O espírito religioso de Mestre Bartolomeu, o ferreiro vindo na Armada de 1532,
deixara a Santos, naquele final da era seiscentista, como lembrança duradoura de sua passagem, escondida no morro central de sua sesmaria, a Capela
de Nossa Senhora do Desterro. Muitos anos sonhara Mestre
Bartolomeu com a volta para os campos de sua saudosa província alentejana, mas sonhara em vão, em vão contemplara por anos e anos a fio, a partida
alegre e triste daquelas dezenas de velas grandes, que se punham, barra a fora, rumo ao seu saudoso Portugal; jamais pudera abandonar a gleba
feiticeira de Enguaguassú, a humildade das posses com que provera em tão longos anos de vida, as necessidades da
multiplicação com que Deus abençoara o seu lar. Nunca se maldissera porém, ou imprecara contra o destino que transformara os dois anos que devia
ficar na nova terra, em cinqüenta.
Anos antes de morrer, Mestre Bartolomeu começara uma grande obra para a Vila - era o
que sempre dizia a todos - mas nunca chegara a revelá-la e muito menos a exibi-la, talvez por não haver conseguido terminá-la em vida. Ao morrer,
porém, declarou aos amigos que sua grande obra estava quase terminada, e que um dia saberiam dela.
Chegaram a pensar mal de Mestre Bartolomeu, o lutador, que tantos e tão bons serviços
prestara a Santos e à colonização, fabricando todas as ferramentas que trabalharam o chão, que fizeram os objetos de uso e levantaram as casas de
toda a região vicentina. Muita gente pensou que fosse cousa da idade, mania de um velho de oitenta anos. Seu filho, porém, recebera dele uma secreta
incumbência e prometera cumpri-la.
Fazia agora dez anos da morte do ferreiro. Corria o ano de 1590, quase ao fim.
Bartolomeu Fernandes, o filho, acabara de completar a obra prometida por seu pai, e declarava estar para breve a sua revelação ao povo de sua terra.
Um acontecimento forte e imprevisto viera precipitar as coisas. Na noite de 16 de
dezembro daquele ano, noite escura e tormentosa, investia a barra de Santos, penetrando a luzes apagadas em seu porto, Cook, corsário inglês,
lugar-tenente do famigerado Cavendish, antecipando-se à arribagem do pirata chefe. A manhã de 17 veio encontrá-lo surto no
porto da Vila, em frente ao Forte da Praça, baterias assestadas contra a pequena fortificação, que, intimada a
render-se, em breve assim procedia, convencida sua gente da inutilidade da resistência.
O aparato bélico com que se apresentava o pirata em seus dois fortíssimos galeões de
guerra, dispensou outras apresentações. Cook vinha buscar provisões, água, mantimentos, e tudo mais de que careciam, mas, via-se logo, pela gente
brutal que ele despejava em terra - gente desgrenhada, horrível, varada de necessidades e privações de toda natureza -, que sua atuação ali iria
muito além da coisa objetivada.
Alguém, que o pudera fazer a tempo, correra pela Vila, a anunciar o fato, pintando os
piratas com as piores cores e aconselhando a fuga.
Uma parte do povo já estava na Igreja de Santa Catarina e
no Colégio dos Padres, ouvindo a primeira missa, ambos ali mesmo ao pé do desembarcadouro. Ao terrível aviso, alguns ficaram onde estavam, agarrados
aos santos e aos sacerdotes, enquanto a maioria punha-se em fuga. Eram calvinistas, e decerto não respeitariam as igrejas.
Os sinos da Capela de Santa Catarina, do Colégio, de Nossa Senhora da Graça, e do
Conselho (onde os havia também para isso) soaram a rebate, desesperadamente. A Vila inteira despertou assustada,
preparando trouxas com mantimentos e valores, para a debandada, como sempre acontecia nas invasões.
Um homem surgiu então, em toda parte, transfigurado, gritando às famílias que o
seguissem, com todos os seus valores, pois estariam todos salvos... era o filho de Mestre Bartolomeu, era o Messias surgido na polvorosa da Vila.
Nos grandes pavores, as grandes solidariedades.
- Venham comigo! - gritava ele, correndo as poucas ruas e caminhos do pequeno burgo
que era a sua terra.
