É sempre assim: quando o pessoal do Chico de Paula se junta para falar sobre seus
problemas, não pára mais. E os casos mais tristes são contados pelos moradores da Vila Alemoa, uma favela que em seis anos ganhou centenas de
barracos e quase 10 mil pessoas. Esse contingente chega a ser 15 vezes maior do que a população restante do bairro, calculada em 631 habitantes.
Os barracos se multiplicam sobre o mangue malcheiroso e há muitos casos de crianças que foram roídas pelos ratos que infestam a área.
Providências por parte da Prefeitura? Nem as mínimas possíveis, porque os favelados
continuam reivindicando a reforma do Caminho São Jorge, único acesso à maior parte dos casebres. E pensar que o prefeito Paulo Gomes Barbosa fixou
como prioridade máxima de sua administração a melhoria das condições de vida das camadas de baixa renda...
As duas únicas praças do bairro não são urbanizadas, e os dois clubes - Anglo e Serrano
- não têm campo de futebol. Mas, em compensação, o antigo Matadouro passa por grandes reformas para se transformar em um centro educacional,
assistencial e esportivo. O conjunto garantirá um pouco de lazer para os moradores, que recordam com saudades as boiadas seguindo pelas ruas, as
chácaras e o Rio São Jorge (Rio do Matadouro, como eles chamam) cheio de peixe, marisco e caranguejo.
Barracos se multiplicam sobre os mangues de um bairro esquecido pela administração pública
Naquele dia voou sebo para tudo quando foi lado. Sempre
acontecia o mesmo: o pessoal de escritório passava no bonde rápido, erguia bem a cabeça, lançava um ar superior e não deixava em paz os
trabalhadores do Matadouro, que almoçavam no canto da rua, marmita na mão. Uns se divertiam mexendo com a filha do capataz geral, o Dídimo, só que
nem de leve imaginavam o que os esperava.
As velhas histórias surgem entre gestos e expressões faciais
Dídimo era
desses homens bravos, que falam grosso o tempo todo e não levam desaforo para casa. Não chamava nenhum de seus subordinados pelo nome: vivia
gritando bandido para cá, bandido para lá.
Pois essa história dos grã-finos de escritórios importunarem sua filha não podia mesmo resultar em boa coisa.
Vai que uma manhã ele se encheu de razão e sentenciou: "Hoje vocês vão ficar de prontidão. Quando o bonde passar, faz parar".
Não resta dúvida: era a grande oportunidade de vingança. Afinal, nada mais cômodo do que passar de bonde e
chamar todos de "matadores de boi", de modo muito pejorativo, sem que esses pudessem se defender.
Como diz o ditado popular, juntou a fome com a vontade de comer e a confusão não poderia ter sido maior. E sebo
não faltou para lambuzar a roupa de muitos daqueles almofadinhas.
Luís Dias de Sá, que não só presenciou como participou do acontecimento, garante que foi a maior guerra do
mundo. E uma guerra que terminou bem para o lado dos trabalhadores: acabaram-se as brincadeiras e o motorneiro nem se atrevia a parar perto do
Matadouro. Pelo contrário, imprimia a maior velocidade possível.
As velhas histórias surgem entre gestos e expressões faciais
O velho Matadouro e as histórias que supersticiosos contam - Morador do Chico de Paula há mais de 35
anos, "seu" Luís até hoje se diverte contando esse caso, um dos muitos que ocorreram nos seis anos em que trabalhou no Matadouro. O sorriso só
desaparece quando relembra a Segunda Guerra, no sentido exato da palavra e sem graça nenhuma. Varou muitas madrugadas limpando as carnes que
seriam mandadas para os Aliados, no exterior. Os homens até suavam dentro da câmara fria de tanto trabalhar. Tempo duro!
E se Luís Dias de Sá enfrentou situações difíceis, imaginem o que Moacir Bertoldo Azevedo passou nos 26 anos em
que trabalhou na seção de Miúdos, mexendo com água quente e fria ao mesmo tempo. E pensar que começou ainda garoto, logo que trocou as calças
curtas pelas compridas!
E não dá mesmo para negar. A história do Chico de Paula tem muito a ver com o velho Matadouro. Ele deu nome ao
caminho que é hoje a Avenida Nossa Senhora de Fátima e ao seu redor se fixaram os primeiros moradores.
Superstições não faltam e muitos atribuíam os acidentes que aconteciam em frente não à curva acentuada, mas ao
fato de ali ser um abatedouro de animais. Dizem por aí que lugares onde há muito sangue atraem desgraças. O certo é que até hoje muitos evitam
passar por lá.
Outros vão mais longe: afirmam que em noites claras surgem sombras de bois diante da lua e ecoam no ar lamentos
tristes. É o que está na boca do povo, mas nenhum morador confirmou ter visto ou ouvido qualquer coisa do tipo.
Quem mora por lá prefere falar sobre coisas não tão estranhas e o Noé se apressa em dizer que um dia conseguiu
desprender o reboque do famoso bonde 1, que ia para São Vicente. O veículo seguiu e quando o motorneiro deu por si o reboque tinha ficado para
trás. Até hoje o Noé se orgulha do feito.
