A CIDADE SUBJUGADA - 2
O incontrolável avanço do porto
O porto avançou sobre a Cidade, estrangulando-a até uma linha divisionária, a Avenida
Afonso Pena, e ocupando pelo menos metade de sua área total. Num lado, as empresas transformaram as moradias em pátios e armazéns; no outro, a
população se comprime, habitando a muralha de edifícios da orla da praia. Os prédios já se estendem para dentro, caminhando acelerado,
proporcionando, a médio prazo, uma densidade habitacional acima dos índices aconselháveis. Hoje, como um autêntico desbravador, o porto invadiu 15
bairros, admitindo apenas a sobrevivência da menor favela do mundo que, por ironia, se chama
Redenção.
Texto: Álvaro de Carvalho Júnior e José Carlos Silvares
Foto: Rafael Dias Herrera
Ilustração: Cristina
O porto de Santos atravessou a rua. Não respeitou
residências, prédios, terrenos, campos de futebol, nada. Simplesmente foi tomando tudo que achou de direito, como se fosse uma força absoluta,
desbravadora. O Macuco, um dos bairros mais tradicionais da Cidade, não resistiu à invasão, deixando que suas ruas fossem
tomadas de assalto, numa batalha na qual era a parte mais fraca. Conhecido anteriormente como região operária - onde moravam os trabalhadores do
porto -, hoje suas casas estão cedendo espaço para empresas que compram tudo e transformam os lotes em zonas de serviço.
Na realidade, o porto, nos últimos 15 anos, lutou entre ficar delimitado à sua
estreita faixa de terra ou invadir a Cidade. Preferiu a segunda hipótese, já existindo, inclusive, uma linha imaginária que praticamente definirá o
limite final desse avanço: a Avenida Afonso Pena. O fenômeno foi descoberto pelos proprietários de imobiliárias instaladas na região, ao constatarem
que sua área de ação vai ficando cada dia mais difícil. A procura de casas e apartamentos está diminuindo, perdendo terreno para as empresas que
pretendem instalar-se nas proximidades do porto.
Nos bons tempos, coisa de 12 anos atrás, uma imobiliária chegava a negociar entre oito
e dez imóveis por mês. Os espaços eram grandes, as casas em número surpreendente e os apartamentos ficavam reservados àqueles que não tinham
dinheiro para comprar à vista. Hoje, as imobiliárias negociam em média de um a dois imóveis por mês e lutam para encontrar grandes terrenos, que
realmente interessam às grandes firmas.
"Existe uma firma de São Paulo - comentou o proprietário da Mirassol, a imobiliária
mais antiga do bairro - que pretende adquirir um terreno com 300 metros quadrados, 10 de frente por 30 de fundos, para construir um depósito. Paga,
à vista, Cr$ 3 milhões. Ainda não encontramos esse terreno. A solução será a compra de dois ou três terrenos, para ter a área de que necessita".
Essa é, atualmente, a única forma de se conseguir um bom lote no Macuco ou no vizinho
Estuário, que enfrenta os mesmos problemas. O preço do metro quadrado, a partir da expansão do porto, chegou aos Cr$ 5 mil, uma quantia que,
comparada à zona nobre da Cidade, pode ser considerada baixa. Mas, mesmo com a construção de apartamentos mais populares, os preços dos
imóveis acabam sendo muito altos para pessoas de menor renda. Um exemplo: no Canal 5, próximo ao porto, está sendo construído um edifício de
apartamentos, cada um com três quartos, que terá o preço unitário de Cr$ 3 milhões. "E isso é agora - afirma o dono da imobiliária. Depois de
pronto, a conversa será outra".
As conseqüências desse boom imobiliário são quase imprevisíveis, e os preços,
incalculáveis. Os grandes terrenos praticamente já desapareceram, restando apenas algumas casas. Assim, os preços não têm limite, dependendo sempre
do interesse de cada um. E, se é necessária uma grande área, resta a opção de comprar vários lotes e transformá-los num só. A área residencial
praticamente acabou, dificultando o comércio dos imóveis que ainda existem.
"Muitas vezes - explicou Benito Pereira Gomez, proprietário da Mirassol -, as pessoas
se interessam pelos imóveis. Mas, no momento em que sabem de sua proximidade com o porto, simplesmente desistem. Dentro de 10 anos, não restará mais
nada aqui no Macuco, e nem no Estuário. Tudo estará ligado ao porto, até a Avenida Afonso Pena. As transformações estão
sendo rápidas e radicais. Esses dois bairros não são mais os mesmos".
O corretor tem razão. Além do avanço do porto, existe ainda o desenvolvimento
comercial, uma espécie de caçamba que o porto invariavelmente arrasta atrás de si. As firmas comerciais, antes restritas ao
Centro, decidiram estender seus negócios pelos bairros e em pouco tempo haverá um movimento comercial intenso, maior talvez do que existe no
Centro.
