Dizem que em outros tempos a Areia Branca não fazia parte de Santos. Pertencia ao
município vizinho, São Vicente, até que um dia alguém, não se sabe como e nem por quê, arrastou o marco divisório entre as duas cidades metros
adiante. E, assim, aquela área caracterizada por montes de areia branca ficou incorporada ao patrimônio de Santos. Essa é apenas uma das histórias
que se tem para contar desse bairro que, 20 anos após a chegada dos primeiros moradores, ainda não estava urbanizado.
A verdade é que, nas décadas de 1950/60, a Areia Branca não passava de uma grande favela. As
famílias simplesmente invadiram a área, na maioria das vezes com o respaldo de políticos caçadores de votos. Sem contar que o estado e a
Prefeitura tiveram que permitir a ocupação quando da abertura da Via Anchieta (e conseqüentes expropriações na Alemoa) e da queda dos morros, em
1956. Conclusão: o lugar virou um emaranhado tão grande de barracos e picadas que a tentativa de urbanização se estendeu por anos. Os moradores
não tinham luz ou água, ajudaram a abrir ruas e limparam muitas valas.
Hoje em dia, superado o pior, eles se divertem recordando fatos passados. Imaginem o
que fizeram certa vez: roubaram iluminação pública. Isso mesmo: esticaram fios a partir dos postes do Cemitério da Areia Branca e levaram
eletricidade para suas casas. Logicamente, quando as autoridades descobriram, acabaram com a festa.
Nem a equipe da Prodesan conseguiu fazer o mapa de Areia Branca: se perdeu no
emaranhado de ruas que caracteriza parte da área. Aquelas terras foram invadidas, ocupadas desordenadamente, e a tentativa de urbanizar espaço tão
caótico se arrastou por anos. Há confusão também quanto aos limites de Areia Branca e, como o pessoal do Conjunto Costa e Silva se sente morador
do bairro (embora esteja no Jardim Castelo), A Tribuna incluiu-o na reportagem.
Nas ruas sinuosas, a característica de um bairro sem planejamento
Tudo aconteceu muito depressa, resultado da mistura dos
seguintes ingredientes: uma boa área livre; políticos atrás de votos; muitas famílias que não tinham onde morar, mas que poderiam votar na
próxima eleição; e a omissão da Prefeitura. Em pouco tempo estava formada uma grande favela, naquele lugar descampado e cheio de montes de areia
branca.
O nascimento de um bairro normalmente ocorre com a ocupação racional de áreas previamente loteadas e, de
preferência, dotadas de dois melhoramentos públicos essenciais: água e luz. Pois a Areia Branca, 20 anos depois da chegada dos primeiros
moradores, ainda era um verdadeiro aglomerado urbano, com ruas que mais pareciam picadas.
A favela começou a surgir a partir do final da década de 40, não apenas com o conhecimento, consentimento e
conivência das autoridades, mas com a participação direta delas. Quando da abertura da Anchieta, o Governo transferiu para a Areia Branca as
famílias da Alemoa que perderam suas casas. A ação de políticos dispostos a arranjar votos de qualquer jeito conseguiu inchar o bairro. E,
finalmente, uma grande leva de pessoas chegou em 1956: a queda dos morros deixou um saldo de centenas de desabrigados e a Prefeitura não teve
outra saída se não autorizar a ocupação dos espaços restantes. Foi a oficialização da favela.
As famílias se comprimiram em uma área de aproximadamente 275 mil metros quadrados e dificilmente alguma
dispunha de mais de 65 metros quadrados. Apesar de não haver água, luz ou qualquer outra melhoria, os barracos surgiram da noite para o dia. A
polícia chegava pela manhã e ia fazer o quê? Jogar pai, mãe e a filharada toda no meio da rua?
Por essas e por outras, em 1961 a Areia Branca já tinha pelo menos sete mil moradores. Há quem fale em oito ou
nove mil. Um levantamento feito em 1961, envolvendo 1.088 famílias (num total de 5.547 pessoas) dá uma boa idéia do que era o bairro na época:
havia 2.569 adultos, 589 adolescentes, 1.099 crianças em idade escolar e 1.290 menores de seis anos. Entre os maiores de seis anos, registrou-se
um índice de 1.173 analfabetos, 2.164 alfabetizados, 896 com primário completo e apenas 24 com curso secundário.