Era um moleque desses que tudo sabe e tudo vê, e por causa disso quase se deu mal uma vez. Quando o Morro da
Caneleira despencou sobre o Chico de Paula, por pouco não ficou soterrado.
De sábado para domingo aconteceu a primeira tragédia. Pedra e barro desabaram em tal quantidade que atingiram
até as margens do Rio São Jorge. Barracos e gente no meio, tudo uma coisa só, lá e em outros bairros de Santos. Corria o fatídico ano e 1956.
No domingo à tarde o Noé pegou sua bicicleta e foi ver de perto. Dia chuvoso, lá estavam o então governador
Jânio Quadros e o ex-prefeito Antônio Feliciano, equipados com capa e guarda-chuva e chorando, como exigia a ocasião. Quando terminou a vistoria,
Noé voltava para casa e de repente constatou que o morro desabava de novo. Não rolaram blocos de pedra e nem nada. Simplesmente deslizou, como o
açúcar fino que escorrega de uma colher. Muitos curiosos morreram. Foram para xeretar e se deram mal.
Por sorte, o núcleo mais numeroso de casas ficava antes do morro, à esquerda da hoje Avenida Nossa Senhora de
Fátima. O lugar era tão jeitoso que ficou conhecido como Vila Viçosa. Mais tarde, passou a se chamar Chico de Paula e, em 1968, quando se
estabeleceu o novo abairramento de Santos, a área foi incorporada ao Saboó.
Só que os moradores não se conformam com isso: continuam a dizer que ali é Chico de Paula, e, se alguém teima em
dizer o contrário, pegam contas de água e luz para confirmar. Nesses documentos ainda consta a denominação anterior.
As velhas histórias surgem entre gestos e expressões faciais
Pescaria com
puçá num rio que hoje já não tem vida - Moacir Bertoldo Azevedo ainda mora na mesma casa da Rua João Moreira Sales, 68 (antiga Rua Um), para
onde se mudou quando tinha apenas cinco anos de idade. À volta, muito mangue e matagal. À noite, uma escuridão danada, o céu salpicado de estrelas
e o marisco estalando na beira do rio.
Que beleza o Rio São Jorge (que o pessoal chamava de Rio Matadouro) de outros tempos! Quantas vezes Moacir não
tomou banho em suas águas claras e deu bons mergulhos da ponte que ficava logo atrás do Matadouro?
Preciosa Ferreira de Sá, nascida e criada no Chico de Paula, 54 anos de idade, ainda se lembra que o Rio São
Jorge ia dar no lugar onde hoje está o Posto Marilu, logo no início da Nossa Senhora de Fátima.
Peixes? Bom, esses havia em tão grande quantidade que dava até para pescar com puçá. Isso mesmo, com puçá e sem
isca. Bastava meter as pequenas redes na água e puxar em seguida para trazer à tona bagres enormes, bonitos de se ver. Dava também para pescar com
um tipo de alfinetão: era só enfiar no lombo do bicho e lá vinha ele, se remexendo todo.
Hoje, qualquer um pode se equipar com puçá, alfinetão, boa isca ou lá o que seja. Peixes, nem por milagre. Eles
desapareceram depois que aterraram trechos do Rio e indústrias altamente poluentes se instalaram em Cubatão. Já não há mais vida no Estuário de
Santos e o Rio São Jorge, de passado tão glorioso, hoje não passa de um filete de água encardido e malcheiroso. Virou um riozinho muito vagabundo,
onde nem os caranguejos conseguem sobreviver.
Diversões para quem morava ali, só mesmo pescar, tomar banho no rio, jogar uma bolinha aos domingos e acompanhar
a chegada das boiadas. Os animais vinham de trem até o Saboó e depois seguiam a pé até o Matadouro. Eram 200, 300 e o pessoal vinha todo para a
beira da rua olhar. Nessas ocasiões é que se podia calcular quantos moravam por ali. O negócio só deixava de ser divertido quando acontecia um
estouro de boiada. Aí era um Deus nos acuda, gente correndo para todos os lados.
No mais, o pessoal se juntava no Bodeguinha para beber pinga ou ia buscar a branquinha direto no
Morro da Nova Cintra, num dos muitos alambiques que tinha por lá. E nunca faltava assunto quando os homens se reuniam para conversar no Bar do
Maneco, no bar do "seu" Ramos, o Italiano, no boteco do Espanhol ou na Padaria Santa Maria. Quem queria esticar o passeio pegava o
bonde e ia para a Praça dos Andradas, saborear um bom cafezinho no Rubiácea.
Os que vinham de fora estavam sujeitos aos ataques de ciúmes das crianças e adolescentes. A molecadinha subia no
morro e começava a atirar pedras nos visitantes que vinham "roubar" seu espaço. Os namorados das irmãs sofriam muito, a menos que dessem um
dinheirinho para comprar balas.
Muitos bananais, chácaras de japoneses e em cada quintal uma horta e alguma criação. Época de São João eram
aquelas festanças em plena rua, muitos fogos e balões.
Com a população que o bairro tem hoje daria para se fazer festas cinco vezes maiores. Mas os tempos são outros:
cada um está mais voltado para o seu mundo, prefere as cores e o brilho da televisão e fica com medo de sair na rua e ser assaltado. Coisas do
progresso? |