Fotografias e recordações de antigos moradores, é só o que restou do Embaré de outros
tempos, quase desabitado, cheio de brejos e chácaras de japoneses. Hoje são quase 40 mil habitantes, espalhados entre a orla da praia,
aristocrática e movimentada, e outras áreas mais simples e tranqüilas, onde crianças brincam nas ruas, homens conversam nos bares e mulheres se
reúnem nos portões. Por incrível que pareça, para os lados mais retirados,
distantes da chamada zona nobre, ainda há muitos chalés e enormes quintais cheios de árvores. Mas, não se sabe por quanto tempo os donos dessas
casas quase centenárias resistirão aos apelos dos corretores, em busca de espaços para a construção de novos edifícios. A transformação parece
inevitável, dando novas feições a esse bairro que já mudou tanto nesse século.
Quem diria? O mar já foi verdinho e tinha propriedades terapêuticas, segundo se dizia.
Coisas que os antigos nem gostam de relembrar. O motorista de táxi número 1 de Santos, por exemplo, prefere falar sobre passageiros ilustres que
transportou e contar como se livrou de assaltantes, que queriam fugir sem pagar. Melhor do que ouvi-lo reviver esses fatos é constatar o ambiente
amigo que existe no "Chiqueirinho". Um bar tradicional.
A aristocrática e movimentada orla da praia desse bairro que abriga cerca de 40 mil pessoas
Segura! Opa! Calma aí, "seu" condutor"! Os homens correm,
fazem malabarismos e algazarra. As mulheres e as crianças acompanham a movimentação com os olhos.
Não é preciso dizer mais nada. O Rápido acaba de passar. Isso mesmo, o Rápido, bonde que não parava nos pontos
para pegar os passageiros. O condutor apenas reduzia a velocidade e por isso só os homens se atreviam a tentar subir. Vinha do Centro, passava
pela Conselheiro Nébias, seguia em direção ao Embaré e fazia o retorno perto de onde hoje está o Aquário. As mulheres, sem alternativa, tinham que
esperar o 4 ou o 10, esses sim bondes normais, que paravam regularmente nos pontos.
Outros tempos, presentes na memória de moradores como Mílton Rodrigues, o Delegado, que se vangloria de
ser o mais antigo morador da Rua Benjamin Constant. Até briga se alguém disser o contrário. Figura muito conhecida e querida, não esconde o
orgulho quando conta que pessoas de bairros distantes preferem comprar em sua banca de jornais, instalada na Benjamin Constant com Avenida
Epitácio Pessoa.
Muito da história do Embaré está guardado com ele, que conheceu a praia quando ainda era iluminada por lampiões.
A suntuosa Basílica do Embaré não passava de uma capela e, onde hoje está a sua banca, havia uma enorme vala, que de tão grande até parecia um
canal.
Moisés Pereira, amigo de infância do Delegado, o ajuda a reconstituir o passado. A imagem que traz na
mente é a de uma igreja baixinha, com jardins de ambos os lados, onde as crianças jogavam bola. À esquerda, havia uma lagoa onde ficavam atracadas
três embarcações, daquelas que se usava para ir pegar banana nos sítios do Estuário. Adivinha se a molecada não vivia lá brincando?
Os amigos de infância revivem os tempos em que matavam rã na base da cacetada
A praia era
só mato: rã se matava na base da cacetada - A Benjamin Constant que Delegado e Moisés conheceram era um grande lamaçal enfrentado com
valentia pelos donos de carros de boi. A Avenida Barnabé, hoje Epitácio Pessoa, tinha valeta dos dois lados, e tanto brejo havia por perto que a
molecada matava rã na base da cacetada. Eram tantas que morriam cinco ou seis de uma só vez e latas de vinte quilos ficavam cheias num instante.
A criançada gostava também de pescar. O mato tomava conta da orla da praia e apenas alguns caminhos davam acesso
ao mar. No caminho se esbarrava na plantinha conhecida como dorme-dorme e não tinha como escapar dos carrapichos, que grudavam nos pés e nas
pernas. A água era verdinha, tão diferente...
Quando chovia, alagava tudo, e para a criançada não poderia haver alegria maior. Olhos arregalados, brilhantes,
caladinhos, os meninos observavam o guarda da Alfândega, Benedito Apólio dos Santos, cruzar as ruas de barco. Não deixavam por menos, pegavam
bacias e saíam navegando também.