Entre as 1.088 famílias, 743 tinham vindo de outros estados, 187 de São Paulo, 112 de Santos e somente 46 eram
imigrantes. Mais: 929 moravam em residências próprias, 69 em alugadas e 90 em barracos cedidos.
Acompanhando esse contingente populacional bem expressivo, no mesmo ano de 1961 já havia no lugar nada menos que
15 empórios, 20 bares, 10 quitandas, seis barbeiros, um açougue e uma farmácia. Faltava apenas padaria.
Coréia e Gonzaguinha, os apelidos para o bairro que tinha muita má fama - Bernardino Paulino da Silva
mudou-se para a Areia Branca em junho de 1949 e uma frase sua deixa clara a situação que se enfrentava na época: "Não tinha esse milagre de um
sofrer menos". Pois é: sofrimento não faltava, distribuído democraticamente entre os moradores.
Esse homem, hoje avô de oito crianças, comprou uma benfeitoria por cinco mil réis. Benfeitoria, aliás, que não
passava de umas forquilhas cobertas com um tipo de lona. Mal parecia uma casa, como ele próprio reconhece. "Seu" Bernardino admite também que dava
até medo de entrar em Areia Branca, com seus bananais, mangues em volta e mato. Mas a necessidade o obrigou a ir para lá: antes assim do que pagar
aluguel no Morro de São Bento, como fazia até então.
A má fama de Areia Branca corria por aí tudo. Recebeu até o apelido de Coréia (alusão à guerra da Coréia), por
causa dos crimes que lá ocorriam. Os moradores não gostavam nada do apelido e se alguém de fora se atrevesse a pronunciar tal disparate entre
eles, "saía com um quente e dois fervendo", como se diz popularmente.
E saibam mais: o bairro tinha policiamento. Quem cuidava dele (e muito bem!) era o Manoel Ovídio, ou
simplesmente Baiano Ruim. Crioulo forte como ele só, não podia ver algum estranho rondando que ia logo tirar satisfação. Se o fulano
afirmasse que morava por lá, ele o acompanhava até a porta de casa para confirmar. Antes, prevenia: "Se você não for daqui, vai entrar no pau".
Quando Baiano Ruim precisava levar alguém preso, tinha que fazê-lo de bonde, porque não havia viatura à
disposição. Dizem que essa figura tão querida ainda está viva, tem uns 116 anos de idade e mora em Aparecida do Norte. Está longe, mas continua na
memória dos moradores.
Afinal de contas, Baiano Ruim ajudou a acabar com a má fama de Areia Branca. E para que o apelido Coréia
não pegasse definitivamente, "seu" Bernardino começou a chamar o lugar de Gonzaguinha. Quando ele e os amigos vinham no bonde 1, que
passava pela Avenida Nossa Senhora de Fátima, faziam o maior alarde: "Vamos descer no Gonzaguinha, vamos descer no Gonzaguinha". E ficou sendo
Gonzaguinha por uns tempos, até que, devido ao cemitério, o bairro ficou conhecido por Areia Branca.
Antigos moradores enfrentaram muito sofrimento, mas acham que valeu a pena
Em lugar dos lampiões e velas, a luz elétrica roubada do cemitério - Em cada uma daquelas ruazinhas de
Areia Branca tem muito do suor dos moradores. Eles abriram caminhos, cortaram mato, limparam valas e viveram anos seguidos sem água encanada ou
luz elétrica. O pior é que o pessoal tentava fazer poços artesianos e deparava com água salobra. Resultado: tinham que ir buscar em outros
bairros. Felizmente, a área não era de mangue. No dizer de "seu" Bernardino, "nunca precisou passar máquina para mexer com o coração da terra".
E se o pessoal já enfrentava condições bem adversas, que dizer quando havia estouro de boiada. Os bois vinham
pelo meio da hoje Nossa Senhora de Fátima, tanto do Saboó como de São Vicente. Quando os animais, por algum motivo, se assustavam, era um Deus nos
acuda.
