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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (X)
Porto disputa espaço com a cidade (6-A)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas.

Em todo esse tempo, como nos cem anos anteriores, o porto foi avançando sobre o território urbano. E essa verdadeira guerra entre o porto e a cidade que o abriga ficou bem clara numa série de matérias do jornal santista A Tribuna, começando com esta matéria publicada em 5 de outubro de 1980:


O porto se alastra para os bairros, imponente, levando no colo uma cidade de 450 mil habitantes. Uma cidade subjugada
Foto publicada com a matéria

A CIDADE SUBJUGADA - 1
Porto e Cidade, ligados por um cordão umbilical

A imagem do cordão umbilical não é exagerada. A dependência que a Cidade tem para com o porto é assim mesmo, umbilical, vital para sua economia. Do porto vêm 25% do orçamento municipal, apenas em ISS recolhido de 20 mil empresas, quase todas direta ou indiretamente ligadas aos serviços portuários. E essa dependência é notada também no campo político. Afinal, em nome da Segurança Nacional, a Cidade perdeu sua autonomia, seus líderes foram substituídos por homens do Governo, e o Município entrou numa fase de retrocesso político. Comércio, pesca, turismo, enfim, vários setores econômicos que poderiam ser mais desenvolvidos acabaram esquecidos. A Cidade está definitivamente subjugada.

Texto: Álvaro de Carvalho Júnior e José Carlos Silvares
Foto: Rafael Dias Herrera

ISS dá 25% do orçamento
(só de firmas do porto)

A afirmação de que Santos depende do porto é incontestável e absoluta. É uma dependência umbilical que, se desligada, trará o caos econômico à Cidade. Afinal, para 1981, só de Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, pago por mais de 20 mil empresas aqui instaladas, a Prefeitura recolherá Cr$ 800 milhões, o que representa 18% do orçamento previsto, de Cr$ 4 bilhões 600 milhões, segundo cálculos do secretário das Finanças, Adílson Bulo. Na verdade, a importância do ISS para o orçamento vai além, e ele pode chegar, como em 1979, a um quarto do total.

Para se ter uma idéia melhor do que representa o ISS, basta citar que das 20 mil empresas santistas que pagam esse imposto, a grande maioria está diretamente ligada aos serviços portuários e que as 20 primeiras empresas da lista (agências de navegação, armazéns gerais e comissárias de despacho) recolhem 25% do total geral.

O ISS, porém, está em segundo lugar na lista de impostos recolhidos pela Prefeitura: em primeiro lugar vem o ICM, transferido pelo Estado, e que deverá recolher Cr$ 900 milhões em 1981. Em terceiro e quarto lugares vêm os impostos Predial e Territorial (também pagos pelas empresas ligadas ao porto) e que, juntos, somam Cr$ 745 milhões. Computados também esses dois impostos e taxas de prestação de serviço, a dependência vai ainda mais além.

Os armários da Secretaria das Finanças guardam volumosos fichários com os números do orçamento do ano passado. As folhas revelam que mais de 20 mil empresas de Santos recolheram Cr$ 232 milhões em ISS aos cofres municipais, o que representou quase um quarto do orçamento, de Cr$ 1 bilhão. Do total arrecadado com ISS, as 19 maiores empresas recolheram Cr$ 42 milhões, ou 23% do ISS de 1979. Essas grandes empresas estão diretamente vinculadas ao porto e os Cr$ 42 milhões de 1979 se dividem entre Cr$ 19 milhões de sete agências de navegação, Cr$ 13 milhões de cinco armazéns gerais e Cr$ 10 milhões de sete comissárias de despacho.

Os mesmos arquivos contam que de janeiro a junho deste ano as mais de 20 mil empresas santistas já recolheram Cr$ 226 milhões de ISS. A previsão do ISS dentro do orçamento para 1980 (Cr$ 1 bilhão 965 milhões) é de Cr$ 320 milhões. Na prática, porém, em vista do que já foi recolhido em apenas seis meses, essa receita deverá ultrapassar, em muito, o que foi previsto. Do total recolhido até junho, as mesmas 19 empresas participam com Cr$ 33 milhões, ou 15% do total arrecadado em seis meses, assim divididos: Cr$ 13 milhões das agências de navegação, Cr$ 13 milhões dos armazéns gerais e Cr$ 7,5 milhões das comissárias de despacho.

