Local onde existiu o chafariz, em fins da década de 1950,
observando-se inúmeras inscrições eleitorais na histórica rocha
Foto: Justo Peres, publicada com a matéria
Pedra do Imperador, uma relíquia esquecida
Pesquisa e texto: J. Muniz Jr. Fotos de arquivo.
Programação visual: José Coriolano Carrião Garcia
Na maioria dos países civilizados de todo o mundo, as
relíquias históricas são conservadas com muito carinho, merecendo a atenção das autoridades e do próprio povo, pois representam a história do
passado. Por esse motivo é que são tombadas, para que sejam preservadas e cultuadas, como parte da cultura dessas nações.
Esses monumentos são tombados dentro de um critério de notável valor e atingem uma
variedade imensa de bens móveis e imóveis, tais como: os fortes, fortalezas, mausoléus, museus, conjuntos arquitetônicos, parques, paços, igrejas,
capelas, oratórios, ruas, pontes, lápides tumulares, retábulos, imagens, postadas, arcos, marcos comemorativos, portões, estações, outeiros, bicas e
chafarizes.
Tudo que for tombado pelo Patrimônio Nacional fica sob a proteção do Poder Público,
pois foi através do decreto-lei nº 025, de 30 de novembro de 1937, que foram lançadas as bases do Patrimônio, constituindo-se das jazidas
arqueológicas, monumentos, paisagens notáveis, bem como as obras e locais de valor artístico ou histórico. E o conjunto de bens móveis e imóveis
existentes no País, e cuja conservação seja do interesse público, quer por vinculação aos fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico, também estão enquadrados na aludida lei.
Entre os valores históricos que merecem ser conservados e cultuados, pelo passado
cheio de recordações pitorescas, estão os monumentos naturais. As bicas, fontes e chafarizes, bem como os sítios e paisagens, merecem ser
preservados pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou pela habilidade humana.
Em Santos, cidade quatro vezes centenária e cheia de recordações históricas, existiram
várias fontes naturais, como a de São Jerônimo (antiga denominação do Monte Serrate); a de São Tomé,
que ficava num pequeno outeiro junto da praia (entre as atuais Avenida Bernardino de Campos e Rua Floriano Peixoto), nos primeiros tempos santistas;
das Duas Pedras (localizada junto da Pedra da Feiticeira, onde hoje se encontra a Rua (beco) Tiro Naval; a do Pacheco (no
morro do mesmo nome) e do Itororó, a mais famosa de todas, hoje (N.E.:
1980...) desligada e abandonada na subida do Monte Serrate, e que se constitui num verdadeiro ponto histórico da
cidade.
Também na Vila Matias, bem nas imediações da antiga estação
de bonde da City, local do antigo Quilombo do Pai Felipe, havia uma bica e, voltando a um passado mais distante, poderemos
mencionar a Fonte de Nossa Senhora do Desterro, cujas águas corriam pela gruta abaixo, formando o ribeiro do Macaia, que ia
desaguar no Valongo. Essa fonte era muito procurada pelos moradores das redondezas e pelos tripulantes das embarcações
que atracavam junto ao trapiche e que para ali se dirigiam a fim de se abastecer do precioso líquido e carregá-lo depois em barris para bordo.
Uma relíquia histórica - Na subida do Morro de São Bento,
junto ao elevado, bem no pé das escadarias que dá acesso ao secular Mosteiro, existe uma formação rochosa que, embora
despercebida pela maioria dos transeuntes, é uma das poucas relíquias naturais da cidade, e que, por esse motivo, faz parte do patrimônio histórico
do Município. Trata-se de uma rocha, na qual está gravada uma homenagem ao imperador d. Pedro II, que por aqui esteve pela primeira vez em 1846,
acompanhado pela imperatriz dona Tereza Cristina, quando inaugurou um chafariz ali existente na época.
O bloco rochoso que está localizado ao lado das escadarias do morro remonta aos tempos
da fundação do povoado, e foi naquele sítio que outrora se instalou o sesmário Bartolomeu Fernandes, conhecido historicamente como Mestre Ferreiro,
e que aqui chegou em 1532 como um dos artífices da Armada Colonizadora de Martim Afonso de Souza.
Contam os antigos historiadores que foi o mestre Bartolomeu quem construiu a primitiva
capela de Nossa Senhora do Desterro naquele local. Também corre a lenda de que foi o ferreiro da Armada quem cavou (durante
vinte anos), com suas próprias ferramentas, o refúgio que se estendia pela gruta de Nossa Senhora do Desterro e que ia dar no
Tachinho de Martim Afonso (atual Nova Cintra).