A Avenida Senador Dantas transformou-se em enorme corredor comercial. Ela é um
segmento da Avenida Pedro Lessa, que margeia o cais desde o portão da Companhia Docas próximo à Rua João Guerra. Portanto, o desenvolvimento do
porto também provocou essa alteração, levando representantes de casas comerciais, agências bancárias e supermercados a deslocarem-se para os
bairros, alterando completamente o comportamento da população. As crianças não podem mais andar nas ruas, os cães ficam presos nas casas e os
papagaios não saem mais dos poleiros. Os bairros do Macuco e Estuário estão se transformando em locais de comércio, barulho, desenvolvimento.
E as residências, antes com amplos terrenos, estão sendo imprensadas, empurradas, em
direção à praia. O espaço para cada habitante diminui a cada dia, enquanto o porto vai jogando toda sua força contra a Cidade, ocupando seu lugar. A
Cidade está mutilada, seus habitantes perderam o prazer da conversa na calçada, nas noites de verão. As crianças ficaram sem lugar para brincar. O
moleque, personagem tão típico do Macuco e do Estuário, aos poucos foi sendo confinado aos apartamentos, sem lugar para a bola de gude, a bola de
meia, o papagaio, a infância.
A zona chuleada no mapa indica os bairros diretamente atingidos pelo porto.
Um avanço voraz e contínuo
Imagem publicada com a matéria
Expansão toma 15 bairros
(e ruma para outros)
Não apenas o Macuco e o Estuário, mas pelo menos metade da Cidade está sob o domínio
do porto. Essa constatação, embora terrível, mostra que a dependência de Santos para com o porto só tende a crescer. E que nossa fonte econômica,
com a instalação das empresas ligadas às atividades portuárias, se volta, na prática, para o lado do cais. São apenas 15 bairros inteiros, alguns em
parte, que vêm recebendo a vizinhança de pátios de containers, de armazéns de estocagem e de empresas ligadas ao setor portuário. As
moradias, em alguns desses bairros, foram demolidas para dar lugar à expansão das empresas, tornando esses locais praticamente inabitáveis, tal o
acúmulo de caminhões e o trânsito de mercadorias.
A invasão começa na divisa com Cubatão, no Jardim Piratininga,
margeando a Via Anchieta. Ali estão vários armazéns de estocagem, detrás do núcleo habitacional. Do mesmo lado, entre a
estrada e o porto, na Alemoa, estão instalados inúmeros depósitos de gás e de produtos químicos, além de pátios de
transportadoras que utilizam o terminal de granéis quiímicos do porto. Do outro lado da estrada, no Jardim São Manoel e
no Chico de Paula, beirando a marginal à Via Anchieta, estendem-se vários armazéns e pátios de carga diretamente ligados
às atividades portuárias. Ali estão instaladas também as grandes transportadoras.
No Saboó, junto à Avenida Martins Fontes, desde o
Elefante Branco, há também várias firmas e transportadoras, que mantêm pátios e armazéns no mesmo bairro, junto ao
porto. O Valongo está praticamente dominado pelas empresas, com depósitos de adubo e pátios de enxofre, que tornam o ar
irrespirável. Há também pátios da ferrovia Santos a Jundiaí e muitas firmas de despacho.
O Centro, que sempre abrigou prédios inteiros de agências marítimas e de despacho,
recebeu também uma infinidade de escritórios e empresas governamentais, sendo invadido, agora, por pátios de containers e por centenas de
caminhões. Assim, pode-se notar, numa rua estreita como a Amador Bueno, junto à Catedral, várias transportadoras
manobrando containers e congestionando o trânsito. Aliás, a invasão de caminhões por toda a Cidade foi amplamente divulgada na semana passada
pelo repórter Áureo de Carvalho, em série de reportagens publicadas por A Tribuna.
No Paquetá, ao redor do cemitério,
há também várias transportadoras e algumas empresas de reparos navais ou de peças para navios. Na Vila Nova, junto ao
Mercado Municipal, as poucas casas transformaram-se em habitações coletivas, onde os porões são disputados palmo a palmo. O
bairro abriga também grande parte dos armazéns externos da Companhia Docas de Santos.
O maior problema, que tem causado inúmeras reclamações dos ex-tranqüilos moradores da
Vila Matias e do Macuco, são os caminhões. O número de transportadoras situadas nas ruas que percorrem os dois bairros
(Campos Mello, Silva Jardim, Luísa Macuco, Luís Gama, João Guerra e outras) é a causa dos transtornos. Esses dois bairros também estão praticamente
inabitáveis.
No Embaré e em Aparecida, no
trecho aquém da Avenida Pedro Lessa, uma via larga e muito usada pelo tráfego pesado rumo ao porto, os problemas também são muitos. Nessa região
começa a se desenvolver também o hábito da compra de duas ou mais casas para derrubá-las e transformar a área em armazém ou pátio de estocagem.