As sete maiores agências de navegação, pela ordem e em termos de arrecadação do ISS, são as seguintes: Dickinson, Enasul, Nautilus, Grieg, Wilson Sons, Hamburg-Sud e Moore McCormack; os cinco maiores armazéns gerais: L. Figueiredo, Dibal, Cobec, Granel Química e Cia. Americana; as sete comissárias de despacho: Mesquita, Rodrimar, S. Magalhães, Eudmarco, L. Figueiredo, Deicmar-Haniel e Itápolis.

Caminhões na praia - O que representa, em termos financeiros, para a Cidade, o gasto com a recuperação das ruas esburacadas pelo tráfego pesado rumo ao porto? A questão, do ponto de vista específico da destruição pelos caminhões, é difícil de responder. A Prodesan (que mantém as vias pavimentadas de Santos) não tem um estudo referente apenas a essas ruas, mas informa o que gastou e o que está gastando em todas as ruas da Cidade, embora o prejuízo maior, sem dúvida, refira-se às artérias que dão vazão ao porto. No ano passado, foram gastos Cr$ 8 milhões com a conservação, com a Operação Tapa-Buracos e com a aplicação de lama asfáltica; nos seis primeiros meses deste ano, o gasto já atinge Cr$ 6 milhões.

Avenidas principais, como a Martins Fontes, a Getúlio Vargas, a Afonso Pena, a Pedro Lessa e a Siqueira Campos, entre outras, passam por periódicos reparos, em vista da destruição causada pelos caminhões que servem ao porto. A Avenida Martins Fontes, como informou há dias um técnico da Prodesan, foi construída para uma vida útil de 15 anos, mas nem se passaram 10 anos e já está afundando. Por isso, as ruas João Pessoa e São Leopoldo foram entregues com uma camada de 50 centímetros de asfalto, visando ao desgaste contínuo causado pelos caminhões.

Outras vias asfaltadas que ligam ao porto também sofrem grande desgaste, como no caso das ruas Campos Mello, Silva Jardim, Manoel Tourinho, Batista Pereira, Rodrigo Silva, Luíza Macuco, Xavier Pinheiro, João Guerra, Borges e 28 de Setembro, apenas para citar 10 ruas, situadas em bairros críticos como o Macuco e o Estuário.

Mas a destruição não está restrita aos bairros atingidos pelo porto. Nos últimos dias são vistos com freqüência vários caminhões estacionados nas avenidas da praia, impunes, ou trafegando rumo ao porto, também impunes. Esses veículos deixam a estrada, passam por São Vicente e, sempre beirando a praia, chegam ao cais, pela Ponta da Praia. Um fato que se pode tornar hábito e onerar ainda mais o serviço de conservação das ruas.

A dependência é absoluta

Dizem os adesistas que a partir do momento em que não se consegue lutar contra uma força, a saída é aderir. De certa forma, Santos pode ser enquadrada nesse velho jargão político, pois nos últimos 90 anos não fez outra coisa a não ser admitir os caprichos do maior porto do País. Isso não significa que a Cidade tenha assistido ao seu desenvolvimento pacificamente, mas, nas vezes em que tentou lutar, sofreu severas baixas. Em setembro de 1969, dia 12, a autonomia política do Município foi cassada em nome da Segurança Nacional. Isso porque ele protege e mantém um porto que é responsável por praticamente toda a exportação de manufaturados do País e reúne mais de 35 mil homens por dia, trabalhando ativamente.

Esse contingente de pessoas gerou a criação de quase 17 sindicatos, de categorias diretamente ligadas às atividades portuárias. Os restantes têm, de uma forma ou de outra, relacionamento com o porto, numa demonstração clara de que a Cidade não depende dele apenas economicamente, mas politicamente também.

Portanto, nesses 11 anos não restou outra opção ao trabalhador de Santos, o cidadão comum, a não ser manter o título de eleitor guardado na gaveta, utilizando-o apenas para a abertura de crédito em lojas comerciais. Uma agressão moral para com uma cidade que, proporcionalmente, tem maior número de eleitores do País: exatamente metade da população, ou seja, 240 mil pessoas.

Os índices de cassações sofridas por líderes políticos e dirigentes sindicais foram elevados. Homens que mantinham o controle político das categorias ligadas ao porto foram afastados de seus cargos, enquanto a maioria das entidades era entregue a outros, indicados diretamente pelo Governo. A Cidade descaracterizou-se definitivamente, perdeu as lideranças políticas importantes, entrando em um processo de regressão política, sem perder, entretanto, suas antigas tendências: nas eleições para vereador, deputados estaduais, federais e senador, o partido oposicionista manteve sempre uma supremacia marcante.

