O mangue malcheiroso é uma ameaça constante a essas crianças
Sabe-se lá o que deu na cabeça do seu Eduardo. O
Jardim Rádio Clube tinha apenas uma meia dúzia de moradores quando decidiu montar seu barzinho. Não parecia interessado em grandes lucros e se
conformava em passar o tempo debruçado no balcão à espera dos fregueses, que tardavam, mas não falhavam.
Seu Eduardo vendia dessas coisas que volta e meia a dona de casa precisa comprar, como arroz, feijão,
latas de óleo e uma vassoura para substituir aquela que ficou só no toco. À noite, o movimento sempre crescia: os homens se reuniam para tomar uma
cachacinha e trocar um dedo de prosa.
Carlos Pedro Braga, um dos mais antigos moradores, corria no seu Eduardo quando faltava sal, açúcar ou
outro produto que faz parte do dia-a-dia de uma casa. Também, não havia muitas opções para compras: tão perto quanto o bar, só mesmo a Padaria
Izildinha. Fora esse comércio incipiente e as poucas moradias, o Jardim Rádio Clube era um mangue desses bravos, com mato que não acabava mais.
Os primeiros moradores daquele lugar considerado um fim de mundo permaneceram um bom tempo sem luz elétrica e
sem água. Da luz, até que o pessoal não sentia muita falta, porque. bem ou mal. os lampiões garantiam alguma claridade, e viver sem geladeira e
ferro elétrico não representava algo tão terrível assim. Pior era andar com baldes de água para cima e para baixo o dia inteiro, um sacrifício que
ninguém gosta de relembrar.
O Rio do Bugre não tinha poluição, e sim águas claras e muitos peixes - José Alberto de Luca se deu bem
quando começou a vender lotes no Jardim Rádio Clube, mesmo se tratando de um dos pontos mais distantes da Zona Noroeste, sem condução ou qualquer
outra melhoria. Ele era proprietário de tudo aquilo e não teve dificuldades em encontrar gente interessada nos terrenos, mesmo sendo pantanosos.
Quando adquiriu seu lote, no início da década de 50, seu Carlos Pedro Braga pagou 33 mil contos de réis,
em prestações. Cerca de 10 anos depois, um terreno do mesmo tamanho já custava 150 mil contos de réis, conforme testemunha o morador Alfredo
Almeida. E a valorização aconteceu, mesmo restando mato e mangue nas imediações.
Mais encharcado o Rádio Clube não poderia ser, por causa do Rio do Bugre, que rega boa parte de suas
terras, e dos braços de rio, desses que vão longe em áreas planas. O Rio do Bugre resistiu às mudanças contínuas, só que perdeu a transparência e
a cor azulada. Vive, mas está morto.
Aquino, 24 anos de idade, nascido e criado no Jardim Rádio Clube, sente saudades do tempo em que se pescava
muito peixe bom por lá. Do barco se viam os peixes nadando de um lado para o outro, com seus tamanhos e cores variados.
Não havia mais do que quatro barracos no lugar onde hoje se estende a favela de Vila Gilda, com seus mais de
quatro quilômetros de extensão. E na altura de onde está instalada a sede da sociedade de melhoramentos do núcleo, no Caminho da Capela, moradores
construíram uma capelinha para fazer suas devoções (daí o nome Caminho da Capela, que permanece apesar de a igrejinha não existir mais).
Naquelas imediações, as águas do rio formavam uma prainha gostosa, com uma areia fina que insistia em grudar nos
corpos molhados. Sob a sombra de mamoeiros viçosos, mulheres sentavam-se para conversar e desfrutar do vento bom, constante nos dias quentes de
verão.
E naquele mundo de terra que se divisava à frente, podia-se contar tranqüilamente uns 18 campos de futebol. Está
certo que em dias de chuva mais pareciam charcos, mas de qualquer forma garantiam bons momentos de lazer.
Às vezes, os moleques terminavam as partidas com lama da cabeça aos pés, mas ainda encontravam disposição para
pegar rãs num dos brejos das imediações. Ou então caranguejos, que se multiplicavam tanto quanto os impertinentes mosquitos pólvora. O pessoal se
via maluco com os tais mosquitinhos.
No açougue e no barbeiro, o bate-papo de todos os dias; na praça, futebol - Apesar de o Rádio Clube não
ter saneamento básico, ostentar ruas cheias de lama, com transbordantes valas de esgoto nos cantos, seu Braga costuma dizer que o bairro
"está bom, parece uma cidade". Quem conhecia aquilo tudo como um manguezal, tem até razão quando diz tal coisa.
Agora, ninguém precisa mais caminhar meia hora para pegar condução na Avenida Nossa Senhora de Fátima. E em
termos de comércio, há de tudo um pouquinho. O Supermercado Conquista, o único por aqueles lados, mudou de endereço e ampliou instalações para
acompanhar os novos tempos.
Tão antiga quanto esse supermercado, é a Casa de Carnes Rádio Clube, que há vários anos está sob os cuidados de
seu Reis, um açougueiro brincalhão que conquistou a amizade de todos. "De manhã, juntam-se umas 10 ou 15 mulheres que são o diabo", conta
rindo e referindo-se à mulherada barulhenta que chega sempre no mesmo horário. Dá até para se ouvir a conversa delas do Bazar Santo Antônio, que
fica ao lado.
Enquanto as mulheres aproveitam a ida ao açougue para pôr as novidades em dia, os homens preferem se reunir para
conversar no Salão Jardim Rádio Clube e acompanhar o trabalho paciente de seu Cícero, sempre às voltas com as tesouras e os produtos para o
cabelo e a barba.
Onde também nunca falta gente é na padaria em frente à sede da sociedade de melhoramentos. Quatro linhas de
ônibus têm seu ponto final por perto e em seus momentos de folga, motoristas e cobradores se reúnem lá para jogar baralho. De longe, a gente os
reconhece com suas camisas de listras azuis.
Movimentação tão grande só mesmo na Praça Jerônimo La Terza, que é a única urbanizada do bairro e, por isso
mesmo, disputada por muita gente. Nela o concreto substitui árvores e jardins, mas pelo menos o pessoal pode bater uma bola. Não há opções de
lazer no bairro, e quem quiser tem que criá-las. É o que fez o pessoal da Rua Vereador Álvaro Guimarães: ocupa trecho dela para jogar tacobol. As
partidas começam no domingo, às 9 horas, conforme anuncia a inscrição em um muro.
Seu Antônio (o mais magro, de óculos) reuniu a família na inauguração
daquela que foi a primeira casa de alvenaria do bairro
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