O carro imperial da "S. Paulo Railway"
Alexandre Haas
Nunca vimos nenhuma descrição do carro imperial da "São Paulo Railway", outrora denominado "O Onze".
O historiador Noronha Santos, na sua magnífica obra Meios de Transporte no Rio de Janeiro, aparecida em 1934, fla das carruagens imperiais. Tivéssemos tido conhecimento do preparo desse trabalho e teríamos dado ao seu autor notas que servem ao presente escrito.
Hoje acha-se o carro imperial, como que também para lembrar uma era mais feliz, em permanente exposição, elevado na plataforma da estação de Santos, onde, em horas próprias, é mostrado a quem o deseja.
Carro histórico e com foros para figurar, em devida seção, em alguma futura grande exposição européia. Tem uma placa com a seguinte inscrição: "S. P. R. - Carro D. Pedro II - Este carro foi construído no ano de 1879 - Pela S. P. R. para uso de S. M. o Imperador do Brasil, Dom Pedro II".
Seja dito de passagem que a construção do carro marca a época em que a "São Paulo Railway" começava a pôr em serviço os seus primeiros carros, dotados de instalações sanitárias. Anteriormente não tinham eles tais requisitos, deficiência também atestada pelos primitivos carros da Estrada de Ferro de D. Pedro II e pelos de estradas de ferro europeias. Assunto, então, grandemente glosado, Honoré Dammier dedicou-lhe genial desenho. No Brasil tornou-se muito popular a engraçada cançoneta cômica "Com o meu chapéu". Velha como é, hoje o sentido de sua sexta e última cópia, todavia, só pode ser compreendido, ao par do que acabamos de referir.
O interior do carro imperial é, em miniatura, cópia do salão de espelhos de um castelo europeu. Maravilhava. Escolares frequentemente o visitavam no seu ponto de repouso, no fim de extenso depósito de carros, que havia e que terminava no nível da ponte que ora liga a Rua General Couto de Magalhães à de José Paulino. Lado do jardim.
Não se pode dizer que o carro tivesse somente servido aos imperadores. Servia igualmente para as viagens do presidente da Província, do chefe de Polícia, do bispo diocesano, e de alguns membros das famílias Prado e Souza Queiroz. Nele viajou, quando em 1880 visitou Itu o prestidigitador, de Viena d'Áustria, professor C. Herrmann, que, entre outras, trazia a credencial de membro da Academia de Ciências da Inglaterra. Em percurso executou assombrosas séries, talvez para maior gáudio de seu grande admirador Manuel José de Araujo Costa, do Tráfego da Estrada, que o acompanhou até Jundiaí. Pela mesma época Carlos Gomes ocupou o carro quando seguiu para Campinas. Os imperadores viajaram nele, pela última vez, em fins de 1886. Antes, serviu ele para viagem do príncipe Henrique da Prússia, a Limeira; e dos príncipes imperiais. Depois deu-se a viagem do Conde d'Eu, em 1889.
Queremos aqui consignar ainda que dom Pedro deixou ligado seu nome a um acontecimento grato para a "São Paulo Railway", quando, na sua viagem de 1875, subiu a pé o plano da Grota-Funda da antiga Serra. Houve quem visse malícia nisso!...
Fato altamente curioso prende-se à existência do carro. Um belo dia, depois de 1880, o inspetor do telégrafo da estrada, Germano Boock, viu um gato pular para dentro do carro, deitando-se no lugar que o imperador tivera nele. O gato tornou-se mascote do pessoal e John Barker, chefe da Tração, determinou que não fosse molestado.
O gato chamava-se Murry e o seu dono era o alemão Henrique Mullermeister, na época chefe da Estação da Sorocabana. Viera-lhe de Sorocaba.
Devemos quase todas as notas aqui utilizadas sobre o gato ao nosso finado amigo Juca Mendes, por último manobrista chefe da "São Paulo Railway". Algumas outras, sobre o preto Ezequiel, a Leonardo Schwindt, que foi das Oficinas da Estrada e, após, da Repartição de Águas. É também já falecido.
