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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1905 - por Álvaro Augusto Lopes

"Santos de então, mal calçada, mal iluminada (...) bocejava de tédio, ao escurecer, quando os primeiros pregões dos vendedores de frutas e bugigangas se faziam anunciar."

Artigo publicado no Almanaque de Santos para 1959 (1ª edição, Santos/SP, 1959, páginas 36 a 38 - exemplar no acervo da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio - SHEC - ortografia atualizada nesta transcrição):
 


Imagem: reprodução parcial da matéria original

Cavaco de memorialista

por Álvaro Augusto Lopes

Felizes as criaturas desta geração, que recolhem o fruto do esforço e do trabalho de seus antepassados! Felizes, porque estão usufruindo o cabedal acumulado em progresso e conforto, na Santos moderna, com suas avenidas amplas, seus logradouros agradáveis, suas praias bem cuidadas, por onde passeia o mundanismo bem posto, dentro da moldura da cidade salubre!

Higiene, conforto, melhoramentos urbanos, atrações turísticas - tudo isto faz lembrar, aos maiores de cinqüenta e cinco anos, a Santos de há meio século, que conheceram, na humildade triste da sua modéstia, a que faltava esse ar de mocidade, hoje exibido com orgulho. Em 1905, por exemplo, não havia bonde elétrico, só aqui inaugurado quatro anos mais tarde. Os carros da Companhia City eram puxados por vagarosos jumentos, que se revezavam de distância em distância, na Vila Matias, na Vila Nova, no Boqueirão, na Ponta da Praia e no José Menino. A viagem para São Vicente, por esse meio lento de transporte, se fazia pela praia e durava quase duas horas.

Pelo chamado Caminho do Matadouro, a ligação com a terra de Martim Afonso era feita por meio dum trem a vapor, que tinha estação inicial à Rua Itororó, esquina da Rua Amador Bueno, percorrendo as ruas Itororó, Rosário (hoje Rua João Pessoa), São Leopoldo, até alcançar o Largo do Saboó.

Largo do Rosário, atualmente Praça Rui Barbosa, foi naquela época formado com a derrubada de casas que havia nas ruas que ali desembocam. O Largo do Rosário tornou-se então o centro elegante da cidade, num tempo em que as praias eram sítios desertos, onde se ia tomar banho pela madrugada, antes que olhares indiscretos surpreendessem intimidades anatômicas...

Santos de então, mal calçada, mal iluminada, tinha enormes lampiões quadrados com bicos de gás em forma de leque, bocejava de tédio, ao escurecer, quando os primeiros pregões dos vendedores de frutas e bugigangas se faziam anunciar. Passavam vaqueiros, tangendo gordos animais, de onde o leite era ordenhado, em plena rua, à vista do freguês. Cantavam as excelências de suas mercadorias, em anúncios entoados com voz de barítono, os verdureiros, os chineleiros, os jornaleiros, os peixeiros, os latoeiros, numa estranha confusão melódica...

Passavam bondes envidraçados - sempre ao chouto de dois burricos mansos - conduzindo noivos e convidados, a caminho da igreja, ou féretros de "anjinhos", rumo aos cemitérios. Naquele tempo, o Paquetá era considerado arrabalde distante e o Saboó parecia ficar no fim do mundo...

Havia chineses, de olhos oblíquios, vendendo "nugás", dentro de pequenos quiosques portáteis. E havia sorveteiros, carregando baldes enormes à cabeça, de onde o creme gelado brotava, fabricado na hora, a pedido da clientela.

Grassava ainda a varíola, herdeira da febre amarela, que os canais de saneamento construídos pelo eng. Saturnino de Brito, haviam expulso da terra. De vez em quando, carros fechados e feios, com enfermeiros de gorro branco e túnica típica, invadiam as casas, onde havia denúncia da existência de bexiguentos.

Santos ia, de tarde, olhar as moças, que desciam do bonde, no Largo do Rosário, mostrando um palmo de perna envolta em meia finíssima de cor preta. Dali a pouco, às sete horas da noite - hoje diríamos "dezenove horas" - vinha da capital, pelo último trem - não existia outra estrada - o vespertino A Platéia, com as mais frescas notícias do mundo recebidas... dois dias antes. (Ainda não se poderia sonhar com a rapidez instantânea do rádio e da telefoto)...

Assistiam-se às funções dos circos armados na Praça José Bonifácio, que logo depois foi ajardinada e fechada com grades de ferro, como acontecia com a Praça dos Andradas, onde havia viveiros de pássaros e canais com jacarés... de argamassa de cimento. O primeiro cinema, por iniciativa de Francisco Serrador, foi instalado no terreno vizinho do Coliseu Santista, à Rua Amador Bueno, onde havia praça de touros a céu aberto. O pano largo, enorme, ficava suspenso dum quadro, no centro da arena, onde de quando em quando o "lidador" Adelino cobria de "bandarillas" coloridas os bicharocos de chifres embotados...

Na Rua Quinze de Novembro, perto do "Borsen-Halle", popular casa de bebidas e de boa cerveja legitimamente alemã, havia o "Bijou-Theatre", cinema em que mal cabiam cem pessoas, de propriedade dum sr. Bittencourt, de fartos bigodes caídos sobre os beiços. Mais além, próximo da Praça Barão do Rio Branco, o Cinema Moderno reunia assistência adequada ao nome: ali, em 1917, ouvimos Olavo Bilac proferir bela conferência de cunho nacionalista-militar, encerrada com o recitativo de sonetos, que depois apareceriam em seu livro Tarde, como Pátria Portuguesa, A Um Poeta e outros.

