Santos vista do Monte Serrate, em foto de Militão Augusto de
Azevedo
(albúmen com 18,0 x 24,0 cm – Coleção Beatriz Pimenta Camargo)
Foto reproduzida no livro Santos e seus Arrabaldes - Álbum
de Militão Augusto de Azevedo, de Gino Caldatto Barbosa (org.), Magma Editora Cultural, São Paulo/SP, 2004
A Cidade de Santos - 1885
Rápida vista retrospectiva
Os acontecimentos que acabamos de narrar passavam-se no
anno da graça de 1858. N'essa epocha, a cidade de Santos era, em tamanho, exactamente um terço do que é hoje e tinha feição muito diversa da que
actualmente possue. Era uma cidade pequena, mal ventilada, lamacenta e insalubre.
Preciso que o leitor a conheça tal qual era e por isso vou abrir um parenthesis á
narração.
N'esse tempo em que o Valongo (hoje rua da Independência) florescia e possuía casas de
sobrado, as ruas de Amador Bueno, de S. Francisco, do Bittencourt e Sete de Setembro não
existiam ainda.
Todo o espaço que vae da rua do Rosário até á chacara de D.
Angelica, n'essa epocha conhecida por chacara do alferes Domingos José Rodrigues, e que hoje, de norte a sul e leste a oeste, está cortado de ruas
quasi que completamente edificadas, era um denso matagal, salpicado aqui e alli de capinzaes e de charcos, com uma ou outra casa isolada marginando
o velho caminho da Barra (hoje rua de Braz Cubas).
Em todo esse espaço, o charco predominava a tal ponto que o logar em que hoje se ergue
a casa do tenente-coronel Francisco Martins dos Santos, na rua de Braz Cubas, era conhecido pelo nome de Poço-Verde, por causa de um lago
enorme e permanente de águas estagnadas que ahi havia.
A rua do Rosario ia tão sómente desde o largo do Rosario
até o velho caminho da Barra. D'ahi por deante, até ao Paquetá, o matto, o charco e o mangue eram os senhores do terreno.
As pessoas que, para encurtar caminho e evitar o lamaçal do velho caminho da Barra,
queriam ir até a chacara do alferes Domingos José Rodrigues, muito frequentada então, passavam por cima de um aqueducto baixote, feito de alvenaria
de pedra e cal, que, da nascente das Duas-Pedras, onde se ergue o chafariz Sete de Setembro, conduzia a água para o chafariz da
Alfandega, que ainda existe.
A esforços e instancias do tenente Joaquim da Silva Carmo, que era então vereador, a
municipalidade tratava de abrir a rua das Flôres a rua de Amador Bueno.
Afim de animar a edilidade n'esse commettimento, esse respeitável santista, de saudosa
memoria, mandou construir uma casa na direcção provavel que devia ter a futura rua.
Essa casa esteve durante muito tempo em pleno matto e, quando mais tarde se abriu a
rua, verificou-se que infelizmente fôra ella edificada muito fóra do alinhamento.
Assim, não logrou o tenente Carmo que a sua casa fosse a primeira construida na nova
rua.
A rua do General Camara, cujo primitivo nome foi Aurea, era
ainda conhecida, pelo povo, pelo nome de Nova, e, partindo do largo do Rosario, não se estendia além da rua da Constituição.
A rua da Constituição era a rua Josephina, mas o povo denominava-a
rua da Palha.
Rua São Bento em 1865
Dos Quarteis, onde nascia, ia tão sómente até encontrar-se
com a rua Aurea. D'ahi por deante, caminhando para o sul, prolongava-se por um trilho que conduzia no logar denominado a
Pedra da Feiticeira, onde havia uma nascente de agua muito aproveitada pelas lavadeiras.
A Pedra da Feiticeira ficava no ponto em que hoje se cruza a rua da
Constituição com a de Amador Bueno.
A rua dos Quarteis, chamada hoje de Xavier da Silveira, era
um arrabalde da cidade e não ia além da chacara do commendador Antonio Ferreira da Silva, pae do actual Visconde do Embaré.
