa do triunfo dos pais, dos irmãos ou dos filhos,
que para tão longe seguiam embalados na esperança de voltar um dia.
Não se deve porém, como se vinha fazendo antes, confundir a fundação da Misericórdia e
seu hospital com a fundação da própria Santos, fatos bem distintos e distantes como já vimos em capítulos anteriores. Da
invocação desse hospital, isso sim, saiu pouco tempo depois o nome para a povoação como batismo espontâneo e natural realizado aos poucos pelo uso
popular, consagrado definitivamente em 1546 por ocasião da sua elevação à categoria de vila, como Vila do Porto de Santos.
Disse Frei Gaspar, em sua Memórias para a História da Capitania de São Vicente,
que o mesmo Braz Cubas, "com esmolas e ajutórios dos confrades, edificou uma igreja com o título de N. S. da Misericórdia e junto a ela um
hospital". Acreditamos haver, nisso, um engano da parte do famoso monge conterrâneo, não passando a referência que ele faz da igreja de simples
suposição.
Como se criou para administração e assistência ao hospital a Confraria da
Misericórdia, confirmada por D. João III em Almerim, a 2 de abril de 1551, com a vantagem de todos os privilégios concedidos por D. Manoel às
Misericórdias do Reino, achou Frei Gaspar, talvez por dedução, que se fez também uma igreja. Entretanto, nenhuma notícia documental se tem dessa
igreja, e a verdade parece limitar-se ao seguinte:
Atrás da Casa do Trem, existia a capela de Santa Catarina, reconstruída a partir de
1663 no alto do outeiro de Sta. Catarina, após o ataque de piratas que em 1591 destruiu a instalação anterior
Imagem: tela de Benedito Calixto
Desde 1540 existia no pequeno outeiro de Santa Catarina a
igrejinha da mesma Santa, mandada fazer por Luís de Góis e sua mulher d. Catarina de Aguiar, como aliás confessa Frei Gaspar na mesma obra; e como
ao lado dessa pequena igreja, cinqüenta metros para o Norte, foi construído depois o Hospital de Todos os Santos, em terreno ainda do mesmo Luís de
Góis ou de Pascoal Fernandes (visto que a primeira compra de terras efetuada por Braz Cubas a Pascoal Fernandes data de 1546), tomou-se essa
igrejinha como sendo construída juntamente com o referido hospital, ao seu lado e sob a denominação de Igreja da Misericórdia.
Na escritura de 3 de janeiro de 1547, para tomarmos por base um documento, lavrado
pelo Tabelião da Vila de Santos, Luís da Costa, relativa a uma venda de casas feita por Francisco Sordido e sua mulher Isabel Rodrigues a Pedro Rozé,
depara-se, na confrontação desses imóveis, com a confirmação da existência do hospital inaugurado quatro anos antes, sem nada, porém, se ver,
relativo a tão falada igreja, que se de fato existisse junto a ele, não poderia deixar de ser citada conjuntamente, na mesma escritura.
Isso revela, de acordo com a nossa opinião, o seu maior afastamento do
local, a ponto de identificá-la com a igrejinha de Santa Catarina, construída na base do outeiro, como dissemos. Nesta capela é que, naturalmente,
se realizam os ofícios religiosos e os cerimoniais da Confraria da Misericórdia, durante a primeira fase da sua existência, vindo daí a confusão.
Essa igrejinha também foi que desempenhou as funções da Matriz do povoado, mesmo depois de sua elevação à categoria de vila, em 1546, sendo seu
capelão o depois vigário de Santos, padre Simão de Oliveira [1].
O primeiro hospital da Misericórdia existiu, pois, onde hoje fica a Rua Visconde do
Rio Branco, ao fundo da Praça Teles, enquanto a capela que serviu de igreja da confraria existiu cerca de cinqüenta metros além, ao meio da atual
Rua Visconde do Rio Branco, junto ao pequeno outeiro de que ainda existem uns pedrouços, e dela nada mais existe desde o meio do século passado
(N.E.: século XIX).
