As pessoas que são como São Tomé, só acreditam vendo, podem olhar o mapa para
confirmar: a Bacia do Macuco e as Casas Populares do Macuco não pertencem mais ao bairro que lhes deu o nome. Desde 1968, quando se definiu o novo
abairramento, elas passaram a fazer parte do Estuário, que surgiu do retalhamento do Macuco e têm seus limites dados pelas avenidas Siqueira
Campos, Portuária e Afonso Pena. Destaca-se como um dos maiores
bairros de Santos e, como uma conseqüência natural, apresenta grande diversidade em termos de ocupação. Caminhando por suas ruas, a gente depara
com chalés quase centenários, boas casas de alvenaria, prédios altos e baixos, sem contar o comércio diversificado traduzido em farmácias,
padarias, bares, açougues, bazares e mercearias. Até alfaiatarias e lojas de conserto de calçados existem por lá.
Novos pátios de contêineres surgem a cada dia e, com eles, chegam os caminhões que
quebram calçadas e galhos de árvores e fazem trepidar as casas. Os problemas do lugar vão desde os mais simples e comuns, como ruas esburacadas e
cheias de lama, e assumem proporções bem mais sérias quando se pensa nas favelinhas da Avenida Portuária e nos conflitos pela posse da terra que
envolvem dezenas de famílias da antiga Avenida Santista e do antigo Caminho Particular da Bacia.
E é no Estuário que mora dona Teresa, uma senhora de 97 anos de idade, que tem 61
bisnetos e seis tataranetos.
Tem gente que ainda chama aquela região no final do Canal 6 de Pau-Grande. Isso é uma
herança do tempo em que ali havia o imenso tronco de uma figueira. Só que o Pau-Grande ficava no Macuco e passou a fazer parte do Estuário quando
aquele bairro perdeu terras para formar outros. Nessa reportagem, vamos conhecer um pouco do que foi e é o Estuário, ler histórias contadas pela
quase centenária Dona Teresa e saber sobre a vida dos pescadores da Bacia.
Estuário: muitos nem sabem que esse bairro existe, embora seja um dos maiores de Santos
Não vá algum engraçadinho dizer que os pés de couve eram de
Itu. Eles cresciam ali mesmo, nas várias chácaras de japoneses que havia no Estuário e atingiam até dois metros de altura. Eram pés de couve para
ninguém botar defeito, como tudo nas bem cuidadas chácaras. Dava gosto ver as berinjelas reluzentes, os machuchos pendendo de galhos tão frágeis e
as abóboras pesadas feito uma barra de ferro.
A molecada andava sempre por perto, espreitando os passarinhos que faziam vôos rasantes e deixavam para trás
preciosas penas coloridas. Mas quando os meninos deparavam com algum japonês, saíam em disparada, temendo algum daqueles doloridos disparos de
sal.
Quem conseguia segurar a criançada dentro de casa? Não faltava espaço nos quintais, mas as cercas representavam
uma barreira que todos queriam vencer. Bom mesmo era ganhar as ruas, desvendar os segredos ocultos atrás da próxima esquina e perceber, dia a dia,
como as imensas figueiras da Avenida Afonso Pena ficavam menores diante daquelas pernas que espichavam e dos ombros que se avolumavam.
O Estuário é um bairro novo, criado em 1968, mas pode se orgulhar de um passado repleto de história. Surgiu do
retalhamento do Macuco, que já foi o maior bairro de Santos e herdou muitas de suas tradições. Imaginem só: desde a definição do novo abairramento
de Santos, a Bacia do Macuco e as Casas Populares do Macuco passaram a fazer parte do Estuário.
A Bacia do Macuco sozinha rende assunto que não acaba mais. Lá ficavam atracados barcos que descarregavam areia,
mas sempre sobrava algum canto livre para os moleques exercitarem seus saltos e nadarem. Tudo quanto é criança das imediações aprendia a nadar
naquelas águas, transparentes a ponto de se poder enxergar o dedão do pé no fundo.
Seu Oswaldo Martins, um bom conhecedor de coisas passadas, ainda se lembra que junto à Bacia havia um
chafariz e, bem no meio, um lugar apropriado para os burros beberem água. Naquele tempo, se via muitos cavalos pelas ruas, para desespero dos
cachorros, que se punham a latir feito loucos atrás.
Não se pode mesmo negar a tradição da Bacia, porque qualquer morador mais antigo ainda se lembra dos discursos
acalorados que havia junto a ela nos períodos eleitorais. O pessoal se reunia em frente ao Bar do Rosinha, hoje Bar e Restaurante Tremendão, e
quem mais podia criticar o Governo. Falava-se cada uma que a polícia se enchia de razão e mandava borrachadas nas costas do povão. Isso quando a
coisa não engrossava mais ainda e acabava em tiroteio.
Mais famosos que os comícios, só mesmo os valentões que faziam ponto por ali. Ninguém ousava desafiar aqueles
malandros sempre bem vestidos, com seus ternos de linho branco ou de palha de seda e toda a pose que a condição de valente inveterado exigia.