D'essa chacara até o Paquetá (actual rua de Baptista Pereira) o mangue florescia n'um
terreno lodoso e intransitável.
Das transversaes, a contar do Valongo para o Paquetá, a rua Josephina era a ultima.
Das longitudinaes, a partir do litoral para o Mont-Serrate, a
ultima era a rua do Rosario.
A cidade occupava, pois, a facha de terra comprehendida entre o litoral e a rua
Rosario e a de S. Leopoldo (prolongamento d'aquella), sendo limitada ao oeste pelo Valongo e a leste pela rua Josephina.
N'esse tempo, toda a cidade, inclusive os arrabaldes (Quarteis e caminho da Barra),
media uma area de 750.000 metros quadrados. Hoje a cidade cobre uma superficie de 2.250.000 metros quadrados, isto é, o triplo do que media então.
A rua do Marquez do Herval era a rua da Penha e possuia
poucas habitações.
A de S. Leopoldo chamava-se Formosa; o povo, porém, designava-a pelo nome de Vermelha,
por causa de uma série de pequenas casas que ahi haviam, cujas rotulas eram pintadas a zarcão. Essas casas ainda existem.
Da rua da Penha partia uma travessa que, passando pelos fundos do
convento de Santo Antonio, conduzia ao Valongo; era conhecida pelo nome de rua do Maneco do Muro. Mais tarde, a
estrada de ferro da Companhia Ingleza interceptou essa passagem que, hoje, está reduzida ao pedaço que vae da rua de S.
Leopoldo à do Marquez do Herval, denominado rua Cayubi.
A rua de S. Bento era a rua dos Cortumes e a Frei Gaspar tinha o nome de becco do
Inferno.
A municipalidade de Santos não encontrou em toda a cidade melhor padrão para perpetuar
na mente do povo a memoria do grande chronista da capitania de S. Vicente, do que essa viela tortuosa e escura.
Rua do Sal (José Ricardo) em 1865
A rua Vinte e Quatro de Maio era a rua da Praia e a do José Ricardo era
rua do Sal.
Já tinha os nomes que ainda hoje possuem as ruas Santo Antonio, Martim Affonso e
Itororó.
A rua Vinte e Oito de Setembro tinha o nome de Septentrional, mas o povo chamava-a rua
Pequena; a do Visconde do Rio Branco era a rua Meridional, no espaço que vai do largo da Matriz;
d'ahi em diante até em frente á casa que servia de depósito ao trem bellico, onde terminava, tinha o nome de Santa
Catharina.
A travessa do Visconde do Rio Branco era a travessa do Trem.
A rua do Senador Feijó denominava-se travessa da Alfandega
e terminava na rua do Rosario.
A respeito de largos, havia o da Cadêa Nova (hoje
Praça dos Andradas), o do Carmo, o da Matriz e o da
Coroação.
O largo da Cadêa Nova era um banhado, onde se matavam narcejas a tiro a qualquer hora
do dia; e o da Coroação não passava de um monturo infecto e nojento onde os tropeiros, que então conduziam o assucar do interior da provincia para
Santos, ás costas de burros, arremeçavam o capim que lhes servia para forrar os jacás onde traziam os saccos de assucar.
Os largos do Marquez de Monte Alegre e dos
Gusmões não existiam porque o mar era ainda o senhor dos terrenos em que actualmente estão.
O primeiro denominava-se o porto do Bispo e o segundo via o
seu começo n'um pequeno pedaço de caes, que então se construia junto á ponte provincial, designado pelo povo pelo nome de caes do Barnabé.
Do actual largo da Imperatriz existia o solo charcoso e coberto de vegetação frondosa.
N'esse tempo, em que Santos não possuia ainda o bond,
nem o gaz, nem o telephone, nem a agua canalisada das cachoeiras do Cubatão, muito
amador de pesca e pescador de profissão extrahiu bagres e camarões do logar em que hoje se eleva a casa do Netto.
