Imagem: reprodução parcial da matéria original
Cavaco de memorialista
por Álvaro Augusto Lopes
Felizes as criaturas desta geração,
que recolhem o fruto do esforço e do trabalho de seus antepassados! Felizes, porque estão usufruindo o cabedal acumulado em progresso e conforto, na
Santos moderna, com suas avenidas amplas, seus logradouros agradáveis, suas praias bem cuidadas, por onde passeia o mundanismo bem posto, dentro da
moldura da cidade salubre!
Higiene, conforto, melhoramentos urbanos, atrações turísticas - tudo isto faz lembrar, aos maiores
de cinqüenta e cinco anos, a Santos de há meio século, que conheceram, na humildade triste da sua modéstia, a que faltava esse ar de mocidade, hoje
exibido com orgulho. Em 1905, por exemplo, não havia bonde elétrico, só aqui inaugurado quatro anos mais tarde. Os carros
da Companhia City eram puxados por vagarosos jumentos, que se revezavam de distância em distância, na
Vila Matias, na Vila Nova, no Boqueirão, na Ponta da Praia e no
José Menino. A viagem para São Vicente, por esse meio lento de transporte, se fazia pela praia
e durava quase duas horas.
Pelo chamado Caminho do Matadouro, a ligação com a
terra de Martim Afonso era feita por meio dum trem a vapor, que tinha estação inicial à Rua Itororó, esquina da Rua
Amador Bueno, percorrendo as ruas Itororó, Rosário (hoje Rua João Pessoa), São Leopoldo, até alcançar o Largo do Saboó.
Largo do Rosário, atualmente Praça Rui Barbosa, foi naquela época
formado com a derrubada de casas que havia nas ruas que ali desembocam. O Largo do Rosário tornou-se então o centro
elegante da cidade, num tempo em que as praias eram sítios desertos, onde se ia tomar banho pela madrugada, antes que olhares indiscretos
surpreendessem intimidades anatômicas...
Santos de então, mal calçada, mal iluminada, tinha enormes lampiões quadrados com bicos de gás em
forma de leque, bocejava de tédio, ao escurecer, quando os primeiros pregões dos vendedores de frutas e bugigangas se faziam anunciar. Passavam
vaqueiros, tangendo gordos animais, de onde o leite era ordenhado, em plena rua, à vista do freguês. Cantavam as excelências de suas mercadorias, em
anúncios entoados com voz de barítono, os verdureiros, os chineleiros, os jornaleiros, os peixeiros, os latoeiros, numa estranha confusão
melódica...
Passavam bondes envidraçados - sempre ao chouto de dois burricos mansos - conduzindo noivos e
convidados, a caminho da igreja, ou féretros de "anjinhos", rumo aos cemitérios. Naquele tempo, o Paquetá era considerado arrabalde distante e o
Saboó parecia ficar no fim do mundo...
Havia chineses, de olhos oblíquios, vendendo "nugás", dentro de pequenos quiosques portáteis. E
havia sorveteiros, carregando baldes enormes à cabeça, de onde o creme gelado brotava, fabricado na hora, a pedido da clientela.
Grassava ainda a varíola, herdeira da febre amarela, que os canais de
saneamento construídos pelo eng. Saturnino de Brito, haviam expulso da terra. De vez em quando, carros fechados e
feios, com enfermeiros de gorro branco e túnica típica, invadiam as casas, onde havia denúncia da existência de bexiguentos.
Santos ia, de tarde, olhar as moças, que desciam do bonde, no Largo do Rosário, mostrando um palmo
de perna envolta em meia finíssima de cor preta. Dali a pouco, às sete horas da noite - hoje diríamos "dezenove horas" - vinha da capital, pelo
último trem - não existia outra estrada - o vespertino A Platéia, com as mais frescas notícias do mundo recebidas... dois dias antes. (Ainda
não se poderia sonhar com a rapidez instantânea do rádio e da telefoto)...
Assistiam-se às funções dos circos armados na Praça José Bonifácio, que logo depois foi ajardinada
e fechada com grades de ferro, como acontecia com a Praça dos Andradas, onde havia viveiros de pássaros e canais com
jacarés... de argamassa de cimento. O primeiro cinema, por iniciativa de Francisco Serrador, foi instalado no terreno
vizinho do Coliseu Santista, à Rua Amador Bueno, onde havia praça de touros a céu aberto. O pano largo, enorme, ficava
suspenso dum quadro, no centro da arena, onde de quando em quando o "lidador" Adelino cobria de "bandarillas" coloridas os bicharocos de chifres
embotados...
Na Rua Quinze de Novembro, perto do "Borsen-Halle", popular casa de bebidas e de boa cerveja
legitimamente alemã, havia o "Bijou-Theatre", cinema em que mal cabiam cem pessoas, de propriedade dum sr. Bittencourt, de fartos bigodes caídos
sobre os beiços. Mais além, próximo da Praça Barão do Rio Branco, o Cinema Moderno reunia assistência adequada ao nome:
ali, em 1917, ouvimos Olavo Bilac proferir bela conferência de cunho nacionalista-militar, encerrada com o recitativo de
sonetos, que depois apareceriam em seu livro Tarde, como Pátria Portuguesa, A Um Poeta e outros.