Mas é no Estuário que a disputa pelos terrenos e casas se multiplica. Todo o bairro
foi tragado pelas empresas que usam o porto, devido à proximidade com a faixa do cais. Ali proliferam armazéns de estocagem, frigoríficos e pátios,
margeando a Avenida Osvaldo Aranha e ocupando todo o retângulo entre a Bacia do Macuco e a divisa com a Ponta da Praia,
também um bairro atingido pelo porto, na área junto ao Entreposto de Pesca e ruas transversais à avenida portuária.
E o resto da Cidade, quando será atacado?
Os moradores só se queixam dos ratos
Foto publicada com a matéria
A menor favela do mundo
(sem nenhum orgulho)
Houve tempo em que a Favela Redenção chegava ao mar. Seus barracos se espalhavam pelo
Estuário, chegando até a Bacia do Macuco, exatamente o ponto final do porto na época. Seus moradores eram nordestinos que vieram a Santos tentar a
sorte, fugindo da seca e do desemprego. Grande parte da população vivia de trabalhos no porto, e vivia em barracos sem condições de higiene, sem
água, luz ou qualquer outro tipo de serviço básico.
Com o tempo, aumentaram os limites do porto, diminuindo a favela, derrubando seus
barracos. A partir da Mortona, ergueram-se armazéns 29, 30, 31, até o 38, chegando finalmente na Ponta da Praia.
A favela não resistiu e nem poderia resistir a tanta força. Cedeu o pouco que tinha, e
se então o mar estava próximo, tornou-se inacessível, distante, cercado pelos muros portuários e pelos armazéns externos da Companhia Docas de
Santos. Mais tarde, apareceu a Avenida Portuária, que acabou de cortar a favela abrindo caminho para as grandes empresas, interessadas em se
instalar ao lado do porto. Os moradores foram sendo despejados aos poucos, e a Redenção acabou se transformando na menor favela do mundo. Um título
que seus moradores não têm orgulho de divulgar.
João Damião Moreira, por exemplo, chegou à favela quando tinha 17 anos, e hoje, aos
25, lembra-se muito bem que o número de casebres avançava pelo bairro adentro, invadia parte da área onde hoje está o porto, e sua população era
respeitável.
"Não é ruim morar aqui. O problema é que existem muitos ratos". Dos três filhos de
Maria Raimunda, outra moradora da favela, dois já foram atacados. Um mordido no dedo, e outro, no braço. Até adultos ficam assustados quando as
ratazanas passam por cima dos pratos de comida, avançam em sacos de alimentos, sem respeitar nada, nem ninguém.
Há pouco mais de 50 metros do outro lado da Avenida Portuária, está o Armazém 35
externo da Companhia Docas de Santos, um dos maiores do porto e que se transformou num enorme muro que separa a favela do mar. Lá os ratos são
combatidos regularmente, mas não existem crianças que possam ser atacadas. Apenas mercadorias empilhadas.
Na Avenida Portuária, o trânsito é intenso, com caminhões passando sem parar,
empoeirando as casas da favela, que está instalada numa área que não permite a construção sequer de um estacionamento. Talvez por isso, pela
insignificância do terreno, a Sabesp tenha desistido de despejar as 50 pessoas que ainda sobrevivem em nove barracos de madeira, alguns amparados
nos muros da empresa.
O relacionamento entre a favela e o porto chega a ser surpreendente. Ele foi o
responsável pela destruição de quase tudo, mas ao mesmo tempo, dá oportunidade de trabalho aos seus moradores. João Damião talvez seja o melhor
exemplo desse relacionamento. Sem profissão definida, sem estudos, consegue serviço na estiva, trabalhando com sua carteira profissional e
aguardando a complementação de horas trabalhadas para conseguir outra carteira, a plastificada da estiva, que lhe dará oportunidade de
conseguir melhores condições na escala.
"Apresento a carteira e trabalho. É difícil conseguir coisa boa, mas pelo menos não
fico parado. Só ganho salário, mas um dia completo as horas e tiro a carteira de plastificado. Aí, quem sabe mais tarde chegue a ser
estivador? Por enquanto, vou levando".
Maria Raimunda é mais pessimista, e não tem esperança de mudar de lugar, isso depois
de 14 anos. Lamenta a falta de limpeza, agradece quando os homens da higiene pública pulverizam os barracos contra mosquitos e ratos, e pede água e
luz, duas coisas que nunca existiram na favela, nem quando era grande e populosa.
"Já que estamos aqui, seria bom ter água encanada. Não temos mesmo para onde ir..."
Não há outra saída. Os moradores da menor favela do mundo serão obrigados a conviver
com ratos, falta de água, luz e higiene por mais tempo. Até que um dia o porto decida que aquele pequeno pedaço de terreno, insuficiente para
qualquer tipo de construção, comece a lhe interessar. Então, os nove barracos que ficaram da Favela Redenção desaparecerão definitivamente, restando
um pequeno grupo de pessoas que não têm para onde ir.
A favela, junto aos navios. Até quando?
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