Dez anos após a morte do Mestre Bartolomeu, a gruta veio a servir de refúgio para a
população santista durante o ataque do corsário Cook à vila em 1590, servindo igualmente de abrigo e de passagem secreta em outras investidas que
ocorreram posteriormente, quando os habitantes foram perseguidos por piratas e pelos índios.
Tempos depois, naquele mesmo local, surgiu o Mosteiro de São Bento, fundado em 1650, e
que passou a ser construído nos terrenos doados pelo Mestre Ferreiro, cujas terras - segundo observa o historiador Francisco Martins dos Santos na
sua História de Santos (1937) "correspondem hoje à região que vai da Rua de São Bento ou adjacências, até
próximo ao Quartel da Rua de São Leopoldo e do Morro de São Bento até junto aos antigos mangues do estuário".
Antigas documentações revelam que, naquele mesmo ano de 1650, a viúva de Bartolomeu
Fernandes Mourão, dona Izabel Barbosa, e seu filho Antonio Fernandes Mourão e sua mulher, dona Maria Rebello (ou Rosella), doaram aos religiosos de
São Bento a Ermida de Nossa Senhora do Desterro, onde se estabeleceram a partir de fevereiro daquele ano, e a partir de então começaram a primeira
edificação.
No entanto, existe afirmativa de que o segundo edifício do mosteiro somente foi
erguido a partir de dezembro de 1725, pelo frei Pedro de São Caetano Pontes, que lançou a sua pedra fundamental sobre uma aprazível eminência de
forma granítica, junto de uma fonte cujas águas brotavam das rochas, e de onde corria o ribeiro do Desterro ou de São Bento. Naquelas imediações
ficava a Fonte de Nossa Senhora do Desterro, junto da pedra grande, que na época era um local coberto por uma vasta vegetação.
Rua São Bento, com o mosteiro e a fonte ao fundo., em foto de
Militão Augusto de Azevedo. Note-se a reforma da torre sineira do mosteiro, quando o telhado piramidal foi substituído por uma cúpula de tijolos
em forma de meia taça, mantida até os dias atuais
(albúmen com 10,5 x 17,2 cm. Acervo Instituto Moreira Salles )
Imagem reproduzida no livro Santos e seus Arrabaldes - Álbum de Militão Augusto de
Azevedo, de Gino Caldatto Barbosa (org.), Magma Editora Cultural, São Paulo/SP, 2004
A visita do imperador - "Desde sua ascensão ao
trono - assinala Rodolfo Garcia na sua obra Viagens de d. Pedro II - manifestou
desejos de visitar as províncias do Império, para melhor conhecer de suas necessidades e de seus recursos naturais, que uma inspeção individual
havia de tornar mais palpitantes nas futuras deliberações governamentais. Entretanto, razões de ordem pessoal umas, de ordem política outras,
fizeram protrair a visita imperial cerca de um lustro, de modo que somente em outubro de 1845 pôde o imperador empreender sua primeira viagem, que
teve como objetivo as províncias do Sul..."
Dotado de um imenso patriotismo, desde cedo o imperador demonstrou o desejo de
conhecer pessoalmente as cidades das províncias brasileiras. E, assim, em companhia da imperatriz, que desposara em 1843, saiu dois anos depois em
excursão às províncias do Sul, partindo do Rio de Janeiro, junto com a Esquadra Imperial, sob o comando do chefe Greenfell, no dia 6 de outubro de
1845. Os imperantes viajaram a bordo da fragata Constituição comandada pelo capitão-de-fragata Joaquim Ignácio, e que chegou a Santa Catarina
no dia 12 do mesmo mês.
Após demorada excursão pelas províncias do Sul (entre Santa Catarina e São Pedro do
Rio Grande do Sul) - o vapor Imperatriz partiu no dia 17 de fevereiro de Santa Catarina, trazendo os ilustres visitantes de regresso para a
corte. Mas, antes de aportar no Rio de Janeiro, o monarca deveria visitar ainda alguns pontos da província de São Paulo, constando do seu roteiro as
cidades de Santos, São Paulo (Capital), Sorocaba, Itu, Campinas; as vilas de São Roque, Porto Feliz e Jundiaí, além dos povoados de Cotia e São
Bernardo.
De fato, na tarde do dia 18 de fevereiro, s.m. o imperador d. Pedro II e sua esposa a
imperatriz dona Tereza Cristina desembarcaram em Santos debaixo da ovação popular, pois o capitão Antônio Martins dos Santos, presidente da Câmara,
havia recebido ordem do então governador da província, marechal Manuel da Fonseca Lima e Silva (futuro barão de Saruí) para promover uma pomposa
recepção aos augustos soberanos.
