Quem conheceu Alemoa de outros tempos, na certa se admira quando depara com aqueles
enormes armazéns e tanques de estocagem de produtos químicos. Pouco restou daquele bairro, que era bem maior e abrigava em seus limites sítios,
capinzais, granjas e chiqueiros. Em meados da década de 20, moravam na
Alemoa umas 200 famílias: todos se conheciam, freqüentavam o saudoso Alemoa Futebol Clube e participavam de bailinhos nos fins de semana. Os
vizinhos estavam sempre dispostos a ajudar uns aos outros, ninguém ficava esquecido em horas de apuro e não se temia roubos ou violências. Mas,
tudo se acabou com a abertura da Via Anchieta, que expulsou a quase totalidade das famílias.
Trata-se de um dos maiores bairros de Santos, mas, por ser uma zona industrial, vivem
lá pouco mais de 2.100 pessoas, a maioria concentrada no Jardim Piratininga, núcleo de 230 casas populares financiadas pelo BNH.
Os espaços verdes restantes desaparecem aos poucos para dar lugar a novas empresas e o
já comum trânsito de caminhões pelas ruas só tende a aumentar. Enquanto cresce o número de bares onde motoristas e operários conversam e tomam
pinga, aumenta a quantidade de homens, mulheres e crianças que diariamente reviram o lixão da Prodesan e catam restos para não morrer de
fome.
Quem conheceu a Alemoa daqueles tempos se admira de vê-la crescer e se consolidar como
um bairro industrial. No porto onde fundeavam barcos de pescadores, estão atracados navios carregados de produtos químicos e, nas ruas, o trânsito
de caminhões é bem maior que o de pessoas ou automóveis.
Lixão é um meio de vida para homens, mulheres e crianças
"Que louco, está apostando corrida com o trem!"
Todo mundo corria para olhar. As crianças esqueciam a brincadeira de roda: as mães largavam o almoço no fogo; os
respeitáveis avôs punham o jornal de lado, abanavam a cabeça e levavam a mão ao chapéu, num gesto de desaprovação.
Passado o primeiro susto, um olhava para o outro, como que indagando onde andava o fiscal municipal. Este, que
não era bobo nem nada, chegava de peito estufado, mostrando que a chapa estava anotada direitinho em seu caderninho. Viu tudo, não do posto de
observação, mas do meio do bananal, onde ficou escondido o tempo todo.
Os carros tentando vencer os pedregulhos e os buracos da Avenida Bandeirantes, os fiscais de tocaia, os
capinzais e chiqueiros, hoje são apenas imagens que restaram da Alemoa de outros tempos. Cenas e recordações que não se apagam da memória de
antigos moradores, como seu Martins, Zé Cuncum, Brasílio, Zézinho e Guilherme.
Saudade? Como esquecer a vida boa daquela comunidade unida, as festas, os bailinhos de fim de semana? Como
esquecer de gente como os carroceiros Manoel Antunes e Manoel de Oliveira, os Madeira, José de Oliveira, Manoel Gaspar, Carlos Peres, Marcelino,
Abel Rodrigues, Manoel Peres, Gregório Vargas e muitos outros?
O bairro era bem maior e os vizinhos unidos, como uma grande família - A Alemoa dos primeiros anos do
século XX tem muito pouco a ver com a de agora. Para começar, era bem maior: o Rio Casqueiro estabelecia o limite, só que, tanto as áreas à
esquerda como à direita da Avenida Bandeirantes pertenciam ao bairro. Muita terra, coisa para se perder de vista.
Apesar de todo espaço livre, as ruas se resumiam a cinco: A, B, C, D e Particular Emmerich (hoje Boris Kauffman).
E imaginem: uma estrada pedregulhenta e cheia de buracos como a Avenida Bandeirantes se destacava como a principal via de circulação. A Via
Anchieta chegaria muito tempo depois.
Umas 200 famílias moravam na Alemoa, a maioria delas em áreas que foram fragmentadas para formar os bairros
Chico de Paula e Jardim São Manoel. Do lado oposto, já ocupado pelas primeiras indústrias, viviam poucas: alguns pescadores, os empregados das
próprias empresas, em casas construídas por elas.
Muitos chalés, poucas moradias de tijolos, muitos bananais e pastos. E uma comunidade unida de fazer gosto. Tudo
como se formasse uma imensa família, como costuma dizer dona Olinda de Oliveira Matias. Ninguém temia assaltos ou furtos, e até se podia dormir
com janelas e portas abertas.