Loja do Corvelo, no Largo da Cadeia (depois do Carmo), entre as ruas Meridional e
Septentrional, em desenho feito pelo artista Ribs a partir de quadro de Benedito Calixto. Atrás, a igreja Matriz
Imagem reproduzida de Santos Noutros Tempos, de Costa e
Silva Sobrinho (1953, São Paulo/SP)
A cadêa, que actualmente se ergue na praça dos Andradas, erguia-se carunchosa e
baixota no largo do Carmo. Era um edifício retangular com quatro janellas, na frente que olhava para a rua Direita (hoje
Vinte e Cinco de Março) e com entrada pelos fundos, lado em que hoje está a loja do sr. Raymundo Curvello.
A Alfandega funccionava no antigo collegio dos Jesuitas
(que foi demolido para dar logar ao actual edificio) conhecido então pelo nome de Palacete por ahi se ter hospedado o Sr. D. Pedro II, na parte
superior, quando em 1846 visitou pela primeira vez a provincia de S. Paulo.
As unicas ruas da cidade calçadas a pedra eram as de Santo
Antonio, do Sal e Direita. As outras nem siquer eram macadamisadas.
Nos dias de chuva, a lama era tal que tornava-se preciso estender taboas ao travez das
ruas mais frequentadas para que o transeunte as podesse atravessar sem risco de ficar atolado.
O calçamento das ruas de Santo Antonio, do Sal e Direita era feito a pedra de
alvenaria commum, em duas rampas, convergindo para um rego central.
Como se vê, a fôrma de calçamento era opposta á adoptada hoje em todas as ruas da
cidade.
A estrada de ferro que hoje vae de Santos até ao Rio-Claro, ramificando-se
para Sorocaba, Ytú, Mogy-mirim, etc., esse sonho de Frederico Fomm, o intelligente e emprehendedor allemão, que introduzia a primeira machina a
vapor na provincia de S. Paulo, e que primeiro emprehendeu ligar Santos ao interior da provincia por uma via ferrea, mandando por isso fazer (em
1836) os estudos precisos á sua custa [1] - estava ainda em estudos.
Os inglezes ainda não tinham atirado para dentro do ancoradouro o aterro e as pontes
que tanto têm obstruido o porto de Santos, e por onde deviam receber mais tarde todo o material para a construção da estrada, vindo em direitura da
Europa.
A população que havia em Santos era mui differente da actual.
Predominavam dez ou doze familias paulistas, muito aparentadas entre si (que
mencionarei no correr d'esta historia) a colonia portugueza, alguns allemães e raros individuos de outras nacionalidades. O resto era a arraia miuda.
Os costumes eram outros.
A cadeirinha florescia e era um traste de lixo exclusivo de certas familias
privilegiadas pelo nascimento e pela posição.
Não havia ainda o carro de aluguel nem o particular.
Como a cidade era pequena, todos andavam a pé ou então a cavallo, mas ainda assim por
luxo e ostentação.
As digressões para a praia da Barra ou villa de S. Vicente
faziam-se a cavallo ou em carroça puchada a burros.
As familias gostavam muito d'esses passeios e faziam-nos com frequencia.
Nas noutes de lua, a cidade era illuminada pelo luar; nas outras, quem tinha de sahir
de casa munia-se de uma lanterna ou de um archote.
A bengala, a pistola e o apito eram dispensados, porque não existiam ladrões nem
salteadores.
As familias visitavam-se muito, todos se davam, todos se conheciam e havia mais
sociabilidade do que ha hoje.
Como artistas dramaticos de profissão eram escassos e raro aportavam a Santos, os
rapazes santistas de então, que hoje são velhos e avós, organisavam sociedades dramaticas e faziam-se actores e... actrizes!
Todo o repertorio dramatico de Mendes Leal foi n'essa epocha, e em annos anteriores,
representado no velho theatro do largo da Coroação, que principiando por ser um armazem acabou por onde tinha começado.
