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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (M)
Paulistanos compram tudo... em 1946 (1)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas.

Prenunciando a maioria dos problemas que aconteceriam nas décadas seguintes, ao mesmo tempo em que relacionava os já então encontrados, o jornal A Tribuna publicou esta matéria em 9 de novembro de 1946, na última página.


Orla vista desde a praia do Boqueirão, em cartão postal da metade do  século XX

O texto a seguir foi escrito pouco mais de um ano após o término da Segunda Guerra Mundial e da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (ambos terminados em 1945), e três anos após a regulamentação do salário mínimo (em 1943). O país governado pelo marechal Eurico Gaspar Dutra estreara, dois meses antes (em 18 de setembro) a Constituição Federal de 1946, que definia (artigo 157) dever o salário mínimo (regionalizado) atender às necessidades normais do trabalhador e também de sua família. A moeda brasileira Cruzeiro completara alguns dias antes o seu quarto aniversário (foi criada em 1/11/1942).

O jornal já registra então a explosão imobiliária na orla, com imóveis construídos às pressas para venda a compradores paulistanos que pretendiam investir em casas de veraneio seus ganhos especulativos, enquanto os santistas eram confinados em cortiços (os antecessores das atuais favelas) não mais em condições de residir nas áreas principais da cidade. Denuncia também vários truques usados para obter ganhos ilícitos, à custa de cidadãos desamparados pelo poder público, tanto em termos de financiamento imobiliário como de fiscalização do cumprimento das leis:

O santista não encontra onde morar

NÃO HÁ MAIS CASAS HABITÁVEIS A MENOS DE MIL CRUZEIROS MENSAIS, 
E SÓ À CUSTA DE PESADAS "LUVAS"

Uma exploração a "indústria" das casas mobiliadas para temporada - O aspecto odioso da sub-locação de cômodos - Pessoas de São Paulo compram todas as casas que aparecem à venda

A "CASA POPULAR" E O CRÉDITO PREDIAL, SÃO PROMESSAS QUE FICARAM NO TINTEIRO...

Velho tema, por demais debatido, nos últimos tempos, o da crise de habitações continua sempre oportuno e atualizado. É que aparecem sempre novas modalidades, novos aspectos. A fantasia dos indivíduos inescrupulosos, que se aproveitam de todas as situações para dar largas à sua ambição desmedida, encontram sempre processos engenhosos para fugir à ação repressora das autoridades, ou à punição prevista na lei.

Por isso, nunca é demais que se insista no mais grave, no mais sério, no mais angustioso problema do momento: o da habitação.

O povo de Santos é um dos mais sacrificados do Brasil, no que diz respeito a casas para morar. Grande parte dos santistas está morando em casas de cômodos, verdadeiros "cortiços", numa promiscuidade imprópria e ofensiva à dignidade humana.

Porque, hoje, raramente se encontra uma casa para alugar, desde as praias aos mais distantes e primitivos bairros.

Alguma cousa que aparece envolve sempre torpe exploração. A modalidade das famigeradas "luvas" campeia abertamente, encoberta pelo estratagema dos móveis para vender.

Algumas cadeiras em péssimo estado, uma mesa manca, ou qualquer outro objeto em precário estado de conservação, e chamado pomposamente de móveis, e por eles pedem quantias absurdas, como 10, 15, 20 mil cruzeiros.

Os aluguéis são também absurdos, pois não se encontra casa por menor que seja e pior que esteja colocada, por menos de Cr$ 1.200,00 mensais.

Ainda ontem o repórter foi ver uma casa que se anunciava para alugar, numa das avenidas secundárias que desembocam na praia. O aluguel era de Cr$ 1.200,00. Pedia-se a "insignificância" de Cr$ 20.000,00 por uma copa comum, uma sala de jantar em precário estado, e um terno para "hall". Cousa que se adquire, novo, por menos de Cr$ 8.000,00.

Casas mobiliadas para temporada - A situação angustiosa dos santistas torna-se mais grave ainda nesta época do ano, pois aparece uma nova modalidade de exploração, que é a das casas mobiliadas para temporada. As mobílias, quase sempre, só merecem tal designação por um puro convencionalismo. Pedem-se, entretanto, pelas locações desses prédios, verdadeiras fortunas, tal como 4, 5, 6 mil cruzeiros mensais por casas simples, apenas com os requisitos vulgares de conforto.

