Naqueles velhos tempos, de humilde a Vila Nova não tinha nada. Entre fins do século
passado e início deste, as mais ricas e tradicionais famílias de Santos passaram a construir palacetes nas imediações do atual mercado Municipal.
Surgiram casas ornamentadas com azulejos portugueses e espanhóis, grades e ferro trabalhado e até esculturas em tamanho maior que o natural. Só
que a Vila Nova não se manteve opulenta e colorida porque a expansão comercial e do porto e as facilidades de comunicação com a praia acabaram
gerando um novo conceito de "morar bem": os mais abastados se foram para a porção meridional da ilha.
Por uma cruel ironia, quem hoje habita as mansões são pessoas que mal têm o que comer.
Oito, 10, 15 ou até mais famílias dividem a mesma residência, e a miséria se alia à promiscuidade. O contraste entre as construções e quem mora
nelas é gritante e o casarão com ares de castelo da Avenida Conselheiro Nébias, 207, nos fornece um exemplo até sórdido: no portão, uma plaqueta
anuncia que ali se vende chup-chup. As histórias que se ouve dos moradores seriam inacreditáveis se tudo à volta não comprovasse a
veracidade. Por lá se vê até crianças de cinco anos ajudando no sustento da família - são meninos e meninas sem infância e sem o carinho de uma
mulher como vovó Benedita, que abriga filhos de prostitutas, livrando-os de ficarem pelas ruas.
As tradicionais famílias santistas construíam aqui os seus palacetes
Quem diria? Antigamente, só gente de muito dinheiro morava
na Vila Nova.
O comércio se espalha pelas ruas do centro, a população aumenta e um novo bairro começa a surgir pelos lados do
atual Mercado Municipal. Os palacetes se multiplicam na nova área residencial e são ainda mais finos do que aqueles enormes casarões de beiral,
com grupos de quatro ou às vezes até mais janelas, quase sempre recobertos com azulejos, que dominavam a paisagem das ruas mais nobres. Os donos
eram gente do café, advogados de renome e comerciantes que se fizeram na vida.
E tudo ficava muito poético quando a noite caía e os lampiões lançavam sua luz amarelada sobre as construções
altaneiras e bem cuidadas. O som dos pianos enchia o ambiente, porque não havia casa sem piano e moça que não soubesse tocar esse instrumento. Os
saraus avançavam noite adentro e ai que algum pai flagrasse uma das filhas na sacada de mãos dadas com o namorado.
As moças nunca saíam sozinhas, nem mesmo para ir ao cinema que ficava bem perto, na Conselheiro Nébias, altura
da 7 de Setembro. Estavam sempre acompanhadas pela mãe ou uma dama, sombrinha no ombro e leque na mão.
Para se ter uma idéia do que era o bairro, basta saber que lá moravam João Otávio dos Santos, idealizador da
escolástica Rosa; João Freire, famoso advogado da antiga Companhia Docas; Delfim Novo, cônsul português, e a tradicional família Pacheco.
Tarquínio Silva mantinha o Colégio Tarquínio, na Rua Bittencourt, 48, e, em 1929, começa a surgir, em plena
Praça José Bonifácio, uma construção que obedece ao gosto mais exigente da época. Nela se instala a Sociedade Humanitária, que funciona no mesmo
lugar até hoje e mantém uma biblioteca com mais de 22 mil volumes, considerada a maior da Baixada Santista. Entre seus adornos figura o único
vitral esculpido no Brasil, que foi danificado pela explosão do gasômetro em 1967.
O barulho das crianças brincando no quintal só era abafado pelo latir dos cachorros, pelo cantar mais estridente
de um pássaro ou por uma carroça ou bonde que passava sob o comando decidido de um motorneiro sempre empertigado. Pela 7 de Setembro circulavam os
bondes cinco e sete, que seguiam para o Macuco e Gonzaga, respectivamente, e pela Conselheiro Nébias o quatro, que faz trajeto semelhante ao
trólebus de mesmo número.
Se havia uns 180 automóveis em Santos das primeiras décadas, era muito. Quase nunca se via sair algum carro de
um daqueles casarões, porque os homens preferiam se alimentar bem e andar com os bolsos cheios de dinheiro a comprar automóveis. Além do mais, os
bondes nunca atrasavam e dava até para acertar os tradicionais relógios de bolso por eles. A demora da condução não servia como desculpa, para
quem chegava atrasado ao trabalho.