Só mesmo a malária tirava o sono das pessoas. Doença danada, volta e meia fazia novas vítimas no bairro. No
mais, o pessoal reclamava da falta de condução: para pegar o bonde 1, o único que passava nas imediações, era preciso caminhar um quilômetro. Nada
pior do que percorrer toda essa distância sob sol ou chuva forte.
Vez ou outra, chegava alguém na venda de seu Antônio F. Lourenço contando que perdeu o bonde por questões
de segundos. Qual morador antigo não se lembra dessa casa comercial? Era o ponto de reunião e sede do Alemoa Futebol Clube. Quando tinha baile, o
sanfoneiro tocava a noite inteira, sem tempo para descansar.
E nessa famosa casa do seu Antônio funcionava um posto fiscal municipal, que controlava a velocidade e o
movimento dos carros entre Santos e São Paulo. Em 1924, ficaram retidos lá muitos veículos levando gente que pretendia fugir da revolução.
Dos bares de antigamente, restou só um para reunir velhos moradores - Também não dá para esquecer a
biboca do português Pinheiro. Ele costumava receber marujos amigos e atendia-os de modo bem lusitano, contando-lhes piadas apimentadas. Pros
mais chegados, vendia uma cachaça especial, que vinha do Sítio do Sandi. Sabia muitas coisas esse antigo comerciante, que amava sua tendinha e seu
reduto perdido entre o mangue e o lixão. Quando ficava bravo, gesticulava e reclamava tanto que todos achavam graça do seu jeito. Muitos
provocavam só para ouvi-lo.
Tinha um outro bar, o do seu Barbetes, que também passou para a história da Alemoa. Foi lá que surgiu uma idéia,
dessas que logo ganham muitas adesões: o pessoal fez um círculo na Avenida Bandeirantes, enfeitou com flores e com as bandeiras brasileira e
portuguesa, e parou o carro que vinha de São Paulo para Santos, onde viajavam ninguém menos que Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Muita
movimentação, muita festa e a solene saudação de Maria das Pastorinhas e de outros moradores do bairro.
O único bar remanescente daqueles velhos tempos é o do Zézinho, agora aos cuidados do sobrinho Manoel
Matias. A família Matias continua por lá, cuidando das terras herdadas de Antônio Francisco Lourenço. Seu Antônio até deu nome a uma rua,
pois a duras penas ajudou a acabar com o mangue que impedia o aproveitamento de muitas áreas.
O Bar do Matias continua sendo freqüentado pelo Guilherme, pelo Zezinho, Zé Cuncum e Brasílio,
gente da antiga que mora por perto. Se começam a recordar épocas passadas, não falta assunto.
Logo vêm à memória a padaria de seu Manoel Dias, que garantia pão quente todas as noites; os bailes com
música ao vivo; o porto onde fundeavam barcos de pescadores e de moradores das Neves e do Jurubatuba. E como esquecer a noite em que a Alemoa
acordou em pânico, num ano qualquer da década de 1930? Uma mina marítima alemã, resquício da I Guerra, estava guardada no armazém de inflamável da
Cia. Docas e explodiu sem que ninguém esperasse. Imaginem a correria...
As primeiras indústrias e o fim de um núcleo com a abertura da Anchieta - Enquanto o núcleo residencial
levava sua vidinha pacata, o lado oposto da Alemoa se movimentava ao ritmo de indústrias. Primeiro, a antiga Companhia Docas instalou um armazém
de inflamáveis. Mais tarde, em 1918, o Governo implantou uma cooperativa de algodão: as carroças circulavam de um lado para outro, carregando o
produto.
Mas, a cooperativa durou pouco tempo e o armazém que ocupava passou para João Jorge Figueiredo, que chegou até a
construir casas para seus operários. O terceiro armazém de que se tem notícia (ano de 1920) pertencia à firma Bento e Souza. Posteriormente foi
transferido para o grupo Matarazzo (1922).
E, ao contrário do que se possa pensar, a indústria não determinou mudanças no bairro, pelo menos não em outras
épocas. Um belo dia, surgiram rumores de que a Alemoa seria cortada por uma nova estrada, que ligaria São Paulo a Santos. Muito se falou a
respeito, pouca gente acreditou.
Até que, em 1953, a Via Anchieta já era uma realidade. Passou justo sobre o núcleo de moradores e o bairro
residencial praticamente deixou de existir. Cada um partiu para um canto, alguns se ajeitaram na Areia Branca.
Poucos, bem poucos, puderam ficar.
O Bar do seu Matias já não fica na Alemoa,
mas continua sendo ponto de encontro de antigos moradores
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