Uma casa com paredes feitas de telhas francesas, o mosteiro altivo e até mesmo o
popular vendedor de jacas servem como referência para se saber que aquele amontoado de casas espalhadas ao redor formam a Vila e o Morro de São
Bento. São lugares tradicionais de Santos e faziam parte da sesmaria entregue por Brás Cubas aos cuidados de mestre Bartolomeu, ferreiro da armada
colonizadora. Aos poucos, ele formou o Sítio do Desterro, que mais
tarde foi doado aos beneditinos para a construção de seu mosteiro. Mas a ocupação propriamente dita das encostas começou no século XIX, não se
sabe exatamente quando.
O que se sabe com certeza é que de lá para cá houve um crescimento cada vez maior do
número de moradores. Desapareceram os sítios e os famosos engenhos, muito procurados pelos apreciadores de uma branquinha, e casas surgiram
por tudo quanto é lado, até em locais impróprios, comprometendo todo um equilíbrio.
A Prefeitura não realiza obras para prevenir acidentes e, por isso, volta e meia
acontecem deslizamentos, que sempre deixam um saldo de muitos desabrigados. Mas tem gente que não deixa o morro por nada. É o caso do
seu Luís, que está decidido a mudar do Largo do Machado para o ponto mais alto,
para o chamado Cruzeiro, pertinho das caixas de água da Sabesp. De lá, pode apreciar Santos quase inteira, sob um ângulo que poucos conhecem.
O morro era uma sesmaria do mestre Bartolomeu, ferreiro da armada
Se o Caminho do Wright falasse, teria muita história para
contar. É o mais antigo acesso ao Morro de São Bento e por ele passaram os primeiros moradores, carregando madeira, móveis e panelas nas costas.
Moradores que não se assustaram diante daquela baita encosta a ser explorada e nem temiam as dificuldades que na certa enfrentariam na condição de
pioneiros.
Ninguém sabe dizer ao certo quando começou a ocupação do Morro de São Bento. Mas gente
antiga por lá, como seu Américo de Souza, presidente da sociedade de melhoramentos, sempre ouviu dizer que o tal do Wright (de onde surgiu a
denominação Caminho do Wright) era proprietário da gleba voltada para o Centro de Santos e instalou os primeiros chalés de que se tem notícia.
Todas as casas até a ligação 13 pertenceram a ele.
Mas não resta dúvida de que foram os portugueses que deram vida ao lugar. Entre os
primeiros ocupantes havia também espanhóis e italianos, mas as sempre numerosas famílias vindas da Ilha da Madeira se constituíam em absoluta
maioria. Quem chegava por lá, deparava com uma típica vila portuguesa.
Parece desnecessário dizer que eles se encarregaram de abrir os escarpados carreiros,
pomposamente denominados de Caminho do Ferramenta, Caminho do Paulino, Caminho da Vicença, Caminho da Graxa e Caminho do Leonardo. E foram eles
também que, à medida da necessidade, alargaram esses primeiros caminhos e, em seus pontos mais íngremes, implantaram largas escadas.
Para convocar o pessoal para o trabalho, bastava pendurar um recado num ponto visível
qualquer, anunciando que em tal dia haveria serviço no lugar tal. E os homens compareciam com a maior disposição do mundo, mesmo quando era
preciso levar sobre os ombros os meios-fios de 120, 150 quilos com os quais se construiu as escadarias.
Muita solidariedade nos tempos do trabalho duro e das poucas vendinhas - A união
sempre foi a marca presente no dia-a-dia das famílias. E se fazia mais evidente nas horas de apuro. Bastava saber que alguém estava com uma dor
qualquer para toda a vizinhança ficar mobilizada. As mulheres se dividiam nas tarefas: uma corria para buscar folhas de uma erva milagrosa no
mato, outra dava comida para as crianças do doente, outra ia para a beira do tanque enxaguar as peças de roupa.
Quando morria alguém, o morro inteiro ficava triste. Falava mais baixo, movimentava-se
mais calmamente e um clima de pesar pairava por semanas e mais semanas. Era o membro de uma grande família que partia.
O popular seu Frederico
Os
mais antigos nunca esquecem essa solidariedade que havia, como volta e meia recordam os tempos em que o São Bento tinha apenas quatro vendinhas: a
do seu Zé Rodrigues, do seu Manoel de Abreu, do seu Manoel Rebola e do João Mendes. Mas outros comerciantes se
instalaram aos poucos e ficaram muito conhecidos, como o José Boi, o João da Alzira, o seu Andrade e o seu Frederico.
Este último não esconde o orgulho quando chega alguém da Vila Lindóia, do Jabaquara e de outros
pontos mais distantes procurando pela "venda do seu Frederico". É o resultado de anos e anos de trabalho, coisa que vem desde os tempos em
que subia aqueles carreirinhos pedregulhentos carregado de mercadorias nas costas, para abastecer seu estabelecimento. Sem contar que as compras
eram sempre entregues na casa do freguês. A dona de casa deixava a notinha com seu Frederico - 30 quilos de feijão, 30 quilos de arroz, 30
quilos de batata e aí por diante -, e podia ficar sossegada.
