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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Uma querela salgada

Francisco Martins dos Santos (*)

Um dos fatos mais importantes da Vila de Santos no século XVIII foi a invasão operada por Bartolomeu Fernandes Faria e seu corpo de aventureiros, com o propósito de retirar o sal de que precisavam e que lhes era negado pela ambição dos monopolizadores, fatos que Pedro Taques narra da seguinte forma:

Era a Vila de Santos, nesse ano de 1710, um presídio fortificado de quatro companhias de infantaria paga e tinha naquela ocasião por governador da praça e das fortalezas, ao mestre de campo José Monteiro de Mattos.

Bartholomeu Fernandes Faria chegou à Vila de São Vicente e por ela se introduziu por terra em distância de duas léguas com a sua força d'armas, valendo cada soldado seu, na estimação do seu comandante Bartholomeu, por muitos dos que na praça tinham o soldo do rei.

Deu motivo a esta briosa, posto que indiscreta ação, o vexame que sofriam, sem remédio, os moradores de serra acima, porque a ambição tinha convertido em negócio particular a venda do sal (que por estanco se dignou conceder a real piedade do Sr. Rei D. João V em preço taxado de 1$280 por alqueire, por súplica que lhe haviam feito os mesmos moradores de serra acima pela câmara da capital de S. Paulo), que tinha chegado ao excesso de pedir o contratador por cada um alqueire 20$, afetando que o reino lhe tinha faltado a providência anual deste gênero.

Porém, contando a Bartholomeu Fernandes que tudo era dissimulação do contratador, que, protegido dos magnatas da Vila de Santos, estava praticando com liberdade esta insolência debaixo dos seguros de lhe não ser castigada a culpa, sendo tantas vezes requerida pelos da república de S. Paulo, formou um corpo de armas, e baixou com ele na forma referida à Vila de Santos; chegado a ela, tomou logo as casas dos armazéns do sal e, mandando chamar o contratador do sal com o seguro da palavra de homem de bem de lhe não fazer mínima ofensa, e que só carecia da sua presença com os seus caixeiros para ver a extração do sal e receber de cada um alqueire o seu taxado preço de 1$280, e porque desta quantia tem a fazenda real 400 rs. por consignação, que prometeram os povos de S. Paulo e suas vilas para subsídio da infantaria da praça, mandou aviso ao provedor da mesma fazenda Thimóteo Correa de Goes para mandar para as portas dos armazéns do sal o fiel recebedor dos 400 rs. de cada alqueire.

Estando tudo assim disposto com grande tranqüilidade de espírito, ocupou Bartholomeu Fernandes a rua onde existiam os ditos armazéns (hoje José Ricardo), cujas portas fez abrir, e por medida que tinham os mesmos fez extrair e evacuar o sal, que entendeu necessário para fornecimento dos povos de serra acima, que havia meses suportavam a barbaridade da ambição do dito contratador, pagando-se (dentro dos mesmos armazéns) o sal que para fora se tirava, e os 400 rs. de cada alqueire ali mesmo recebeu o fiel da fazenda real, sem que esta, ou o contratador, recebesse prejuízo por diminuição de um só real.

Para condução do gênero que deu causa a esta liberdade e despotismo, havia Bartholomeu Fernandes de Faria disposto uma multidão de Carijós, a cujas costas se conduziu todo o sal, e com cavalos de carga, que para o mesmo fim os fez ir em sua companhia, o que tudo aumentou tanto o troço da gente armada, que avultava a pé um exército, para praça tão pequena; e seus nacionais sem terem ocasião de verem cavalos, que ainda então os não havia naquele rocio, menos corpo sobrava para o temor, e para a admiração.

Executado este lance sem outro algum procedimento de maldade, que costuma obrar qualquer corpo auxiliado do despotismo, se retirou Bartholomeu Fernandes de Faria pelo mesmo caminho de terra da Vila de São Vicente; e porque nesta estrada há uma ponte chamada de S. Jorge, tanto que teve toda a gente assim de armas, como de cargas e bestas, postas de outra parte da dita ponte com acordo de soldado esperto, mandou deitá-la abaixo, acautelando-se assim para passar a noite em sossego, se na sua retaguarda tocasse alarma a infantaria da praça para o atacarem dentro da Vila de S. Vicente, em marcha para S. Paulo até o sítio chamado do Cubatão.