Em 1910 começaram a rodar, nas ruas empedradas de toscos "macacos", os primeiros automóveis de
aluguel, em número reduzido, sendo também escassos os particulares. A primeira motocicleta, que andou correndo, com estampidos e atraindo basbaques
cheios de curiosidade, pertencia a Américo Martins Júnior, filho do velho abolicionista de igual nome. O primeiro aeroplano que sobrevoou a cidade,
foi o de Eduardo Chaves, vindo de São Paulo. Mais tarde aqui esteve Garros, famoso aviador francês.
Até então, sobre os céus de Santos, haviam pairado apenas os balões esféricos, inflados de gás,
pilotados por Ferramenta e Alaor de Queiroz, mais ou menos em 1906. Este último aeronauta, mais tarde, durante a primeira
guerra mundial, atropelou em Londres um policial inglês, sendo preso e condenado a longos anos de cárcere.
O balão de Alaor, havendo subido dum campo na Vila Matias, no começo da Avenida Ana Costa, sumiu
entre as nuvens e foi cair na Ilha Barnabé. Foi nas vésperas do Carnaval e os mascarados dum "rancho" denominado "Vilões"
batiam paus e cantavam, em coro:
"Passei
pela Vila Matias
Passei, tornei a passar:
Passei com meus companheiros,
Não vi o Balão no ar!"
Nas ruas mais centrais, Martim Afonso, Itororó, Beco da Cachaça (hoje
Frei Caneca), Rosário e Amador Bueno, exibia-se o meretrício, debruçado nas janelas e portas
baixas, solicitando os transeuntes, em altos brados. Tal comércio iniciava-se ao cair da tarde, até que a polícia o limitou das 11 horas da noite,
em diante, até três da madrugada. Foi o delegado Ferreira da Rosa quem deu cobro a esse degradante ofício, restringindo-o a pensões fechadas em
prédios altos, até que o governo Lucas Garcez terminou por promover sua extinção completa, afastando-o de tais ruas santistas. O Beco da Cachaça era
famoso pela freqüência péssima de embarcadiços e rufiões de má vida, ocorrendo constantemente, ali, os mais brutais homicídios.
Então o comércio ainda não havia se apossado do centro: na Rua Amador Bueno moravam famílias
conhecidas, situando-se perto da Praça dos Andradas o "Externato Paim", em que fizemos o curso primário, concluído, em 1908, no Ginásio Santista. Na
Rua General Câmara ficavam as residências de Joaquim Fernandes Pacheco, Álvaro Pinto da Silva Novais, Sílvio Passarelli,
Américo Martins dos Santos e muitas outras pessoas gradas. Na Vila Nova, isto é, no cruzamento das Ruas Conselheiro
Nébias com Sete de Setembro, e Bittencourt com Constituição, existiam casarões solarengos do escol social santista, como dr. João Freire, Azevedo
Júnior, Ato Macuco Borges, Alfaia Rodrigues, Amado Pedro Gay, Taciano Pinto de Mendonça etc.
Vila Matias ainda era considerada subúrbio afastado, onde se alugavam casas baratas.
Avenida Ana Costa era apenas um largo caminho sem calçamento, para a praia, só tendo melhorado depois de 1914,
inaugurando-se, em 1922, com a presença do presidente Epitácio Pessoa e do rei Alberto I
da Bélgica, a Praça da Independência e o monumento dos Irmãos Andradas.
(N.E.: o rei belga esteve em Santos em 1920, um ano antes do presidente Epitácio Pessoa
colocar a pedra fundamental do monumento. Nenhum dos dois compareceu à inauguração do monumento).
Desse período em diante, o surto progressista aumentou sensivelmente. O
Miramar, do velho Arruda, tornou-se lugar de atração, com amplas salas de jogo e salão de festas que ainda não se denominava "boite". Sumiu o "rink"
de patinação do Gonzaga, para que ali fosse construído o Hotel Atlântico, defronte do Parque do
Balneário, que sofreu radical transformação. Abriram-se novos cinemas, perto da praia, deixando na penumbra o Selecto e
o Politeama Rio Branco no centro da cidade. O próprio Teatro Guarani, em que outrora se exibiam
grandes companhias e artistas do mérito de Paderewski, entrou em declínio, enquanto o Teatro Coliseu recebia conjuntos líricos de valor e passava a
ser nossa principal casa de espetáculos.
Nestes últimos vinte e cinco anos, a cidade cresceu numa espécie de gigantismo construtivo, que
ora se desenvolve no sentido da altura, com seus prédios de apartamentos de mais de dez andares. Os inestéticos "chalets"
de madeira vão perdendo terreno, para a ereção constante de condomínios do tipo "balança mas não cai". Há o problema dos morros, antigamente
refúgios de reduzido número de pessoas sem abrigo, hoje transformados em presépios bíblicos, exibindo arquitetura primária de casebres ameaçando
cair pelas encostas.
Outros problemas se oferecem - o da água escassa para uma população
elevada ao triplo, em cotejo com a cifra mencionada nos compêndios geográficos de Arthur Thirré, em que estudamos há meio século: apenas sessenta
mil habitantes. A cidade se hipertrofia, lutando com espaço, no mesmo tempo em que seus distritos prósperos se proclamam independentes -
Cubatão, Bertioga, a imitar Itapema,
Guarujá e outrora pertencentes a este município.
Não importa. Felizes os santistas, por terem, a esta altura, podido verificar a extensão do
caminho andado, possível de se avaliar mesmo no curto lapso duma existência!
Álvaro Augusto Lopes
Foto publicada com a matéria
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