Vacarias e estábulos não faltavam. Eram em três só na Benjamin Constant: do Jesus, do Saturnino e da "dona"
Cândida. O leiteiro passava vendendo o produto e dividia o que sobrava entre a vizinhança.
No inverno, as mesmas cenas se repetiam: quatro ou cinco mulheres se juntavam para tomar banho de mar, com
calção até o tornozelo. Levavam bules cheios de café e leite. O passeio não durava mais do que 10 ou 15 minutos, mas que festa não era para as
crianças. Iam atrás, pulando feito cabrito.
A vizinhança se constituía em uma grande família. Época de São João não dava outra: muitas fogueiras e balões.
Tangerina, charuto, almofada e estrela eram os nomes que os meninos davam aos balões, que subiam em direção ao céu e se confundiam com as
estrelas. Só vendo o céu pipocar de tantas luzinhas ou iluminado por uma baita lua cheia.
De manhã, muito cheiro de fruta; hoje, os carros não deixam ninguém dormir - O pai de Delegado foi
um dos primeiros a montar casa naquela área circundada por bem cuidadas chácaras de japoneses. Chuchu, pimentão, alface, chicória e couve cresciam
que era uma beleza, e as mulheres, balaio na cabeça, se encarregavam de vender na vizinhança. Quanta coisa se comprava com um tostão! E sabe o que
mais? Os meninos viviam pegando tomate escondido para comer.
Saracuras, sabiás, canários e tico-ticos voavam de um lado para outro, feito crianças correndo no quintal em
dias de festa. Se os japoneses descuidassem, os pássaros acabavam com tudo. Por isso, montavam espantalhos no meio das plantações, tão perfeitos
que até os menores se assustavam. Dia de chuva, os japoneses ficavam na porta ou na janela, puxando cordinhas que movimentavam os espantalhos.
Os pés de abacate, ameixa, tangerina, manga, morango e pitanga ficavam carregados, à disposição de quem quisesse
saborear os frutos. A criançada levantava da cama e já ia direto para os pomares. Quanta saudade Delegado sente do tempo em que acordava
com o cheiro das frutas. Hoje o cheiro é outro, de gasolina. Ele pondera: "Agora é o progresso, mas o sujeito não tem mais saúde".
Delegado ainda conserva arruda, capim cidrão, pitanga e jerimum no quintal de sua casa, na Benjamin
Constant, 59. E as árvores? "Muita árvore não dá, arrebenta o muro do vizinho". Novos tempos, sem dúvida.
Quem se recorda? O Canal 5 não existia, o 6 terminava na Avenida Barnabé e o 4 também não chegava até a praia. A
inauguração do trecho final desse canal foi em 1924, com a presença de Washington Luís e tudo. A tarde estava chuvosa e a solenidade não atraiu
muita gente.
Apesar de paraplégico, era goleiro de um time sempre vitorioso - Essa aconteceu há 40 anos: o Mauriti e o
Nélson convidaram Delegado para um passeio de canoa. Apesar de ser paraplégico e não saber nadar, não contou tempo: deixou a cadeira de
rodas, tipo carrinho, na beira da água e se meteu na canoa, todo folgado, de relógio e tudo. Por sorte, os salva-vidas que davam plantão no Embaré
descobriram a travessura e resgataram a canoa. E, Delegado, gostou do passeio? "E não ia gostar?"
A deficiência física também não o impediu de ser goleiro do Benjamin Constant, time da rua, campeão varzeano.
Sabe como é: o time era tão bom que não aceitava derrotas. Se o adversário fazia um gol, os jogadores tratavam de anular. Afonso Pena, Botafogo,
Ipiranga e Fluminense eram rivais, armavam cada confusão que nem a polícia dava conta. Mas, os campos de várzea se acabaram e com eles os clubes.
Só restou o Fluminense, fundado em 1938, com sede na Oswaldo Cócrane, 147.
O Empório Triunfo conseguiu sobreviver à criação de grandes estabelecimentos, mas o Cine Santo Antônio, que
ficava na Pedro Lessa com Senador Dantas, não resistiu à instalação progressiva de melhores salas de projeção no Gonzaga. E o padre Gastão, tão
respeitado e querido, ninguém sabe ao certo que fim levou. Dizem lá no bairro que fugiu para o Rio de Janeiro e casou-se.
Os amigos de infância revivem os tempos em que matavam rã na base da cacetada
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