Agora, esse comerciante anda pensando em descansar, fechar a venda. Mas vai ficar na
lembrança de muita gente, como ficaram muitas outras pessoas e até alguns locais freqüentados por todo mundo, como a Fonte do Geraldo, os velhos
alambiques e o Bar do Largo, hoje substituído pela Padaria Duas Pátrias.
Os moleques e suas mil e uma brincadeiras, que nem sempre acabavam bem - Pois é. O
morro tem pontos tão tradicionais que, em outras épocas, havia uma verdadeira rivalidade entre os moradores de uns e outros. Isso acontecia entre
moleques do Largo do Machado e do Largo de São Bento: verdadeiras guerras se estabeleciam entre eles, sempre com muitas pauladas para tudo quanto
era lado. Brigas tão grandes como essas só mesmo quando algum ousava xingar a mãe do outro ou dar uma cuspida na cara. Ofensa maior não poderia
haver.
Para brigar e brincar, a molecada sempre demonstrava uma disposição sem precedentes. Os
meninos do Largo do Machado, entre eles o cartunista Lauro Freire, que morou no São Bento até os 20 anos, adoravam bater uma bola. Para desespero
das mulheres das imediações, logicamente...
Estas se viam malucas com tanta gritaria e vidros quebrados e faziam em pedaços a bolas
que conseguiam capturar. Uma vez, dona Margarida rasgou a bola de capão novinha que o Laurinho tinha ganho do avô. Ele ficou revoltado e
abriu seu dicionário de palavrões.
A criançada, que nunca deixava nada passar em branco, certa vez formou o Bloco das
Tesouras. Imagina se não era uma alusão às mulheres do Largo!
Quando não estavam tramando das suas ou disputando uma partida de futebol, os meninos iam
empinar pipa para os lados do Cruzeiro ou da Pedrona, brincar de garrafão ou de esconder a cinta. Essa última era uma invenção deles mesmos:
alguém escondia uma cinta e quem a achasse saía batendo em todo mundo. Dias depois, só se via gente com costas e pernas roxas.
A calma só se estabelecia quando havia cineminha ao ar livre. Casas comerciais
costumavam promover sessões embaixo da enorme mangueira do Largo de São Bento Juntava gente de tudo quanto era canto, munida de cadeiras, caixotes
ou bancos. E como o Robin Wood fazia sucesso!
E, por incrível que pareça, os outros ídolos dos meninos não passavam de famosos bandidos
e malandros do morro. Ficavam todos entusiasmados com as proezas dos chamados maus elementos e, devido à influência que eles exerciam,
acabavam acatando os conselhos para não enveredarem por aqueles caminhos. Isso mesmo: os malandros estimulavam os meninos e rapazes a estudarem e
serem gente de bem. E estes - entre eles o Aleijadinho, o Ilhéuzinho, o Pó de Arroz, o Dico, o Magrinho,
o Sequinho e Mequinho - ouviam tudo com a maior atenção.
Moradores que marcaram época por aquilo que eram e faziam - Nas histórias do São
Bento de outras épocas, não poderiam faltar também gente como o Grilo, a parteira Eugênia Cegonha, o Caruso, o Bigode,
a Marta Rocha, o Nambuca e os guardas-civis Salomé, Alemão, Arthur e Messias. Estes eram amigos da criançada e até
fundaram o Grêmio Infantil Unidos do São Bento, para proporcionar jogos e diversões.
O Grilo se parecia muito com o Amigo da Onça [N.E.:
personagem de charges de Péricles, publicadas na revista O Cruzeiro] e nunca se separava do chapéu e do
violão. Quando se punha a cantar, lembrava direitinho o Vicente Celestino. Vez por outra, parava na porta da dona Áurea e dizia: "A senhora
poderia dar uma rosa para eu enfeitar meu violão?" E, logicamente, dona Áurea não se recusava a atender o pedido.
O Caruso também gostava de dar uma de cantor, o Baiano vivia bêbado e o
Nambuca, dono de pés e mãos enormes, se assustava todo quando alguém ameaçava chamar a polícia. Mas poucos ficaram tão famosos como o peixeiro
Goianinha e seu fôlego fora do comum. Percorria os caminhos com um caixote na cabeça, anunciando que os peixes estavam vivos. E a letra
o do vivo ecoava por vários segundos. O suficiente para os gatos se assanharem todos.
Mas boa mesmo foi aquela do João Sinfrônio. Saiu candidato a vereador e ganhou um único
voto. Adivinhem de quem?
Seu Manoel Daniel viu muita coisa mudar: em lugar dos sítios, surgiram dezenas de
moradias, e a Cidade, tomada por prédios, sem suas tradicionais chácaras, se destaca como uma paisagem nova
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