Infelizmente persistem as lendas sobre este ponto da história local, como sobre outros
muitos; e, num quadro muito vulgarizado de Benedito Calixto, citado em nota ao fim do capítulo, em que o
pintor-historiador reproduziu imaginosamente o ato oficial da elevação do Porto de Santos ao predicamento de Vila, vê-se um grande prédio de
tijolos, com aspecto quase moderno, que ele disse ser a primeira Matriz em construção. Não pode haver fantasia mais completa, pois é sabido que as
funções de Matriz sempre foram exercidas em Santos, primeiro na Igrejinha de Santa Catarina, onde também se exerceram os ofícios da Misericórdia,
depois na Igreja do Colégio e, mais tarde ainda, como vamos ver adiante, na segunda igreja da Misericórida, até 1746,
quando foi construída a primeira matriz própria para uso dos vigários, no local onde existira a Igreja do Colégio, que fora a segunda Matriz da
vila.
Que não havia matriz própria na Vila de Santos em 1710, revela-nos, de alguma forma, o
fato de ter sido rezada, na Igreja do Colégio dos Jesuítas, a grande missa de ação de graças, promovida por toda a população, pela
retirada de Bartolomeu Fernandes de Faria com seu corpo de aventureiros, sem ter feito mal a ninguém, nem depredações ou
saque, visto que todos os atos religiosos de importância eram costumeiramente realizados nas matrizes quando estas existiam.
Quando o admirável e venerando Frei Gaspar afirmou que a Matriz
de 1746 (demolida somente em 1909) era a terceira que se construía no mesmo lugar, baseava-se no fato de ter existido, ali, a Igreja do Colégio,
que fora a segunda, e na suposição de ter sido ali, também, a primeira igreja da Misericórdia que desempenhara as funções de primeira, o que já
demonstramos ser apenas suposição, embora fosse realmente a terceira.
No pequeno hospital iniciado em 1542, foram atendidos tanto os primeiros doentes da
povoação, como os que vinham de fora, arribados nas embarcações de passagem, e ele existiu até cerca do ano de 1620, quando foi abandonado por velho
e imprestável, diante da situação de penúria dos habitantes, impedindo-os de construírem um novo.
A população da vila santista e os lidadores das terras do litoral ficaram sem o grande
apoio moral e físico da sua casa Santa da Misericórdia, e isso foi durando até 1654, quando, ante a representação desesperada dos membros
remanescentes da velha Irmandade, D. Jerônimo de Ataíde, conde de Atouguia, governador geral do Estado do Brasil, com sede na Bahia, vindo ao
encontro do seu sonho de reconstrução, assinou a Provisão de 3 de outubro de 1654, nestes termos:
"Faço saber aos que esta minha Provisão virem, que os irmãos da Misericórdia da Vila
de Santos, Capitania de São Vicente, me representaram por sua petição, que por não haver na dita vila casa separada da Misericórdia, celebravam os
ofícios divinos na Matriz, e por ser grande a necessidade que ali há de hospital, por ser o porto por onde freqüenta o comércio de toda a Capitania,
mas que por serem todos pobres não podiam concordar com as despesas necessárias para aquelas obras, por cujo respeito me pediam lhes fizesse mercê,
em nome de S. Majestade que Deus guarde, conceder para as ditas obras o dinheiro que existe em depósito naquela Capitania, ao pedido que se fez por
ordem deste Governo, e tendo em consideração a informação que sobre este particular deu o Provedor da Fazenda Real deste Estado, e constar de
Certidão da mesma Capitania, não haver nela mais do que 300$000 em depósito. Hei por bem de lhes conceder de esmolas, em nome de Sua Majestade,
100$00, para as referidas obras, os quais se despenderão com assistência do provedor da Fazenda, e com mandado em forma que se passará em virtude
desta Provisão, etc. ..."
Em conseqüência da Provisão do Governo, completavam-se em 1665 as obras do novo
hospital com igreja anexa, construídos ambos no local onde hoje fica a Praça Mauá, desde aquele tempo denominado Campo da
Misericórdia, mais tarde Largo da Misericórdia, depois Largo da Coroação e finalmente Praça Mauá.
Essa igreja, pouco tempo depois, fazia também as funções de Matriz da Vila porque o
vigário - achando-a melhor do que a antiga, do Colégio, e mesmo coagido a sair dela pelos jesuítas que, após sua expulsão do Brasil, reparação desse
ato e conseqüente volta - havia dado novo impulso ao Colégio e reparado a Igreja, nela estabelecendo a vigararia.