Os ricos partem para a orla da praia e o bairro ganha novas feições - A impressão que se tem é que o
vento arrastou essa história de opulência de Vila Nova. Mal ganha feições de bairro elegante, a expansão comercial e portuária de Santos torna-se
cada vez maior e as facilidades de comunicação com a praia criam uma nova mentalidade em termos de moradia. E as famílias mais ricas começam a
construir residências na Conselheiro Nébias ou Ana Costa ou nas praias do Boqueirão, Gonzaga e José Menino.
Como se tudo que existia em Vila Nova fosse de brinquedo ou não valesse nada, em menos de 50 anos o bairro teve
suas feições totalmente mudadas. Por paradoxal que pareça, as mansões se transformaram em casas de cômodos ou cortiços.
Na Praça Iguatemi Martins e imediações instalou-se o comércio mais forte, aproveitando as vantagens oferecidas
pela Bacia do Mercado, onde atracavam embarcações de cabotagem. Embora a Bacia já não cumpra essa função, nos 10 ou 15 últimos anos a antiga área
residencial foi simplesmente invadida por dezenas de casas de comércio e pequenas indústrias. O Mercado Municipal, planejado na década de 1940 e
construído no início dos anos 50, favoreceu a nova "vocação", e ao seu redor se firmou o mais forte comércio atacadista da área de produtos
agrícolas de Santos.
Um pouco do que foi a Vila Nova de antigamente se perdeu também quando da explosão do gasômetro, depósito da
Cidade de Santos - Serviços de Eletricidade e Gás S/A, que ficava na Rua Marechal Pego Júnior, 114. Um dos cinco reservatórios foi pros ares, por
desgaste de instalações, e destruiu dezenas de prédios das imediações.
Estragos foram verificados num raio de 25 quilômetros: residências tiveram portas arrancadas, vidros partidos e
paredes rachadas. Só a Paróquia da Catedral teve seis estabelecimentos atingidos: a Casa do Senhor, internato e semi-internato de crianças pobres;
o Colégio Coração de Maria; o Pensionato das Irmãs Palotinas; o Colégio Santista, a própria Catedral e o Santuário do Sagrado Coração de Maria.
Aliás, esse tradicional santuário precisou ser demolido: hoje a paróquia está muito bem instalada, de frente para o mar, na Avenida Bartolomeu de
Gusmão, 114.
A população regrediu, e um só casarão mantém a imagem de outrora - Por todo esse processo de modificação
que se intensificou na última década, a Vila Nova simplesmente regrediu em termos de população. Por incrível que possa parecer, nesse bairro, que
ocupa uma área de 59,30 hectares, moravam 7.834 pessoas, segundo o Censo de 1970, número que baixou para 6.714, de acordo com estimativa da
Prodesan, feita em 1980.
Apesar de ter decrescido, essa população é grande demais quando se pensa que 10 ou até 15 famílias dividem uma
mesma casa. As condições de moradia são bem piores do que aquelas que se constata em muitos bairros do morro, porque à miséria junta-se a
promiscuidade. É gente demais para viver de modo tão precário.
Uma pesquisa realizada pela Cruzada das Senhoras Católicas, entre 30 famílias da Vila Nova, demonstra que 10
delas têm renda de até um salário mínimo; 17, entre um e dois salários mínimos; e apenas três delas uma média de três salários. Sobrevivem às
custas de biscates, não estão ligados à Previdência Social e não sabem o que querem da vida.
Explorados porque pagam aluguéis absurdos por quartos imundos, não se mostram revoltados diante da situação e
não apresentam reivindicações. Alguns não souberam dizer se gostariam de ter uma vida diferente ou visualizar uma nova perspectiva de mundo. Os
que querem que as coisas mudem, não sabem o que deve mudar e nem como. Não se adaptam em empregos fixos e vivem como nômades, mudando de um
casarão para outro e convivendo com os mais diferentes tipos de pessoas como se isso fosse muito natural.
No mais, a arquitetura peculiar e bonita desse bairro, que já foi nobre, resta escondida sob uma imagem de total
abandono. Apenas a mansão da Rua da Constituição, esquina com 7 de Setembro, permaneceu altaneira, cumprindo a função de residência (se bem que
esporádica) de uma família de posse.
Dizem que pertenceu à Marquesa de Santos, mas não passa de boato porque sua construção data dos primeiros anos
do século. O quintal repleto de árvores, o caramanchão, as grades de ferro trabalhadas, os vãos em forma de arco e os azulejos portugueses e
espanhóis trazem de volta a imagem de outros tempos. E a inscrição afixada em uma das paredes não poderia ser mais significativa: "Bem-vindo seja
quem venha por bem".
Os catraieiros garantem transporte para 20 mil pessoas diariamente,
mas nem por isso a Prefeitura atende suas reivindicações
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