Confusamente, enquanto os homens válidos da Vila, com João de Abreu e Diogo de Unhate
à frente, resistiam aos piratas na estacada da Alfândega e do Conselho, com seus bacamartes afeitos à luta, velhos, mulheres e crianças se reuniam
em torno de Bartolomeu Fernandes, seguindo, varados de sustos e temores, de indecisões e desconfianças, atrás dos passos do filho do ferreiro, rumo
a esse ponto certo e distante, onde ele dizia estar a salvação do povo e de seus valores dali por diante.
Muitos murmuravam e descriam do auxílio do moço.
Surgiam em frente deles, o morro e a Capela de Nossa Senhora do Desterro. Que aflição
para todos! Parecia-lhes que a gente corsária já lhes vinha no encalço, crispando as unhas e arreganhando os dentes. Eram mais de trezentos, e
rezavam, e lastimavam-se em voz alta, pronunciando os nomes dos santos da devoção.
A fila de retirantes galgava o morro. Já viam o porto, lá da altura em que todos se
achavam. Pouco à frente, lá estava, bem perto, alegre como um sorriso, de tão clara, a Capela de Nossa Senhora. O caminho terminava pouco além, mais
ao fundo, e uma touceira compacta de bananeiras, embiocava o talude pedregoso do morro.
- Bartolomeu! Bartolomeu! Onde está a salvação que nos prometeste? - perguntavam
nervosos, descrentes, os principais fugitivos, enquanto choravam e soluçavam as crianças.
Bartolomeu galgou uma rocha solta. Estava a cavaleiro de todo o vasto cenário
santista, a perder-se ao longe, em todas as direções, no círculo azul da cordilheira; sorriu, inflando as narinas e enchendo o peito. Parecia-lhe
naquele momento ver na curva ampla do céu enfarruscado a figura luminosa do pai, o velho ferreiro, feliz por ver cumprida a sua promessa.
O moço saltou, lépido, da rocha em que estava, deu alguns passos, e recuando as folhas
balouçantes das bananeiras, mostrou a todos, entre as rochas do talude, a entrada ampla de uma gruta.
Bico-de-pena existente no livro de Francisco Martins dos Santos
- É a obra de meu pai! A gruta de Nossa Senhora do Desterro! Penetrai por ela! Vai
para o Tachinho (N.E.: atual Morro de Nova Cintra), para a floresta livre, caminho seguro
e desconhecido para São Vicente!
Dando exemplo à turba indecisa, Bartolomeu penetrou, escuro a dentro, como um
bandeirante.
Naquele momento, os bárbaros de Cavendish, afugentados os últimos defensores de
Santos, pela superioridade das forças e pelo imprevisto do ataque, acabavam de tomar posse da Vila, saqueando os armazéns, incendiando o que lhes
era inútil, procurando as mulheres, as jóias, a prata e o ouro que supunham existir...
Apesar da estadia de mais de um mês em Santos, não puderam os piratas compreender o
desaparecimento parcial e misterioso de sua gente, nem descobrir o seu esconderijo, entrando a fazer represálias contra a propriedade imóvel e até
contra os pobres animais da terra, por despeito.
E só assim, após a retirada dos corsários, dez anos decorridos sobre o desaparecimento
de Mestre Bartolomeu, pode o povo santista compreender a promessa do "Ferreiro", arrepender-se do juízo que fazia do bom velho e prestar públicas
homenagens à sua memória, concentrando-as na pessoa do filho.
Pelo tempo adiante, ao rebate das novas invasões corsárias e tamoias, o refúgio seguro
do povo santista, passou a ser a famosa gruta de Nossa Senhora do Desterro, ignorada dos invasores, cavada em vinte anos, com as últimas ferramentas
fabricadas pelo ferreiro de Martim Afonso.
Depois, a pequena Vila cresceu. Sessenta anos mais tarde, um neto do colonizador doava
aos capuchinhos as antigas terras de seu avô. Desapareceu Nossa Senhora do Desterro; implantou-se São Bento em seu lugar.
Passara a época das invasões, por assim dizer, e o esquecimento caiu sobre a velha gruta, cercada nos últimos tempos, de crendices e superstições.
A rocha, com a inscrição D. P. II - 1846, e o mosteiro de São Bento
(Foto publicada no suplemento A Escolinha, do Diário Oficial de Santos, em
28/8/1972)
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