Confirmando essa situação do segundo hospital da Misericórdia, conseguiu Calixto
colher elementos para localizá-los a ambos, hospital e igreja, em sua tela que reproduz a Vila de Santos em princípio do
século passado (N.E.: século XIX), quadro esse que existe na Prefeitura local.
Encontramos também em Pedro Taques e Luís Gonzaga da Silva Leme, este na sua
Genealogia Paulistana e aquele na sua notável Nobiliarquia, na descrição dos fatos de 1684/1685, relativos à Provedoria de Timóteo
Correia de Góis e à rebeldia de Diogo Pinto do Rego, o seguinte trecho:
"As casas de morada de Diogo Pinto eram de sobrado com quatro salas de
largura e tinham a frente para a rua que corria do Carmo até o lugar que chamavam Quatro Cantos, deitando fundos para o
Campo da Misericórdia, em local aberto e raso, que se estendia até às fraldas do Monte Serrate" [2].
De fato, após a construção do novo Hospital da Misericórdia em 1665, ao centro do
Campo que limitava com o de Itororó, todo aquele campo passara a ser chamado Campo da Misericórdia, vindo entestar da banda Leste com os fundos das
casas da atual rua 15 de Novembro, exatamente como dizem aqueles ilustres genealogistas-historiadores.
Convém notar, aqui, que se insistimos sobre este ponto, é porque sobre ele sempre
houve uma completa desorientação, desde que desapareceu a geração que ainda contemplou a Igreja de Santa Isabel (nome que denominava, nos últimos
tempos da antiga Igreja da Misericórdia de 1665) e que ainda freqüentou o velho Largo da Misericórida, e, neste particular, o último elemento
oficial sobre essa localização é ainda recente, e nos vem de Azevedo Marques, em seus Apontamentos históricos, geográficos etc., da Província de
São Paulo, onde, como contemporâneo de tal acontecimento, ele nos descreve os fatos da primeira visita de D. Pedro II a Santos, em 1846,
contando a inauguração do Chafariz do Largo da Misericórdia que jorrou vinho em vez de água, para regalo da população
(chafariz esse, que ficava exatamente onde hoje a rua D. Pedro II desemboca na Praça Mauá) e mais a queima de fogos de artifício em honra do
Imperador, no mesmo largo da Misericórdia, assistida pelos augustos visitantes, das janelas da casa do comendador Ferreira da Silva e de seu filho,
o futuro Barão e Visconde de Embaré, que os hospedavam então.
Neste sentido, também a atual Rua General Câmara nos serve
de elemento elucidativo, porque no recenseamento santista de 1765, acompanhado de nomenclatura, consta ela como Rua da Misericórdia, terminando nos
fundos do Carmo.
Em conseqüência do aparecimento desse hospital de 1665, terminado talvez muitos anos
depois, começamos novamente a encontrar o cumpra-se oficial da autoridade fiscal da Vila de Santos, à Provisão e ao Compromisso que serviam à
velha Irmandade, dado sempre em Tabelião. Desfilam aí, sob nossos olhos, as datas que marcam essa segunda fase: 19 de maio de 1679; 27 de fevereiro
de 1682; 3 de março de 1688; 22 de agosto de 1701; 14 de outubro de 1713; 27 de janeiro de 1721; 24 de abril de 1723; 23 de janeiro de 1727; 3 de
novembro e 1740 e 16 de novembro de 1762. Surgem como finalistas na Provedoria dessa segunda fase o coronel Antônio Teixeira Lustosa, de 1748 a
1749, e o padre José Luís dos Reis, de 1774 a 1775, últimos provedores que parecem ter funcionado no hospital que completava por essa época uma
trajetória de cem anos ininterruptos.
Mergulhemos por um instante nesse mar de documentos que são os Documentos
Históricos - V. II, P. 83-85 -, ali encontraremos um requerimento dos Irmãos da Misericórdia de Santos ao Rei D. João e uma resposta deste,
ambas do ano de 1748, por onde verificamos que "as despesas do hospital em todo o tempo, e todas as mais despesas a ela pertencentes" eram feitas
pela Mesa Administrativa da Irmandade "à custa de suas fazendas, repartindo-se todos os anos pelo provedor e mais irmãos da mesa as despesas de cada
ano em razão do nenhum rendimento que tem aquela irmandade e casa, etc..." Essa prova documental vale para mostrar a benemerência e espírito de
abnegação e altruísmo da gente da Misericórdia santista, fiel aos hábitos dos antepassados.