Não foi esta advertência de pequena conseqüência, porque, resolvendo-se os da praça a seguirem a Bartholomeu Fernandes para castigarem a ousadia, chegando as tropas ao passo de S. Jorge, o acharam sem ponte, a qual não se podia fabricar em breves horas; e por este impedimento retrocedeu para Santos sem mais ação, que haverem intentado o despique por desafogo.

Sossegados os ânimos do primeiro susto e horror, que causou a liberdade de Bartholomeu Fernandes entrando com corpo armado na praça de Santos, houve ação de graças por ficarem os moradores livres de um potentado, de quem recearam hostilidades, roubos, e outras insolências, que costumam praticar qualquer corpo tumultuoso, e sem disciplina regular. Foi a ação de graças celebrada na igreja do colégio dos pp. jesuítas da praça de Santos, e houve no fim do Te Deum um sermão que se dedicou para o prelo, ao mestre de campo José Monteiro de Mattos.

A Rua do Sal, em 1865
A Rua do Sal, em 1865

Bartolomeu Fernandes só foi preso em 1721, em Conceição de Itanhaém, por três companhias da guarnição da Praça de Santos, a mando do Governador Luís Antônio de Sá Queiroga, como se vê na Provisão Régia de 3 de outubro de 1722, e, de surpresa, revelada a sua presença ali, por um soldado.

(*) Francisco Martins dos Santos, autor da História de Santos, incluiu este relato em seu livro, publicado em Santos em 1937 e republicado por Fernando Martins Lichti, na obra conjunta História de Santos/Poliantéia Santista, publicada em 1986 pela Editora Caudex Ltda., de São Vicente/SP.

Notas:

Os carijós eram uma das diversas tribos de índios da região litorânea paulista.

Um alqueire, como medida para cereais, vale 40 litros.

Uma légua vale quatro quilômetros.

"Estanco" tem o sentido de "exclusividade no direito de negociar, monopólio".

O Rio São Jorge, atualmente canalizado, na Zona Noroeste de Santos, deságua no Rio Casqueiro, que banha por Norte e Oeste a ilha de São Vicente. Com regular volume e largura, entrava profundamente no território da Ilha de São Vicente, passando junto ao Engenho de São Jorge dos Erasmos, chegando junto ao Morro da Água Branca ou de São Jorge, onde recebia a cachoeira do mesmo nome.

O "sítio chamado do Cubatão", então parte de Santos, tornou-se em 1949 a cidade de Cubatão. Conceição de Itanhaém é a atual cidade de Itanhaém, no litoral Sul paulista.

Contratadores eram empresários incumbidos pelo rei - por delegação de poder - de transformar contribuições in natura em prestações monetárias. O rei português - senhor do comércio - fixava os preços e o quantitativo de utilização, cumprindo ao contratador pagar o preço e redistribuir o produto na Europa, geralmente em conexão com os mercadores internacionais.

O comércio do sal, com muito maior importância do que atualmente (pois era usado na conservação dos alimentos, antes da invenção das geladeiras), era um dos monopólios reais. As luxuosas e decadentes cortes portuguesas viviam então do que arrecadavam na ordenha (expressão usada na época) dos tributos e direitos comerciais do Brasil. Além da excessiva arrecadação lusa, pesava sobre a economia colonial o efeito corruptor causado pela distância entre o rei e seus agentes ultramarinos, que impedia melhor controle contra seus desmandos.

Conta Raymundo Faoro, em sua obra Os Donos do Poder (Publifolha/Editora Globo, São Paulo/SP, 2000) que "O monopólio do sal, como nenhum outro, revela o caráter irracional dos monopólios, com seus efeitos retraídos ao cálculo sobre a economia da colônia. A salga do boi - denuncia Azevedo Coutinho, o inimigo dos monopólios e do mercantilismo - custa 'duas e três vezes mais do que vale o mesmo boi; da mesma sorte o peixe'. (...) O monopólio, expressão do senhorio do comércio do rei, torna-se, com o tempo, entrave do movimento mercantil (...). Exige (...) um exército de funcionários e vigias, que, se pouco fiscalizam, comprometem-se nas propinas e na corrupção".

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