A OCUPAÇÃO da Zona Noroeste começou ainda na década de 20.
Desde então, o desenvolvimento é visível
Foto: Nirley Sena, publicada com a matéria
DESENVOLVIMENTO
No começo era só um mangue
Primeiros habitantes da Zona Noroeste podem ser chamados de desbravadores,
tamanha a quantidade de desafios que enfrentaram
Rivaldo Santos
Da Reportagem
No começo, a Zona Noroeste era um imenso manguezal,
cortado por rios que invadiam as casas em dias de chuva ou maré alta. Não havia água, luz ou qualquer sinal de infra-estrutura. Tudo era precário, a
começar pelas moradias, pequenos chalés fincados em terrenos aterrados, onde passavam riachos com fartura de peixes.
Os primeiros moradores podem ser chamados de desbravadores, tamanho o número de
adversidades que tiveram que enfrentar. A paisagem era bem diferente da atual. Nas extensas faixas de mangue, alagadiços e terras arenosas, os
bananais dominavam, espalhando-se em uma exuberante vegetação tropical.
Em uma natureza ainda selvagem, do início do século passado, a fauna local era um
recanto de animais silvestres, como veados e gambás. Os mais antigos juram de pés juntos que jacarés e onças apareciam por lá.
Exageros ou não, a história da ZN é recheada de relatos curiosos e de declarações de
amor por uma região que não pára de crescer. Apesar das inúmeras dificuldades, que ainda persistem, como o eterno problema de enchentes, é difícil
encontrar quem pensa em mudar de bairro.
De bonde - A história da Zona Noroeste começou, de fato, na década de 20, com a
implantação da linha de bondes da Companhia City. Na época, os burros puxavam os carros. Mais tarde, os animais foram
"aposentados" com a introdução do sistema elétrico.
O povoamento incipiente ocupou uma área conhecida como "atrás dos morros", em
referência aos morros que cercam a região. Para chegar ao inóspito lugarejo, o bonde saída do Largo do Rosário (atual
Praça Rui Barbosa) até o Matadouro Municipal (atual Centro Educacional e Esportivo do Sesi, na Avenida Nossa Senhora de Fátima).
A linha passava pelo Bairro Chinês (atual Valongo, na
Avenida São Leopoldo) e Saboó (Cemitério da Filosofia), sempre contornando os morros. Só mais tarde, os trilhos da chamada "Linha 1" chegaram a São
Vicente, pela Avenida Antônio Emerich.
Como os trilhos se limitavam às avenidas principais, o acesso aos atuais bairros
Jardim Santa Maria, Jardim Bom Retiro, Jardim Rádio Clube, entre outros, tinha que ser feito a pé. Em dias de fortes chuvas, o barco era o meio de
transporte mais apropriado.
Boi na rua - O povoamento da região se intensificou na década de 50, quando
muitos nordestinos vieram trabalhar no pólo industrial de Cubatão, que estava se formando com a construção da Cosipa.
Sem escolaridade e qualificação profissional, os migrantes tinham no cais santista um promissor mercado de trabalho.
Entre tantas curiosidades sobre a região, o Matadouro Municipal
é o que melhor retrata os primeiros conflitos do cenário bucólico com o progresso.
O prédio era o principal estabelecimento do povoado. O gado chegava de trem, em vagões
da São Paulo Railway (SPR), que mais tarde foi incorporada à Rede Ferroviária Federal. Por um
desvio na atual Rua Bóris Kauffmann, no Saboó, onde havia um entreposto, os bois seguiam para o local de abate, posteriormente arrendado pela
Prefeitura na década de 60.
Durante o transporte, feito por ruas e avenidas, alguns animais desgarravam da manada,
indo se abrigar em residências. De laços em mãos, como cowboys americanos, os funcionários disparavam a cavalo para laçar os bois fujões. O
trânsito também se complicava quando um dos animais se desembestava no trânsito.
Dez anos depois, o matadouro foi desativado, mas o nome até hoje identifica o local. O
fim da era "boi na rua" marcou o início da explosão demográfica na região. Foi nessa época que houve a desativação dos bondes e a remoção dos
trilhos para a duplicação da Avenida Nossa Senhora de Fátima, via que se transformou em principal corredor de ônibus.
Ironicamente, a primeira grande obra na Zona Noroeste "beneficiou" apenas os que já
não moravam mais lá. Foi o Cemitério da Areia Branca, inaugurado em 1953, pelo então prefeito Antônio Ezequiel Feliciano.
O alargamento da Avenida Nossa Senhora de Fátima
foi um indício do rápido crescimento
Foto: Evaristo Pereira de Carvalho, de A Tribuna, em 20 de
janeiro de 1966,
republicada com a matéria
Mais velhos chegaram na infância
Maria Auxiliadora é uma das habitantes mais antigas da Zona Noroeste. Chegou no início
dos anos 50. Era uma menina. Veio acompanhada dos pais, que abandonaram Aracaju (SE) em busca de uma vida melhor. Daquele período, tem boas
recordações. E também lembranças de momentos difíceis, como a enchente de 1969, evento que arrasou as precárias moradias do povoado.
Acostumada com as mazelas geradas pela pobreza, a família de dona Maria não se
desanimou com o que encontrou. "Tínhamos que andar mais de um quilômetro para pegar água em uma torneira em São Vicente".
Por ironia do destino, só havia água em abundância em dias de chuva forte. A enchente
do final da década de 60 foi uma das dezenas que presenciou. "Era tanta água que a gente tinha que sair de casa de barco".
Lucinéia Marques de Lima Souza é outra que vive na ZN há mais de quatro décadas.
Paraibana de Patos, a moradora considera "maravilhosa" a região. Da infância, restaram boas recordações do lugar. "Aqui era uma festa. A gente
brincava no morro e pegava peixes no rio", conta Lucinéia, apontando para o poluído Rio dos Bugres, hoje dominado por palafitas.
Em 1953, período de pós-guerra, um grupo de retirantes deixou a pequena Canhotinho
(PE). A família Camboim estava entre os migrantes que foram parar na Areia Branca, bairro que já abrigou uma das maiores favelas da Cidade.
Todos vieram em busca de empregos. "Os únicos disponíveis eram na antiga Companhia
Docas e na Refinaria da Petrobrás", relata Sonival Camboim, hoje dono de uma mercearia no Dique da Vila Gilda.
Acostumado com as enchentes, Camboim já deixou de acreditar na solução do problema. "O
povo vive em um lugar que naturalmente é da água. E ela, mais cedo ou mais tarde, vai ocupar o seu lugar".
Quando o aposentado Sílvio Roupa decidiu sair do confortável Bairro Campo Grande para
morar na Zona Noroeste, os amigos o chamaram de louco. Porém, a vontade de deixar a "rotina neurótica" do apartamento prevaleceu. A mulher só deixou
de reclamar quando conheceu a casa, no Jardim Bom Retiro.
Hoje, 30 anos depois, Sílvio é um fervoroso defensor da região. "Tenho um apartamento
em frente à praia, mas não troco a minha casa por nada", diz o aposentado, que atua como voluntário em uma ONG que presta assistência a crianças e
jovens da ZN.
Ladrilhagem e arborização do canteiro central mudaram a paisagem da principal avenida
Foto: arquivo, 30 de agosto de 1966, publicada com a matéria
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