Quem nesta época procurar casa para alugar, tem dificuldade em encontrá-la, mesmo sujeitando-se à exploração das "luvas".

Ninguém aceita inquilinos permanentes, pois alugando a veranistas, em três ou quatro meses do ano têm maior compensação. E o mais odioso desta situação é que, geralmente, não são os proprietários, que têm o capital empatado nas propriedades, que levam vantagem de tal exploração, e sim os sub-locadores. Casas cujos inquilinos estão garantidos por lei, com contratos de há anos, sub-locam-nas agora para dois ou três meses de temporada balneária, recebendo às vezes dez vezes mais do que pagam aos proprietários.

A sub-locação de cômodos - A sub-locação de cômodos é outro aspecto vergonhoso da situação anormal que atravessamos. Há centenas, talvez milhares de pessoas, que vivem desta indústria, sub-locando cômodos por preços muitas vezes superiores ao de toda a casa.

Não adiantou esta hipótese estar prevista na nova lei do inquilinato, pois geralmente os que exploram esse processo não dão recibo aos inquilinos, ou já alugam os cômodos com a condição de pagarem uma quantia sobressalente por fora do recibo. E quem se vê atirado às ruas, sem uma telha para se abrigar ou para abrigar sua família, sujeita-se a toda essa vergonhosa exploração.

Pede-se à população que denuncie esses delitos. Mas ninguém se sente com coragem suficiente para fazê-lo, porque, infelizmente, a exploração é geral, e, ou o cidadão se submete passivamente a ser roubado, ou não encontrará onde se abrigar e aos seus.

Pessoas de S. Paulo compram todas as casas que aparecem à venda - A tenebrosa inflação em que mergulhou o nosso país criou uma febre de aquisição de propriedades em Santos nunca antes registrada. Milhares de pessoas de S. Paulo, negociantes, industriais, intermediários etc., enriquecidos de um momento para outro, por meio de negociatas que a situação econômica anormal proporcionou, estão comprando em Santos tudo o que aparece à venda.

Há já milhares de casas, que só são habitadas, quando muito, dois ou três dias por semana, quando seus proprietários resolvem descer a serra para vir aqui passar o fim de semana. O resto do tempo permanecem fechadas, enquanto os santistas, principalmente os trabalhadores de todas as classes, desde o operário braçal ao empregado no comércio, ao bancário, ao jornalista etc., vivem na promiscuidade dos "cortiços", dos porões, das casas de cômodos.

E as casas populares? - É já fora de dúvida que a iniciativa da "casa popular", de que tanto se falou nos primeiros meses deste ano, fracassou completamente. Afirmou-se, alto e bom som, que Santos seria contemplada com cinco mil casas. Até agora, que se saiba, não se adquiriu sequer o terreno.

É, não resta dúvida, mais uma promessa não cumprida.

Por que não se facilita o crédito predial? - Entretanto, se houvesse boa vontade por parte de todos, principalmente por parte dos nossos governos, o problema se solucionaria. Pelo menos, se reduziriam grandemente suas desagradáveis conseqüências.

A instituição do crédito predial, ainda não realizada no Brasil, é, a nosso ver, o principal fator para o desaparecimento gradual desse precaríssimo estado de cousas.

Há dezenas de milhares de pessoas que poderiam viver em casa própria, decentemente acomodados, vivendo com dignidade e conforto, se houvesse uma instituição que lhes ajudasse a constituir o seu lar.

Dezenas de milhares de pessoas poderiam amortizar, com mil ou dois mil cruzeiros mensais, um empréstimo, sob garantia hipotecária, para aquisição da casa própria. Não há momento em que alguém pensa nisso, por sua própria iniciativa, todos se retraem. Não há quem proporcione o capital necessário, embora solidamente garantido.

Os estabelecimentos de previdência, as caixas econômicas, estão abarrotados de dinheiro, de numerário, que se eleva a milhões e bilhões.

Por que não facilitam esses organismos o crédito popular para a casa própria, em vez de construírem arranha-céus ou prédios de luxo para alugar, ou de se dedicarem a operações meramente financeiras?

Parece, isso sim, é não haver o desejo real e sincero de amenizar a situação angustiosa do povo.

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