Caído em desuso e em ruínas, e abandonado esse prédio centenário, tornou a
Misericórdia de Santos à vida imprecisa e inconsistente de cem anos atrás. Em 1804, a decadente Irmandade, que reclamava uma proteção eficaz (Elogio
do Médico - p. 19), encontrou-a no fervoroso zelo, nos cuidados, na extremada caridade do governador Antônio José de França e Horta, na do
brigadeiro Manoel Mexia Leite e na do tenente-coronel José de Carvalho e Silva.
Esses ilustres varões (palavras de Dr. Cláudio Luís da Costa, no primeiro
livro-manuscrito de Registro da Irmandade da Santa Casa da Vila de Santos, no ano de 1836), desde o ano de 1802 até o de 1808, fizeram todos os
possíveis esforços para restabelecer a Irmandade e conseguiram elevá-la e dar-lhe lustre, mas, ou tolhidos pelo velho compromisso, ou confiados no
futuro zelo dos novos irmãos, não fixaram normas para uma fiscalização regular; não ordenaram um regime que acautelasse os descuidos do provir".
Durante esse tempo, e desde o ano de 1804 até 1830, serviu-se, a Irmandade, do
Hospital Militar instalado pelo governador França e Horta no velho edifício do antigo Colégio São Miguel ou dos Jesuítas, como era mais conhecido, e
onde, agora, é a Alfândega da cidade. Com pequenas intermitências ainda mais penosas que a permanência dos seus doentes nas dependências, incapazes
e mal asseadas, do chamado Hospital Militar, assim viveu a Misericórdia de Santos aqueles tristes trinta anos até que, numa suprema reação dos
Irmãos à situação em que aos poucos imergiram, em julho de 1833 criou-se o Hospital Provisório nas casas do cidadão Antônio José Viana, ao lado da
atual Cadeia, no antigo Campo da Chácara, hoje Praça dos Andradas, iniciativa e esforço do Provedor
de 1832.
O Rancho Grande (dos Tropeiros), e ao fundo o terceiro hospital próprio da
Misericórdia de Santos, de 1836, e Capela de Santa Izabel e São Francisco de Paulo (1775), em local hoje correspondente aproximadamente ao trecho
inicial da atual Avenida São Francisco, junto ao Largo S. Francisco de Paula (onde no século XX foi construída a alça de acesso do túnel Rubens
Ferreira Martins ao elevado Aristides Bastos Machado), e à atual Praça dos Andradas.
Imagem: tela de Benedito Calixto
Pelas vizinhanças do ano de 1740, a Confraria da Misericórdia, cansada de tentar a
desocupação da sua igreja pelas autoridades paroquiais, representou ao Rei contra os padres que a ocupavam, fazendo-a de Matriz, como já referimos,
acabando por resolver diante da irremobilidade dos ocupantes (que nem a própria ordem do rei obedeceram) construir a nova
Igreja da Misericórdia nas abas do Monte Serrate, terminada cerca do ano de 1760, igreja essa que colocou sob a
invocação de São Jerônimo (que era o antigo nome do Monte Serrate).
Ficou ainda ali, por algum tempo, o velho hospital, na expectativa de melhor
oportunidade para se construir o novo.
Quanto ao vigário de Santos [3],
só em 1746, com a inauguração da nova Matriz, construída no local da antiga Igreja do Colégio e sob a invocação de N. Sra. do Rosário Aparecida, é
que abandonou a Igreja da Misericórdia, passando-se para o templo oficial. A Igreja da Misericórdia ficou sendo, desde 1760, simplesmente a Igreja
de Santa Isabel, que existiu até cerca de 1840, deixando apenas o nome Largo da Misericórdia, a lembrar ao povo que ela e o hospital de 1554 ali
tinham existido por quase duzentos anos.