Santos já foi conhecida como uma cidade de esquerda, detalhe registrado no livro Subterrâneos da Liberdade, Jorge Amado, onde ele a define como "o porto vermelho". E, talvez por esses pequenos detalhes, a autonomia não passe de uma arma demagógica utilizada pelos interventores que estiveram na Prefeitura nos últimos 11 anos. Todos defenderam - e defendem - a autonomia, mas na realidade nenhum lutou efetivamente por ela.

Tudo isso por culpa do porto, que não dá nada em troca. Essa situação reflete-se na economia santista, já que o Município não consegue criar formas de arrecadação e desenvolvimento independentes. Os projetos foram se multiplicando e, na mesma medida, sendo esquecidos nos gabinetes oficiais. O Vale do Quilombo, situado do outro lado do Estuário, já foi apontado como uma saída, pois lá as grandes indústrias poderiam fixar suas fábricas. Mas não existe uma ligação física entre o continente e a ilha, tornando o aproveitamento dessa área quase impossível, por falta de acesso. Ironicamente, para se chegar ao outro lado de Santos é preciso passar por Cubatão ou Guarujá.

A solução seria a construção de uma ponte atravessando o Estuário, até a margem esquerda do Rio Sandi. Porém, essa é uma responsabilidade impossível de ser assumida, devido aos enormes investimentos que obrigatoriamente seriam aplicados na obra.

O projeto de desenvolvimento do Distrito Industrial, criado na administração do interventor general Bandeira Brasil, continua engavetado. Indústrias não foram instaladas no Quilombo, e as esperanças de uma reviravolta nessa situação parecem remotas.

Enquanto isso, o porto foi-se desenvolvendo, impondo-se diante da apatia da cidade. Agora, está atacando do outro lado, em Guarujá, como se Santos não tivesse mais nada a oferecer.

A dependência econômica gerada pelo porto provocou o esquecimento de outras atividades que poderiam ter crescido. Santos é uma Estância Balneária, tem boas praias (apesar de poluídas, inclusive pelos dejetos despejados pelo porto), e mantém exposto, em suas ruas e casas, um dos capítulos mais importantes da história do País. Mas esses dois motivos não foram suficientemente fortes para que as administrações municipais se preocupassem em desenvolver uma infra-estrutura turística que pudesse ocupar um espaço econômico ainda em aberto. Aqui ainda se pratica um turismo amador, provinciano, com os comerciantes e as autoridades lutando em lados diferentes.

O melhor exemplo dessa situação é a Secretaria de Turismo, que não conhece a capacidade hoteleira da Cidade, não sabe e nem tem idéia do tipo de turista que vem a Santos, e até hoje foi incapaz de organizar uma programação anual bem feita. Limita-se a acontecimentos esporádicos, com pouca divulgação em outros municípios, sem um trabalho de profissionais, oferecendo o turismo como excelente produto de consumo. Nos últimos três anos, passaram pela Sectur cinco secretários. Uma decorrência clara da falta de autonomia política.

Nos outros setores, a situação não é diferente. O comércio vive épocas negras, e a pesca enfrenta uma crise financeira que provocou, há pouco tempo, uma greve dos pescadores de sardinha, inconformados em trabalhar sem conseguir lucros. As decisões governamentais que interromperam o movimento apenas atenuaram a situação, e provavelmente em pouco tempo os pescadores estarão enfrentando os mesmos problemas. O mercado cafeeiro, que representa boa parcela, senão a maior, do orçamento da União, não consegue sobreviver sem o porto, por onde é escoada toda a produção brasileira a países consumidores.

A maioria de cidadãos santistas trabalha no porto; as 20 mil empresas que existem na cidade têm ligação direta ou indireta com ele, e 25% do Imposto Sobre Serviços dessas empresas reforçam o orçamento municipal anualmente. O porto deixou de ser mais uma atividade econômica da cidade, passando a manter um controle abrangente, incontrolável. Mas a recíproca não é verdadeira, graças a um decreto imperial que isenta a Companhia Docas de Santos de todos os tributos municipais. Passados tantos anos, chega-se à conclusão de que a Cidade foi dominada politica e economicamente, com poucas esperanças de modificar esse comportamento. Fica apenas uma pergunta: será que valeu a pena?

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