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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE
Sinos inspiraram duas lendas na antiga vila

A história da enamorada índia Itaíra e a lenda dos piratas que os roubaram

Toda cidade que se preza tem suas lendas, e não seria diferente com a mais antiga do Brasil. Em duas dessas histórias, os sinos têm papel importante, como é relatado na Poliantéia Vicentina (obra editada em 1982 para comemorar os 450 anos desse município, pelo pesquisador Fernando Martins Lichti, em publicação da Editora Caudex Ltda., São Vicente/SP).

Contam os historiadores que a primitiva vila de São Vicente - ainda um pequeno conjunto de casebres junto ao mar (aproximadamente na área hoje conhecida como Praia do Gonzaguinha) - foi destruída em 1542 por forte ressaca, tendo Martim Afonso ordenado sua reconstrução em local mais afastado do mar. Detalhe é que os cronistas citam inclusive recibos de pagamento do tempo de Martim Afonso, para que mergulhadores recuperassem os sinos e outras peças levadas pela ressaca. E é fato que ainda em nossos dias a ressaca nas praias vicentinas, em certas épocas do ano, continua chegando com força até as avenidas à beira-mar, causando danos aos enrocamentos que as protegem.

Quanto à lenda dos piratas, vale recordar que entre a ponta da Ilha Porchat e a praia de Paranapuã existe um grande banco de areia, e que Paranapuã, em língua indígena, significa parana (= mar) puã (= levantado), o que mostra que esse banco de areia já era conhecido quando os primeiros portugueses chegaram ao Brasil.


Ilustração: Poliantéia Vicentina

A lenda dos sinos

A povoação era toda plantada à beira da praia alva e muito baixa. Redes estendidas ao sol, ranchos onde as canoas descansavam das lides contra o mar; barcos rescendiam a pixe e resina, enquanto outros montados em cavaletes, com as cavernas à mostra, esperavam reconstrução. Perto, bem perto mesmo, a capelinha com seus sinos ao lado. Um grande, de som forte e cheio, bem acima do outro, pequenino, voz estridente e fina, em contraste com o seu companheiro de repiques. Dir-se-ia que a capelinha velava cuidadosamente, tudo espreitando, os que chegavam, os que partiam!...

Animais soltos, com chocalhos amarrados ao pescoço, pastavam a grama rasteira, que florescia aqui e ali, onde o viandante não passava continuamente.

De quando em quando, barra fora, apontava um veleiro adornado ora para um, ora para outro lado, ao peso das velas enfunadas; eram notícias da Corte, esperança para todos, saudades para muitos!

Além da praia, erguiam-se casinhas fabricadas toscamente, dispostas sem simetria, umas caiadas, outras barreadas simplesmente.

Neste ambiente de sossego e de paz, vivia Itaíra, linda e formosa índia, domesticada pela família de um dos escudeiros de Martim Afonso. Moça feita, apaixonou-se pelo filho do seu protetor e seu pai de criação. Ele, porém, era noivo de uma guapa rapariga, lisboeta de nascimento e de educação, morando agora na Corte. Gostava de Itaíra como companheira dos folguedos de São João e São Pedro, do Natal e dos Santos Reis, fora disso nunca tivera amor nem intenção de desposá-la.

Itaíra, contudo, filha de gentios, sangue fervilhando nas veias, temperamento ardente, sentia por Otávio alguma coisa além das suas forças, inexplicável, irresistível! Passava-se o tempo...

Um dia, a Vila de São Vicente toda embandeirada e ornada festivamente. Os sinos da capelinha repicavam alegremente, ao ar subiam girândolas de fogo de artifício, o casamento do senhor Otávio com a filha do mordomo do Paço da Cidade de São Sebastião acabava de ser realizado! Todos se divertiam bastante, a alegria contaminava; só em um canto, esquecida e isolada, Itaíra chorava baixinho sua grande dor.

Desde este dia, a nostalgia invadira-lhe a alma e uma vez em que com outras amigas se banhava na praia linda e muito alva, afastou-se tanto e tanto, que o mar tragou-a para sempre!...