A nova Igreja da Misericórdia da fralda do morro, inaugurada, como dissemos, sob a
invocação de São Jerônimo, por influência do antigo nome do morro e do rio que lhe passava perto e que ia desaguar no Valongo, foi mais tarde, por
provisão do bispo D. Mateus de Abreu Pereira, consagrada a São Francisco de Paula, invocação que ainda conserva e que deu origem à denominação da
rua atual, então um simples caminho para Itororó.
Em julho ou agosto de 1835, eleita a Mesa Administrativa da Irmandade para o Ano
Compromissal de 1835 a 1836, o novo Provedor constituído, que foi o capitão Antônio Martins dos Santos, que já vinha trabalhando em favor do
hospital -, homem de iniciativa, de posses, e sobretudo de grande amor à sua terra, e que já ocupara a Provedoria em julho de 1832, sendo então um
dos movimentadores da idéia da instalação do hospital provisório, coisa que foi feita no ano seguinte, como já vimos -, resolveu pôr definitivo
termo àquela situação de precariedade hospitalar.
O terceiro hospital da Santa Casa, na atual Av. São Francisco
Foto publicada com a matéria
E só assim foi atacada a construção do
terceiro hospital próprio da Misericórdia, cuja pedra fundamental fora lançada a 2 de julho de 1835, apesar da oposição de grandes figuras da
cidade e da irmandade, que queriam a trasladação do hospital para o Convento de Santo Antônio do Valongo [4],
no local escolhido, que era na base do antigo morro de S. Jerônimo (atual Monte Serrate), junto à capela de S. Francisco de Paula, ali existente
havia alguns setenta anos.
Em meados de 1836 [5],
elegia-se a nova Mesa Administrativa da Irmandade para o ano compromissal de 1836 a 1837, e assumia o cargo, pouco depois, o novo provedor, Dr.
Cláudio Luís da Costa, benemérita figura da irmandade, que, aliás, permaneceu até 1838.
A 4 de setembro de 1836, dava-se a inauguração do novo hospital, solenidade presidida
por esse novo Provedor de 1836, como corolário brilhante à obra de seu antecessor, sem dúvida alguma o realizador principal desse edifício, que
motivou as comemorações feitas, ao fim de cem anos, de triunfo - um século de trajetória -, de benefícios e de caridades distribuídos a milhares de
homens de todas as nacionalidades, com o Procurador Geral da Irmandade, Antônio Dias, cujos esforços foram notáveis e que até de seu bolso emprestou
à Irmandade mais de um conto de réis, muito dinheiro para aquele tempo.
A trasladação dos doentes do Hospital Provisório para o novo, do Monte Serrate,
verificou-se com bastante aparato no referido dia 4 de setembro de 1836, assistindo ao ato muito povo, autoridades e pessoas de categorias
especialmente convidadas, tendo os hospitalizados, antes de ingressarem nas novas instalações, ouvido missa na Capela de S. Francisco.
Daí em diante, o Hospital da Misericórdia passou por diversas reformas, que o
ampliaram cada vez mais, sendo as mais importantes as de 1878, de 1888 e a de 1896, concluída em 1903, que deu ao estabelecimento do morro o aspecto
imponente, tornando-o um hospital-modelo, devido principalmente aos esforços dos dedicados e beneméritos cidadãos: Ernesto Cândido Gomes, Júlio
Conceição, Manoel José Martins Patusca e José Caballero, principalmente os três últimos, como membros da Comissão de Obras que dirigiu e levou a
efeito toda a reforma, notando-se que este último, ao morrer, legou uma grande fortuna à Santa Casa.
O Hospital, desde muitos anos chamado Santa Casa da Misericórdia, foi sempre o traço
de união entre as chamadas classes pobres e proletárias e a aristocracia social e comercial de Santos, como uma demonstração de cuidado e carinho da
parte rica da cidade pela parte pobre sofredora, tornando impossível a existência de preconceito entre uma e outra.
A 10 de março de 1928, sob influências que até hoje não
foram bem determinadas, e em repetição ao desmonte verificado no mesmo lugar, em 10 de fevereiro de 1901, houve uma
precipitação de terras na parte oriental do Monte Serrate, ruindo a começar da sua parte mais alta algumas centenas de toneladas de terra, que
vieram atingir não só pequenas casas das proximidades, soterrando-as, como a parte dos fundos do Hospital da Misericórdia, inutilizando ou
destruindo algumas dependências ao lado do necrotério, e causando algumas vítimas.