Desse theatro e d'esses artistas amadores, alguns aliás de verdadeiro merito, terei de
me occupar ainda no correr desta veridica historia.
Já havia o piano e ainda existia o banguê
[2], o soporifico banguê, que foi o enlevo dos nossos avós, quando meninos. O assucar era o
principal genero de commercio grosso e de exportação. Comtudo, já se começava a exportar o café, ainda que em pequena escala.
Nos dias de sol, que eram então raros, as ruas da cidade cobriam-se de couros sobre os
quaes os negociantes mandavam estender o assucar para seccar.
Havia ampla liberdade para fazer isso e muito mais; a camara municipal não se
preoccupava com essas minucias.
Como a estrada de ferro ainda estava por construir, as viagens para o interior
faziam-se a cavallo ou no classico banguê.
O troly, o aristocratico troly de que hoje usam e abusam os fazendeiros
para viajar em estradas carroajaveis, com toda a commodidade, não tinha ainda nascido.
Quem vinha do interior entrava na cidade pela rua da Penha.
O Cubatão, que hoje está morto, era um logar cheio de vida e de florescente commercio,
porque era o caminho obrigado das tropas e dos viajantes que do interior demandavam Santos.
No dia em que silvou além do alto da Serra do Mar a primeira locomotiva, o Cubatão
morreu porque a via de ferro acabava de matar a via de rodagem, assim como o wagon de carga acabava de inutilisar o burro do tropeiro.
O clima de Santos era tambem differente do que é hoje: chovia muito, quasi
constantemente, e, quando não chovia, o calor era intensíssimo.
O estado sanitario em geral era máu; as febres palustres eram endemicas e as cameras
de sangue o tributo obrigado que pagava o recem-vindo, sobretudo o europeu.
Tal era a cidade de Santos em 1858.
Com o correr dos annos e abertura das novas ruas, que trouxe, como consequencia, o
aterro dos charcos e, mais tarde, a dissecação do sólo e do sub-solo pela drainagem, embora incompleta, a insalubridade do logar foi-se atenuando
sensivelmente.
De resto, o clima modificou-se tambem; o calor tornou-se mais brando, a temperatura
baixou e a chuva tornou-se menos frequente.
A natureza, auxiliada pelo trabalho do homem, fez de Santos, que era, talvez, a mais
insalure, a mais suja e a menos procurada das cidades da provincia de S. Paulo, uma das mais apraziveis, uma das mais salubres, uma das mais limpas,
e, com certeza, a mais importante, por ser o emporio commercial da provincia, o seu unico porto de mar frequentado por toda a navegação de pequeno e
longo curso, nacional e estrangeira.
Tal foi a transformação porque ella passou em menos de trinta anos.
Está fechado o parenthesis.
Engenheiro Garcia Redondo
NOTAS:
[1] "Quando Frederico Fomm
falleceu, todos os papeis relativos a essa estrada de ferro, com as respectivas plantas e orçamentos, foram confiados por sua viuva (D. Barbara de
Aguiar Fomm) ao Marquez de Mont'Alegre, seu parente.
Este os entregou ao Visconde de Mauá, seu protegido, e serviram de base aos estudos e
traçado da actual via ferrea de Santos a Jundiahy, estudos que aquelle vendeu á companhia ingleza pela quantia de quarenta mil libras esterlinas."
(Frederico Fomm - Apontamentos biographicos pelo dr. Augusto C. de Miranda Azevedo, 1879)
[2] Especie de liteira rasa
com tecto e cortinado de couro, conduzida sobre varaes, por duas bestas, uma adeante e outra atraz, servindo para transportar em viagem enfermos,
mulheres e crianças. ("Glossario de vocabulos brazileiros", pelo conselheiro Beaurepaire Rohan)
Rua Xavier da Silveira, em 1893
Foto: reprodução do livro: Docas de Santos - Suas origens,
lutas e realizações, de Hélio Lobo,
Typ. do Jornal do Commercio - Rodrigues & C. - Rio de Janeiro/RJ, 1936
(acervo do historiador Waldir Rueda)
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