Alguém, confidente de sua paixão, murmurou sobre este acidente como proposital, e dizem que lá, nas profundidades do oceano, ela contou a Anfritite e a Netuno seu esposo, Deus do mar, a desdita de sua vida. A infelicidade do seu amor! Netuno prometeu vingá-la!

Uma madrugada, quase ao alvorecer, o Deus marinho saiu do seu palácio suntuoso e, de repente, o Oceano todo encapela-se, enfurece-se, encrespa-se, ruge, brama e escava a praia esbatida formando abismos insondáveis! E raivoso, sedento de vingar a virgem bugre, investe pela praia adentro tragando as casinhas das proximidades, as velhas choças abrigo das canoas e dos barcos, as redes estendidas e a ermida com seu altar e seu sino plangentes! E em sua investida continuaria, se não fosse o raiar do sol brilhante, que o dominou com sua claridade.

Por isso, hoje, na Praia de São Vicente, em noites escuras, o mar arremete do mesmo modo ainda contra a praia, formando precipícios, enquanto do fundo dele ouve-se na calada o toque dolente dos sinos da capelinha submersa, até que o sol, surgindo, acalme seu furor, subjugue seu instinto!

No momento atual, o homem levanta imensos paredões de pedra para defender a cidade da vingança de Itaíra, a filha das selvas, vítima de sua paixão.


Ilustração: Poliantéia Vicentina

Os sinos de São Vicente

Thomaz D'Alvim

Martim Afonso de Souza, chantado o marco da fundação e consertado o estatuto do labor colonial, tinha deixado os seus quatrocentos povoadores resolutos, de alargarem e multiplicarem aquela colméia...

O pequeno arraial rapidamente crescia, em torno da igrejinha branca, escutando - pela manhã, ao pino do sol e à noite - o toque dos sinos, como quem escuta a voz do próprio coração, que palpita, ora mais temeroso, ora mais forte, aos alvores e os ritmos da própria adolescência...

E bordejando os recôncavos das praias vicentinas, espreitando das lombas a hora propícia às arremetidas, andavam os piratas, de olhares cobiçosos, atiçados no antegozo de uma farta rapina...

D'uma feita, pulam em terra, horas mortas, contando com a fadiga e o repouso daquela gente laboriosa, que adormecera de credo na boca...

Vencida a restinga, prosseguem cautelosamente no assalto, conseguindo arrebatar-lhes, do campanário, os bronzes, que tangiam e falavam, marcando repiques e dobres, as três fases do dia e, do mesmo jeito, as três fases culminantes da vida...

E já procuram, praticado impunemente o assalto, fazer-se ao largo, quando ao dobrarem a Fortalezinha, na altura de Paranapuã, pequenina praia silenciosa e redonda, onde o mar se ajeita caprichosamente em concha, a embarcação batendo n'uns baixios, aderna e soçobra, levando para o fundo, no seu bojo, a carga sagrada... Conta-se que proveio, o imprevisto encalhe e naufrágio, da formação repentina e realmente miraculosa de bancos de areia, que serviriam de natural blindagem e defesa a novas incursões dos ímpios flibusteiros...

Desde essa hora, a vila cresceu em paz, sob as bênçãos do orago, liberta de novas piratarias; mas, a relembrar-lhes aquela profanação, ainda hoje os praianos e pescadores vicentinos escutam o badalar, ora festivo, ora dolente, dos sinos submersos, afogados no rumor melancólico do mar...

Sob a brancura da espuma a rir... aquela voz distante, dos bronzes, parece chorar, por vezes, o convívio e a saudade do povo grande obreiro cristão, que os fundira e os erguera, na solitária torre colonial, pequenina, branquinha e altaneira...

E vêde, como o próprio Sol, que os recorda amorosamente, pelo fim das tardes, todo se inclina e mergulha, naquele ponto do oceano, para lhes levar o fulgor do seu beijo tropical...

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