O nosso conhecimento com o gato deu-se no dia 2 de dezembro de 1888. Estávamos, com Chrispim Vasques, chefe da Estação, na plataforma, junto ao botequim, quando vimos entrar aí, sôfrego, o polícia da Estação, o preto Ezequiel. Queria um doce, dizendo que no dia de anos do imperador o gato imperial tinha o direito de ter um presente especial. Satisfeito, voltou.
O gesto de Ezequiel causou-nos estupefação, observada por Chrispim Vasques, que, sorridente, olhou-nos por alguns momentos, como querendo pôr à prova a nossa argúcia na solução de enigmas. Depois disse: - "Corre e vê".
Conquanto desconfiados de um logro, obedecemos. Vimos Ezequiel cumprindo seu propósito. Dentro do carro e com carinhosa mão estava dando ao gato uma tortinha de nozes, especialidade da Imperial Confeitaria de Adolpho Nagel, antiga fornecedora do botequim, já desde o tempo em que este era gerido pelo velho Fischer, da "Sereia Paulista".
O gato era bonito, sadio, dócil e inteligente. Conhecia os seus amigos. O acesso ao carro era-lhe fácil, por cavaletes e tábuas existentes no local e por haver sempre aberta alguma janela.
Vimos algum tempo depois o gato monárquico na ponta da plataforma da estação da "Sorocabana". Era aí o ponto para seus arranjos. Em seguida, ficava olhando para as artérias férreas. Nesta pose o encontramos e Juca Mendes, que inúmeras vezes já o observara assim, veio, de longe, nos dizer:
- "Ele agora está pensando se vai para o carro, ou se volta para casa" (esta era na Rua dos Gusmões).
Algumas vezes ainda vimos Murry pela zona de sua predileção. Uma vez ou outra ouvíamos falar dele. Mas havia ainda de bem particularmente nos tocar por casa, legando, por intermédio de Chrispim Vasques, um ensinamento sobre os homens.
Em vésperas do Carnaval de 1890 estávamos uma tardinha na Estação, à espera do último trem do interior. Num banco estavam sentados o dr. Miranda Azevedo, Horácio de Carvalho e Pedro Aranha (representante da então Cia. Ituana em São Paulo). Iam, como ainda outros senhores, esperar um alto prócere do novo regime. Incidentemente ouvimos sua conversa, da qual participou ainda Chrispim Vasques. Havia Pedro Aranha tocado no tema das adesões. Eis que o trem desponta na curva das Oficinas. Chrispim Vasques, retirando-se, pôde ainda dizer, dirigindo-se porém somente a nós:
- "Todos aderem. Só o gato do Henrique é que não; ele ainda vem dormir no Onze!..."
Tivemos o cuidado de certificar-nos se não era fantasia o que Chrispim Vasques nos dissera. Mas Juca Mendes confirmou a veracidade. Pedro Aranha (como nós mau decifrador de charadas) não gostou da tirada de Chrispim Vasques. Logo no dia seguinte, em reencontro, interpelou-nos a respeito da história do gato. Íamos explicar. Desinteressou-se porém e continuou no seu caminho. Naturalmente tinha outros cuidados do que o de dar maior valor a histórias de gatos!
Algumas palavras mais sobre Chrispim Vasques. Pertencia à tradicional família Corrêa Vasques. Todos seus irmãos eram dotados de espírito galhofeiro. Ele, em comparação, não. Entre o belo sexo era tido como tímido e esquivo. Custava sair do seu sério. Mas, quando o fazia, era irônico e fundo no conceito. Sua memória que nos perdoe se pecamos alguma vez duvidando da sua palavra.
Segundo Leonardo Schwindt, o preto Ezequiel servia-se à noite do Onze para sessões de espiritismo e de magia negra. Cremos porém aí que, abrangida a época de 1887 a 1888, o que tais pretendidas práticas do bom Ezequiel cobriam eram coisas da Abolição.
Que não fique sempre em segredo todo o precioso acervo histórico do velho carro imperial!
Prezado leitor, quando estiver em Santos, não lhe negue um olhar de simpatia. Ele o merece - fala e tem alma!...
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