Olao Rodrigues (*)
Em 1850, Santos pobrezinha!, era muito reduzida.
A atual Avenida Senador Feijó, com seu tráfego ininterrupto, fora do comum, não passava
de simples caminho que saía da Rua do Rosário (João Pessoa), passava pelo Campos (depois
Quadra Mauá e hoje Praça José Bonifácio), alcançava a 7 de Setembro, defluía para o lado direito, cruzava a atual Brás
Cubas e eis depois a atingir, lá em cima, o Caminho da Barra, junto ao Caldeireiro ou o Rio dos
Soldados, onde hoje se localiza a Avenida Campos Sales.
Seu Antoninho recebe a visita da feiticeira, sua mãe!
A
chácara de Dona Angelina era o derradeiro reduto da Cidade de 130 anos atrás. O resto não passava de mato e mato selvagem que afluía ao
Monte Serrate e onde pedrouços se aglomeravam, recamados de limo e folhagem, formando a paisagem da atual e sofisticada
Senador Feijó. Depois da velha chácara, o mato que Braz Cubas encontrou ao chegar à nossa terra ainda continuava como então, denso, respeitável e
virgem.
A chamada Pedra da Feiticeira fica justamente nesse ponto, na junção da barreira formada pela chácara, hoje
Rua Tiro Naval, pouco aquém das Duas Pedras, onde havia pequena cachoeira. O Buraco da Velha ficava-lhe a
cavaleiro, à altura do local agora ocupado pelo Depósito de Obras da Prefeitura Municipal, no Largo 7 de Setembro.
Era ali, leitores, que vivia uma velha horrenda, segregada de qualquer contato social. Mulher idosa, alquebrada,
desgrenhada, extravagante, envergando sempre uma bata de algodão, com uma cobertura de palha à guisa de chapéu amarrado à cabeça. Quem era ela
ninguém sabia, porque ninguém dela se aproximava. Não saía durante o dia, senão a horas tardias da noite, arrastando-se com seus mulambos, sempre
desacompanhada, sempre misteriosa. Parecia ente fantástico. Quem porventura lhe cruzasse o caminho, fugia espavorido ante a deformidade do seu
aspecto físico.
Era uma bruxa!
Diziam que Dona Angelina, mulher generosa, sustentava esse arremedo humano, que muitos afirmavam haver visto em
seus bruxedos sobre a pedra famosa, horas mortas, a saltar sobre o fogo, a gargalhar, a dizer palavras incompreensíveis e espargindo água e cinza
sobre as labaredas.
Retrocedamos 70 anos, quando na Vila estourou escândalo que abalou a pequena sociedade. Uma viúva, que
gozava de bom conceito, mãe de dois filhos e filha, por sua vez, de família importante, havia cedido à tentação de um militar de passagem para o
Sul. Prevaricou. Apaixonando-se pelo soldado, abandonou os filhos e saiu à procura do seu conquistador. E nunca mais dela se teve notícia.
Quanto aos filhos, guardando o estigma de um crime que não cometeram, foram criados por parentes, aliás, mal
criados, quase passando fome até que a filha, minada pela tuberculose, veio a falecer. Quanto ao rapazelho, fez-se homem respeitável, tornando-se
Despachante Geral da Alfândega.
Seu Antoninho, como era chamado, homem de posses, vivia comodamente, solteirão, servido por uma governanta,
morando na Rua de São Francisco de Paula. Era um bom. Dividia com os pobres boa parte do que ganhava, mas humilde em seus
gestos de munificência, escondendo sempre a mão doadora.
Era 1850. Antoninho adoeceu seriamente, e a notícia consternou a população toda, que o estimava pelo
caráter retilíneo e generosidade humílima. D. Angelina, por todos respeitada, foi visitar o Seu Antoninho. Viajou de coche, falou rapidamente com o
enfermo e chamou à parte a preta serviçal, dando-lhe qualquer recomendação. Logo depois retornou à sua chácara.
Naquela noite, houve alvoroço na Cidade. Corria a notícia de que Seu Antoninho, com seu estado agravado, aguardava
a morte. Muita gente afluiu à residência do bom homem, que contava 52 anos de idade. Essa gente também viu a bruxa da Pedra da Feiticeira a penetrar
na casa do Seu Antoninho e fechar-se no quarto do moribundo.
- "A Feiticeira! A Feiticeira está lá dentro!"
- "Credo! Cruz! A Bruxa da Pedra!"
- "Nossa Senhora do Monte Serrate proteja o Seu Antoninho!"
Na verdade, lá estava a bruxa, levada pelas mãos de D. Angelina, que se acercou do enfermo e falou-lhe:
- "Seu Antoninho, sua mãe quer vê-lo!"
- "Minha mãe? Não tenho mãe há tantos anos!"
Foi quando a feiticeira se aproximou do leito, ajoelhou-se e exclamou;
- "Meu filho! Meu filho! Perdoa-me!"
O moribundo ainda teve forças para dizer:
- "A Feiticeira da Pedra, meu Deus!"
D. Angelina, ajudando-o a repousar a cabeça no travesseiro, asseverou com convicção:
- "É, sim, é sua mãe, Seu Antoninho. É ela. Tem sofrido muito. Perdoa-lhe".
- "Minha mãe! E eu que dei tantas esmolas à minha própria mãe!"
Subitamente, como se uma inspiração divina o alentasse, balbuciou:
- "Minha mãe! Minha mãe!"
- "Meu filho!"
Mãe e filho abraçaram-se enquanto soluços e lágrimas se misturaram na sala em penumbra.
A nova estourou em toda a Cidade:
- "A Feiticeira é a mãe do Seu Antoninho!"
Naquela mesma noite, seu Antoninho, o homem boníssimo, amigo de todos, o filantropo, o filho da mulher repelente e
desgrenhada, entregou a alma à mansão dos justos.
Dias depois, numa árvore, junto ao Buraco da Velha, foi encontrado o corpo, já em decomposição, daquela que o povo
entendia como feiticeira, a bruxa, a repugnante, a prevaricadora, mas que era mãe, e mãe de um santo homem!
(*) O falecido escritor Olao Rodrigues foi autor de diversos livros
publicados em Santos/SP, entre eles a Cartilha da História de Santos, de 1980, da qual foi extraída
esta história.
N.E.: Alguns pesquisadores situam erroneamente a Pedra da Feiticeira em outro local, na
confluência das ruas Amador Bueno e Constituição. É assim que aparece, por exemplo, na História de Santos/Poliantéia Santista, de Francisco
Martins dos Santos e Fernando Martins Lichti, editada em 1986, volume III (Editora Caudex Ltda. - S.Vicente/SP). |