Os chalés com varandas amplas aos poucos dão lugar a pátios de contêineres e prédios
O Pau-Grande dos passeios e a vida de um lugar onde os chalés proliferam - O local predileto do passeio
da gente do bairro era o Pau-Grande, como ficou conhecido aquele recanto junto às águas do Estuário, na direção do atual Canal 6. Lá havia o
imenso tronco de uma figueira e junto a ele mães e pais de família se reuniam para conversar nas horas de folga.
Para muita gente, domingo era sinônimo de dar uma chegadinha no Pau-Grande, de preferência com roupa nova, bem
perfumada, e com o sapato de ir à missa. Vinham até famílias de outros bairros: o casal, de braços dados, observava tudo, sem descuidar da menina
de vestido rodado e do garoto com seu terninho de calças curtas.
O Porto ainda não ameaçava com o cais e seus armazéns e, ao longo do Estuário, havia várias prainhas. Prainhas
de águas muito claras, onde se pescava 10 quilos de camarão em não mais que quatro horas.
Quem se lembra bem dessas pescarias é seu Manoel Ferreira de Gouveia, que mora desde 1938 na Rua Coronel
Raposo de Almeida. Construiu o chalé onde vive até hoje em apenas oito dias, com a ajuda do carpinteiro Bastos. E, apesar de ser um dos primeiros
moradores da rua, luz elétrica e água encanada não representavam problema porque um japonês, dono de chácara, fornecia mediante pagamento mensal.
Só que a regalia acabou durante a II Guerra, quando o chacareiro teve que fugir às pressas de Santos, como
tantos outros japoneses. Não houve outra saída se não apelar para os lampiões e para o chafariz da Rua Liberdade com Coronel Joaquim Montenegro.
Mas isso como uma medida provisória, porque o pessoal correu para o gabinete do ex-prefeito Ciro Monteiro para pedir providências.
Pois é. Seu Gouveia conheceu um bairro bem diferente. Havia tanto mato que vinha até gente que morava
para os lados da Rua João Guerra buscar lenha. Sempre enfrentando o perigo das cobras, como aquela de 10 metros que seu Gouveia viu certa
vez, em escondidinha à espera de uma vítima.
Esse homem de 73 anos assistiu à chegada de novas famílias e pode-se dizer que teve uma participação direta no
crescimento do lugar. Nas horas de folga como encarregado da antiga Cia. Docas, ajudava a construir os chalés que se multiplicavam e, com isso,
faturava 12 mil réis por hora. Logo tinha em mãos os 50 mil réis necessários para pagar a prestação de seu terreno.
Seu Gouveia cansou de comprar leite na vacaria da Rua Bernardo Browne e de verificar que não sobrara nem
farelo do pão deixado pelo padeiro no portão. Na certa alguém da vizinhança roubava, mas bastava chegar a época de São João para os rancores serem
esquecidos. Quem mais podia mostrar seus dotes de bom fazedor de balões! Centenas deles iluminavam as noites enluaradas de junho e julho e
havia quem apostasse que eram tantos quanto as estrelas no céu.
Os novos tempos e o fim das rivalidades, dos malandros e balões - Hoje não há mais malandragem na Bacia
do Macuco e nem estrelas disputando com os balões o privilégio de brilhar mais. A Escola Pan-Americana, que funcionou por meio século na Avenida
Siqueira Campos, 83, sob os cuidados do professor Oswaldo Martins, cerrou suas portas a 31 de dezembro do ano passado.
A Escola Fraternidade, mantida pelos maçons na Praça Coronel Fernando Prestes, mudou de endereço. Mas quem
estudou no chamado Parquinho na Avenida Afonso Pena (EMEI Olívia Fernandes) nunca se esquece das brincadeiras que se faziam com os meninos
daquela unidade, que eram obrigados a usar calça curta branca e guarda-chuva. Isso mesmo, ninguém entrava na escola sem guarda-chuva, mesmo que o
sol brilhasse a ponto de derreter o asfalto.
Também ficou no passado a famosa rivalidade entre os moleques da Pracinha (Praça Coronel Fernando
Prestes) e das Casas Populares do Macuco. Numa semana, 20 a 30 meninos da Pracinha iam até as Casas Populares armados de pau, estilingue e
muita disposição de mostrar a força do seu punho e o quanto eram doidos os seus pontapés. Acontecia uma pancadaria feia, e na semana seguinte, com
seus curativos encardidos, lá iam os anjinhos das Casas Populares enfrentar os da Pracinha.
O Celso, hoje jornalista, recorda essas coisas com a maior satisfação do mundo, e comenta que as crianças de
hoje não fazem nem metade do que as de antigamente. Mudou o mundo ou mudaram as crianças? O certo mesmo é que vivemos novos tempos e que os
netinhos de seu Gouveia engatinham no chão da casa que ele construiu nos idos de 1938.
Seu Gouveia, hoje avô de oito netos, recorda os velhos tempos
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