Terceiro prédio da Santa Casa, na Av. São
Francisco, em 1936,
poucos anos depois do desabamento do morro em 1928
Foto: autor ignorado
Alarmada toda a sociedade, várias subscrições foram abertas para socorro dessas
vítimas e possível mudança da Santa Casa para outro local, abrigado de idêntica surpresa. De todos os lados choveram donativos, atingindo estes a
importância de alguns milhares de contos de réis, que trouxeram como conseqüência a construção do novo hospital nos campos do
Jabaquara, que só ficou pronto em parte, faltando dinheiro para completar-se o edifício de vastas proporções.
Mantinha a Irmandade, juntamente com o hospital e como conseqüência do legado João
Otávio, feito em testamento público para esse fim, o Instituto D. Escolástica Rosa, situado na Ponta da Praia, destinado ao
ensino primário de menores desfavorecidos e à aprendizagem de vários ofícios, estabelecimento agora transformado pelo governo do Estado em Escola
Profissional oficial, com grande aproveitamento do povo.
O histórico das administrações da Santa Casa abrange o melhor da sociedade santista de
todos os tempos, incluindo em suas obras os seus nomes mais representativos em todas as esferas, e vamos dar, aqui, todos os Provedores conhecidos
desde 1832 até nossos dias:
Época |
Provedor |
1832/1833 |
cap. Antônio Martins dos Santos |
1833/1834 |
Francisco d'Araújo Fonseca |
1834/1835 |
Antônio Cândido Xavier de Carvalho e
Souza |
1835/1836 |
capitão Antônio Martins dos Santos |
1836/1838 |
Cláudio Luís da Costa |
1838/1839 |
Barnabé Vaz de Carvalhais |
1839/1840 |
dr. José Antonio Pimenta Bueno (marquês
de S. Vicente) |
1840/1842 |
José Vicente Garcez Trant |
1842/1843 |
Joaquim Xavier Pinheiro |
1843/1844 |
José Batista da Silva Bueno |
1844/1845 |
Vitorino José da Costa |
1845/1846 |
dr. José Firmino Pereira Jorge |
1846/1847 |
Jeremias Luís da Silva |
1847/1848 |
Manoel Joaquim Ferreira Neto |
1848/1849 |
Firmino José Maria Xavier |
1849/1850 |
Manoel Luís Pereira Maga |
1850-1851 |
Miguel Henrique Marques de Oliveira
Lisboa |
1851/1852 |
dr.Francisco Xavier da Costa Aguiar
Andrada (barão Aguiar Andrade) |
1852/1853 |
João de Souza Carvalho |
1853/1854 |
José Antônio Vieira Barbosa |
1854/1855 |
Antônio Marques de Saes |
1855/1856 |
Vitorino José Gomes Camilo |
1856/1857 |
Manoel Inácio da Silveira |
1857/1858 |
João Batista de Souza |
1858/1859 |
dr. José Antônio Pereira dos Santos |
1859/1860 |
Jeremias Luís da Silva |
1860/1874 |
José Joaquim Floriano e Silva |
1874/1875 |
Francisco Martins dos Santos |
1875/1878 |
João Otávio dos Santos |
1878/1879 |
Francisco Antônio Rosa |
1879 |
com. Theodoro de Menezes Forjaz |
1879/1880 |
dr. Henrique da Cunha Moreira |
1880/1882 |
Antônio Ferreira da Silva (Visconde de
Embaré) |
1882/1896 |
João Otávio dos Santos |
1896 |
Ernesto Cândido Gomes |
1896/1902 |
Júlio Conceição |
1902/1906 |
José Proost de Souza |
1906/1909 |
Belmiro Ribeiro de Morais e Silva |
1909/1910 |
Francisco Marcos Inglês de Souza |
1910/1913 |
Antônio de Freitas Guimarães Sobrinho |
1913/1923 |
com. Manoel Augusto de Oliveira Alfaia |
1923/1931 |
Alberto Baccarat |
1931/1932 |
Flamínio Levy e José Vaz Guimarães
Sobrinho |
1932 |
José Vaz Guimarães Sobrinho |
1933/1935 |
cel. Evaristo Machado Neto |
1936/1938 |
José Gonçalves da Mota Júnior |
1939 |
Henrique Soler |
1940/1941 |
dr. Flor Horácio Cyrillo |
1941/1942 |
José Vieira Barreto |
1942/1945 |
