1910-1919
A visão do vendedor de peixe
Francisco Serrador
Foto: livro Cinelândia, citado
Se
é fato ou lenda, nunca saberemos. Mas há quem diga que Francisco Serrador Carbonell teve uma estranha visão quando menino em sua Valência natal: a
de que ainda viveria numa cidade de brinquedo, onde todas as construções, multicoloridas e iluminadas, destinavam-se a divertir as pessoas. Uma
espécie de Disney antecipando em décadas a Disney de Disney. Ou em alguns anos a Broadway novaiorquina, que não é exatamente um parque de diversões,
mas quase. Uma e outra, enfim, produtos de mentes visionárias.
Muito bem. Pois o menino cresceu não só para fazer da visão um sonho e do sonho realidade, mas
também para construir ele mesmo sua cidade de brinquedo. Corria o ano de 1884. Francisco Serrador Carbonell, nascido em 8 de dezembro de 1872,
estava com doze anos e ajudava a família vendendo peixe nas feiras valencianas quando o pai, também Francisco, morreu de repente.
Se a tal visão teria ocorrido antes ou depois, é outro detalhe impossível de precisar.
Sabe-se, sim, que se Valência era uma das cidades mais promissoras da Espanha, especialmente para quem vivia da pesca, não bastava para Francisco.
Seu pensamento estava em Madri, nas oportunidades que acreditava haver na capital, pouco importa se longe do mar.
Por isso, cheio de planos e com a aprovação da mãe, o menino trocou Valência por Madri, onde
a sua melhor oportunidade não seria mais que a de trabalhar como caixeiro num armazém. Decepção. Passou quatro anos no mesmo lugar, preso à falta de
coragem para voltar a Valência.
Também não se sabe como ou por quem foi informado de que muitos de seus patrícios estavam
partindo para o Brasil em busca da oportunidade que a Espanha lhes negava. Não hesitou: juntou a pouca roupa que tinha, foi despedir-se da mãe, e de
Valência mesmo embarcou num navio de terceira classe, em fins de 1887, para tentar a sorte no outro lado do Atlântico. Anos mais tarde, entre suas
narrativas favoritas, estava a de seu rocambolesco desembarque no porto de Santos.
- Sabem como cheguei ao Brasil? - gostava de perguntar para ele mesmo responder: - Remando
com meus próprios braços!
O navio de terceira classe ancorava a menos de meia milha do cais, de modo que os
passageiros deveriam ir para terra a bordo de uma catraia cujo dono lhes cobrava dois tostões pela curta travessia. Serrador não tinha esse
dinheiro. Nem ele, nem uma dezena de outros espanhóis que haviam feito a mesma viagem.
Não conseguindo convencer o dono do primeiro barco a levá-los na base do fiado, entraram no
segundo barco sem nada dizer. Lá pelas tantas, já vencidos quatro quintos de milha, o próprio Serrador teria se aproximado do catraieiro para, em
voz baixa, admitir que nenhum dos passageiros tinha como pagar-lhe. Mas podia contar que ainda o fariam:
- Sino hoy, ciertamente mañana.
O catraieiro parou de remar. Ficou algum tempo imóvel até que viu passar ao lado o barco de
um colega. Rapidamente, com os remos nas mãos, saltou para ele, deixando os espanhóis para trás.
- Remem com os braços, seus galegos - teria gritado o homem, entre debochado e desafiador.
Pois foi o que Serrador e seus companheiros de viagem fizeram: usando os braços como remos,
venceram o quinto de milha que lhes faltava para pisar terra brasileira. E economizaram, cada qual, dois tostões.
De início, as oportunidades em Santos não pareciam maiores que as de Sevilha ou Madri. Na
verdade, faminto e sem dinheiro, o melhor que Serrador encontrou em seu primeiro dia de Brasil foi pior do que tudo que já tivera em seu país:
trabalho pesado numa obra de drenagem.
Por semanas, descalço, nu da cintura para cima, de manhã à noite, andou mergulhado em
pântanos e lodaçais. Trabalhou pesado, sofreu muito, contraiu febre amarela, quase morreu, mas ganhou os 800 réis diários que lhe permitiram comer e
morar. Econômico, conseguiu juntar o bastante para tentar a vida num porto mais ao Sul. Viajou num cargueiro até Paranaguá, e de lá, por terra, até
Curitiba, onde recomeçaria de onde começara: vendendo peixe. (...)
Francisco Serrador adorava equitação e
automobilismo
Foto: livro Cinelândia, citado |