Mas esses bois tão valentões às vezes se davam mal: atolavam nos mangues do Rádio Clube ou do Jardim Castelo e,
logicamente, não escapavam da faca dos favelados. Era aquela festa, todos comendo churrasco no meio da rua. Quem não se regalava diante de um boi
inteiro para devorar?
Para quem não dispunha de nenhuma melhoria, a instalação de caixas de água e de uma torneira na Praça 817, em
1957, foi uma vitória. Só que era tanta gente para uma única torneira que se formavam filas imensas. E como em toda fila longa e demorada que se
preza, quase sempre tudo acabava em confusão.
Por isso mesmo, o Jaime Rodrigues Barbosa, o conhecido Manga Rosa, tratou de comprar um vasilhame grande,
com capacidade para uns 20 litros, e ia buscar água em Santa Maria ou no Saboó. Pagava 300 réis para trazer a pipa no reboque do bonde, enfrentava
um trabalho danado, mas preferia isso a ver a família na longa fila.
Energia elétrica as famílias conseguiram muito antes do que esperavam, se bem que por poucas horas. É que o
pessoal simplesmente roubou iluminação pública. "Seu" Bernardino conta como foi: "Puseram umas luzes no cemitério, para alumiar os
defuntos. Vai daí que um inteligente foi lá, esticou uns fios e estava com iluminação em casa. E de graça, o que era muito melhor".
Se um fez assim, por que os outros não? Resultado: era quem mais podia roubar eletricidade. Foi aquela
felicidade, a Areia Branca toda iluminada, em festa.
Mas a alegria não durou muito. O Exército, informado do caso, acabou com a farra: destruiu todas as ligações
irregulares e o pessoal teve mais uma vez que apelar para os lampiões.
No tradicional Bar da Escadinha se vende de tudo um pouco
O Bar da Escadinha resiste ao tempo com Getúlio Vargas e tudo - Histórias como essas o Manga Rosa,
Bernardino, Abílio Pedro da Silva e Florêncio Correia de Carvalho - o Flor - relembram quando se juntam no Bar da Escadinha.
Esse bar, aliás, merece menção especial, pois é um dos mais tradicionais de Areia Branca. Tem mais de 30 anos,
pertenceu a José Damasceno Pontes e há 17 anos está sob os cuidados de José Jacó Duarte. É daqueles botecos que tem de tudo um pouco e, entre as
miudezas espalhadas pela prateleira, chama a atenção uma foto de Getúlio Vargas, herança do antigo dono. "Quando ele vendeu isso aqui, deixou a
foto e disse para eu nunca tirar. E aí ficou", explica Zé Jacó, pegando o quadro por um momento para ler a frase do ex-presidente ali transcrita:
"Fostes escravo, mas não serás mais de ninguém".
Em outros tempos, o pessoal dividia a preferência entre o Bar do Damasceno, o Mina Gelada, o Bar da Umbelina e o
Bar do Flor. Ah, o Flor, figura tão conhecida em Areia Branca! Esse sergipano adotou Santos como sua terra, vendeu muito amendoim, tangerina,
milho assado e torrado. Enfim, vendeu de tudo um pouco pelas ruas, até que juntou 30 contos e abriu um boteco "para vender cachaça".
Todos, de avós a netos, sabiam onde ficava o Bar do Flor. Só que um dia o guarda-livros apareceu com uma
novidade: "Ele arrumou uma multa de três milhões não sei onde. O boteco tinha 500 contos. Aí não deu mais, tive que fechar".
Foi o fim do Boteco do Flor, como ele próprio recorda entre risos. Pois é, hoje o pessoal ri do passado, apesar
de ter enfrentado maus pedaços. Os antigos se divertem e gostam de definir a Areia Branca como o melhor lugar do mundo. Afinal, é o lugar que eles
ajudaram a fazer crescer e onde se firmaram como pessoas respeitáveis, capazes de vencer muitos obstáculos.
No Bar da Escadinha, entre as miudezas espalhadas pela prateleira, uma foto de Getúlio
Vargas
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