Benedito Gonçalves |
1946 |
Adélson Nogueira Barreto |
1946/1949 |
dr. Hugo Santos Silva |
1950/1951 |
Henrique Soler |
1952 |
Álvaro Rodrigues dos Santos |
1953/1955 |
dr. Eduardo Victor de Lamare |
1956/1963 |
Luiz La Scala |
1963/1964 |
Ricardo Pinto de Oliveira |
1964/1969 |
dr. Cyro de Athayde Carneiro |
1969/1979 |
dr. José Gomes da Silva |
1979/1980 |
Walter Cotrofe |
1980/1982 |
Bento Ricardo Corchs de Pinho |
1982/1983 |
José Roberto Cordeiro |
1983/ |
Antônio Manoel de Carvalho (atual) |
O Hospital da Misericórdia já foi considerado, em princípio deste século
(N.E.: século XX), o melhor hospital da América do Sul, contando-se hoje entre os melhores do
nosso continente. Somente em 1934/1935 foi iniciada a publicação dos Anais da Santa Casa de Misericórdia, com o aparecimento do seu primeiro
volume, que, a par da exposição de muitos casos tratados no hospital e da sua organização interna no presente, reproduz o compromisso de 1551,
calcado sobre o Regimento de 1548, e a Confirmação Real de 1551 que reconheceu a existência da Confraria da Misericórdia em Santos e equiparou-a às
já existentes em Portugal, estabelecendo para seu fundamento o cumprimento das catorze obras de misericórdia.
As atuais instalações da Santa Casa foram inauguradas a 2 de julho de 1945, com a
presença do presidente da República, dr. Getúlio Dorneles Vargas.
Sendo um enorme hospital, provido de clínicas para quase todas as especializações
médicas e dispondo de 1.375 leitos, com mais de mil funcionários, médicos, enfermeiros, técnicos, cozinheiros, dietistas e auxiliares
administrativos, a Santa Casa da Misericórdia de Santos enfrentou, por vezes, sérias crises financeiras, principalmente nos últimos dez anos, quando
inclusive chegou a paralisar suas atividades e teve ameaçada a sua sobrevivência, de cujo estado caótico vem sendo magnificamente recuperada pela
atual Mesa Administrativa, sob a Provedoria do dr. Antônio Manoel de Carvalho, que, em 1985, já terá o respeitável hospital
na plenitude de seu funcionamento, por certo restabelecendo a tradição de 450 anos da grande "Misericórdia".
A Santa Casa da Misericórdia de Santos não é apenas o maior monumento da história
santista, mas em verdade a grande casa assistencial que sempre teve suas "Portas Abertas Para o Mar".
O quarto prédio, na Av. Dr. Cláudio Luiz da Costa (no
bairro do Jabaquara), em 1972
Foto: suplemento A Escolinha do Diário Oficial de Santos, 13/11/1972
Notas
[1] Calixto, em seu famoso
tríptico sobre a instauração da Vila de Santos, existente na parede da Bolsa Oficial de Café,
que é uma preciosidade como pintura, e que existe reproduzido, em livros, galerias e museus ou institutos, além de outros erros históricos, praticou
mais este, de incluir entre as figuras presentes o pároco Gonçalo Monteiro, que nem estava na Capitania naquele ano, nem era vigário de Santos.
Gonçalo Monteiro voltou para o Reino ao fim da sua gestão, cerca de 1539, e só retornou ao Brasil depois de 1550.
[2] É preciso não esquecer
que Pedro Taques viveu na época em que ainda existiam o Hospital e a Igreja da Misericórdia no lugar apontado.
[3] Era vigário de Santos,
nessa ocasião, o padre Francisco de Oliveira Leitão.
[4] Primeiro livro
manuscrito de Registro da Irmandade da Santa Casa da Vila de Santos - 1836/37. Elogio do Médico - Hugo Santos Silva, p. 35.
[5] Para melhor compreensão
desta passagem consulte-se a relação dos provedores. |