Em 1910 começaram a rodar, nas ruas empedradas de toscos "macacos", os primeiros automóveis de aluguel, em número reduzido, sendo também escassos os particulares. A primeira motocicleta, que andou correndo, com estampidos e atraindo basbaques cheios de curiosidade, pertencia a Américo Martins Júnior, filho do velho abolicionista de igual nome. O primeiro aeroplano que sobrevoou a cidade, foi o de Eduardo Chaves, vindo de São Paulo. Mais tarde aqui esteve Garros, famoso aviador francês.

Até então, sobre os céus de Santos, haviam pairado apenas os balões esféricos, inflados de gás, pilotados por Ferramenta e Alaor de Queiroz, mais ou menos em 1906. Este último aeronauta, mais tarde, durante a primeira guerra mundial, atropelou em Londres um policial inglês, sendo preso e condenado a longos anos de cárcere.

O balão de Alaor, havendo subido dum campo na Vila Matias, no começo da Avenida Ana Costa, sumiu entre as nuvens e foi cair na Ilha Barnabé. Foi nas vésperas do Carnaval e os mascarados dum "rancho" denominado "Vilões" batiam paus e cantavam, em coro:

"Passei pela Vila Matias

Passei, tornei a passar:

Passei com meus companheiros,

Não vi o Balão no ar!"

Nas ruas mais centrais, Martim Afonso, Itororó, Beco da Cachaça (hoje Frei Caneca), Rosário e Amador Bueno, exibia-se o meretrício, debruçado nas janelas e portas baixas, solicitando os transeuntes, em altos brados. Tal comércio iniciava-se ao cair da tarde, até que a polícia o limitou das 11 horas da noite, em diante, até três da madrugada. Foi o delegado Ferreira da Rosa quem deu cobro a esse degradante ofício, restringindo-o a pensões fechadas em prédios altos, até que o governo Lucas Garcez terminou por promover sua extinção completa, afastando-o de tais ruas santistas. O Beco da Cachaça era famoso pela freqüência péssima de embarcadiços e rufiões de má vida, ocorrendo constantemente, ali, os mais brutais homicídios.

Então o comércio ainda não havia se apossado do centro: na Rua Amador Bueno moravam famílias conhecidas, situando-se perto da Praça dos Andradas o "Externato Paim", em que fizemos o curso primário, concluído, em 1908, no Ginásio Santista. Na Rua General Câmara ficavam as residências de Joaquim Fernandes Pacheco, Álvaro Pinto da Silva Novais, Sílvio Passarelli, Américo Martins dos Santos e muitas outras pessoas gradas. Na Vila Nova, isto é, no cruzamento das Ruas Conselheiro Nébias com Sete de Setembro, e Bittencourt com Constituição, existiam casarões solarengos do escol social santista, como dr. João Freire, Azevedo Júnior, Ato Macuco Borges, Alfaia Rodrigues, Amado Pedro Gay, Taciano Pinto de Mendonça etc.

Vila Matias ainda era considerada subúrbio afastado, onde se alugavam casas baratas. Avenida Ana Costa era apenas um largo caminho sem calçamento, para a praia, só tendo melhorado depois de 1914, inaugurando-se, em 1922, com a presença do presidente Epitácio Pessoa e do rei Alberto I da Bélgica, a Praça da Independência e o monumento dos Irmãos Andradas. (N.E.: o rei belga esteve em Santos em 1920, um ano antes do presidente Epitácio Pessoa colocar a pedra fundamental do monumento. Nenhum dos dois compareceu à inauguração do monumento).

Desse período em diante, o surto progressista aumentou sensivelmente. O Miramar, do velho Arruda, tornou-se lugar de atração, com amplas salas de jogo e salão de festas que ainda não se denominava "boite". Sumiu o "rink" de patinação do Gonzaga, para que ali fosse construído o Hotel Atlântico, defronte do Parque do Balneário, que sofreu radical transformação. Abriram-se novos cinemas, perto da praia, deixando na penumbra o Selecto e o Politeama Rio Branco no centro da cidade. O próprio Teatro Guarani, em que outrora se exibiam grandes companhias e artistas do mérito de Paderewski, entrou em declínio, enquanto o Teatro Coliseu recebia conjuntos líricos de valor e passava a ser nossa principal casa de espetáculos.

Nestes últimos vinte e cinco anos, a cidade cresceu numa espécie de gigantismo construtivo, que ora se desenvolve no sentido da altura, com seus prédios de apartamentos de mais de dez andares. Os inestéticos "chalets" de madeira vão perdendo terreno, para a ereção constante de condomínios do tipo "balança mas não cai". Há o problema dos morros, antigamente refúgios de reduzido número de pessoas sem abrigo, hoje transformados em presépios bíblicos, exibindo arquitetura primária de casebres ameaçando cair pelas encostas.

Outros problemas se oferecem - o da água escassa para uma população elevada ao triplo, em cotejo com a cifra mencionada nos compêndios geográficos de Arthur Thirré, em que estudamos há meio século: apenas sessenta mil habitantes. A cidade se hipertrofia, lutando com espaço, no mesmo tempo em que seus distritos prósperos se proclamam independentes - Cubatão, Bertioga, a imitar Itapema, Guarujá e outrora pertencentes a este município.

Não importa. Felizes os santistas, por terem, a esta altura, podido verificar a extensão do caminho andado, possível de se avaliar mesmo no curto lapso duma existência!


Álvaro Augusto Lopes
Foto publicada com a matéria