Cumprindo a ordem do marechal-governador, o presidente da Câmara local programou
várias solenidades e festejos populares em honra dos visitantes oficiais, que também foram saudados por salvas de canhões, disparadas pelos fortes
de Vera Cruz do Itapema e de Nossa Senhora do Monte Serrate (junto do porto). E
junto da ponte de desembarque, no cais da Alfândega, foram postadas alas das forças militares, inclusive da Guarda Nacional,
cujos garbosos soldados prestaram-lhes as honras de estilo dignas dos soberanos. Seguiram-se o toque de bandas, acompanhado pelo repicar dos sinos,
enquanto os visitantes se dirigiam para a igreja Matriz, onde foi celebrada missa de ação de graças.
No dia seguinte, as festividades prosseguiram com grandes recepções nas mansões,
solares e chácaras de propriedade dos eminentes comendadores locais, tais como Ferreira Martins, Ferreira Neto e Ferreira da Silva, sendo que no dia
23 houve uma grandiosa parada, Te-Deum e sermão na Matriz, seguindo-se de salva de fogos, inauguração do Chafariz da Coroação, muita cantoria
e dança ao ar livre, com a presença de toda a população da cidade e adjacências.
O majestoso Chafariz da Coroação, que recebia água canalizada da Fonte do Itororó, foi
erguido junto do Largo da Misericórdia, que passou a chamar-se posteriormente Largo da Coroação (hoje
Praça Mauá). E sua inauguração ocorreu na noite do dia 23, quando aconteceu um pitoresco
episódio, pois no momento em que o imperador colocou sua caneca de ouro (que lhe foi ofertada pela Câmara) debaixo da torneira do chafariz, em vez
de água, jorrou vinho puro e saboroso. O autor da surpresa e da homenagem foi um monarquista lusitano que mandara ligar tonéis de vinho junto da
fonte.
Naquela mesma oportunidade, o nobre casa visitou a Fonte de Nossa Senhora do Desterro,
inaugurando também o chafariz da subida do morro de São Bento. E para comprovar o festivo acontecimento, bem como a histórica passagem do segundo
imperador do Brasil pela cidade, na rocha existente naquele local ficou gravada a seguinte inscrição: "DP II - 1846".
E assim como ocorreu com a Bica do Itororó e com a Fonte das Duas Pedras, o chafariz
de São Bento também foi destruído e abandonado já em fins do século passado (N.E.: século XIX).
Dele só restou o monolito rochoso, que teve a primazia de registrar a visita do imperador d. Pedro II, cuja inscrição ostenta até os dias atuais,
embora esteja completamente esquecido.
Detalhe da inscrição. Note-se outra acima dela, mais antiga e parcialmente apagada: "1845"
Foto publicada com a matéria
No Rio de Janeiro, entretanto, que se moderniza de ano para ano - os famosos Arcos
(por donde corre o bondinho que vai para Santa Tereza), o Chafariz do Paço (construído em 1789) e tantos outros monumentos históricos que remontam
aos tempos coloniais e imperiais, ainda continuam preservados, servindo, inclusive, como atração turística da cidade.
Não podemos esquecer igualmente que nas cidades históricas de Minas Gerais, em
Salvador na Bahia, em São Luís do Maranhão e tantos outros municípios brasileiros, os monumentos e paisagens históricas são motivo de orgulho para o
povo. Enquanto isso, aqui em Santos, muitas das coisas que registram o passado foram postas de lado, como se fossem velharias.
Bem que aquele reduto, na subida do morro de São Bento, poderia ser restaurado, com
uma alegoria alusiva ao fato histórico, e transformado num logradouro público para que pudesse figurar no roteiro turístico da cidade e ser visitado
diariamente pelos forasteiros e pelo próprio povo santista. Afinal, apesar da rocha ainda encontrar-se coberta de dizeres, que lhe dão um aspecto
horrível, pode-se ler claramente a antiga inscrição que assinala a passagem do imperador por ocasião da inauguração da velha bica que desapareceu na
poeira do tempo.
Faz-se oportuno registrar que, numa extremidade à direita da rocha, também está
cravada uma placa comemorativa que relembra a primeira viagem de automóvel entre São Paulo e Santos, levada a efeito no dia 17 de abril de 1908,
assinalando assim um outro fato histórico e valorizando ainda mais aquele local onde se encontra uma verdadeira relíquia natural da história
santista. |