O Jardim São Manoel só é jardim no nome mesmo. Os jardins que existem por lá não
passam dos limites dos quintais, porque no que se refere a áreas públicas o bairro surge como um exemplo evidente de abandono. Para se ter uma
idéia, as ruas não são asfaltadas e ostentam malcheirosas valas nos cantos. Quando chove, essas valas transbordam, o esgoto invade quintais e
ajuda a formar os lamaçais que se formam nas vias. Cansados de pedir
providências à Prefeitura e ouvirem nada além de promessas em troca, os moradores se encarregam de limpar valas, instalar tubulações de drenagem e
executar outros pequenos serviços que possam diminuir os problemas do dia-a-dia. Todas as praças estão cheias de mato, e nelas insetos, cobras e
ratos proliferam à vontade. Não há creches ou áreas de lazer e os moradores reclamam da falta de policiamento.
Enquanto procuram suportar tanta carência, as famílias relembram que o prefeito Paulo
Gomes Barbosa esteve no São Manoel a 28 de junho do ano passado e declarou que tudo faria para atender as reivindicações. Nessa data, Barbosa
participou da festa de inauguração de uma comporta no dique, feita mediante convênio entre a Prefeitura e o DNOS. A obra serve para impedir
enchentes e representa o que de melhor o bairro recebeu do Poder Público em quase 30 anos de existência.
Alheia aos muitos problemas que afligem o bairro, a criança brinca
Não adianta achar que é exagero: a população do Jardim São
Manoel está mesmo diminuindo. Cansados de enfrentar os inúmeros problemas do núcleo e desiludidos quanto à possibilidade de melhora, os moradores
partem em busca de novas alternativas.
O lugar vive um processo inverso à maioria dos bairros da Zona Noroeste, que têm no aumento populacional uma de
suas características mais marcantes. Também pudera: além de problemático e esquecido pela Prefeitura, fica distante do Centro e é mal servido por
linhas de ônibus.
O Jardim São Manoel disputa com a Alemoa a condição de mais afastado bairro da Zona Noroeste, pois ambos fazem
divisa com Cubatão. O segundo chama a atenção de quem chega a Santos devido aos enormes tambores de produtos químicos que se destacam à distância.
E os que se distraem olhando o distrito industrial nem percebem que à direita há um bairro, cujos limites são dados pela Via Anchieta, Rio
Casqueiro e linha de divisa municipal que sai do quilômetro quatro da estrada de ferro Santos-Jundiaí.
Dispõe de uma área de 75,60 hectares, sendo que 60 por cento dela permanece desocupada. Portanto, o São Manoel
figura como o bairro de Santos com mais espaço livre. Sua população gira em torno de mil moradores, um índice insignificante diante de toda a área
passível de aproveitamento. Só para se estabelecer uma comparação, o Valongo, que é considerado não residencial e ocupa apenas 35,30 hectares, tem
uma população maior: 1.200 pessoas.
Mato e poucas famílias no lugar que seu Oswaldo conheceu, há uns 50 anos
- Quem pode considerar o número de moradores expressivo é seu Otávio dos Santos, que conheceu aquilo tudo quando era só mato, antes mesmo
de existir o bairro. Seu avô, José Rodrigues de Moura, tomava conta de uma antiga usina da Companhia City, na Bandeirantes, e ele passou toda a
infância e juventude por lá.
O vizinho mais próximo, José Biagione, morava a uns 300 metros de distância. Tinha um bananal e seu filho
Oswaldo era o grande companheiro de brincadeiras de seu Otávio. No mais, havia um outro bananal, do Manoel Marques Canoilas, a vacaria
de um homem que vendia leite na Cidade, e a venda de seu Antônio Francisco Lourenço, que avançava sobre terras da Alemoa.
Como toda criança que cresce solta, com tanta área livre ao redor, seu Otávio não errava um alvo com seu
estilingue de estimação. Munido de sua arma, se embrenhava no mato para descobrir coisas novas. Energia para explorar tudo aquilo não lhe
faltava, pois todos os dias tomava pelo menos uma caneca de leite de cabra.
O avô criava umas cabras de raça holandesa, que garantiam um litro e meio de leite por dia cada uma. Quando
davam cria, nasciam três filhotes. Os machos invariavelmente iam parar na panela de dona Maria Encarnação (avó de seu Otávio), numa data
comemorativa qualquer.
Vez ou outra o garoto Otávio ouvia dizer que haviam matado um veado ou uma jaguatirica no meio do bananal.
Gambás viviam correndo de um lado para o outro e os lagartos ficavam às voltas para pegar as goiabas que despencavam das inúmeras goiabeiras que a
a família exibia no quintal. Seu Otávio fazia a maior festa quando conseguia matar algum lagarto em companhia do avô. E sempre voltava para
casa com o ar mais satisfeito do mundo quando conseguia pegar rãs bem graúdas nos mangues das imediações.
Para jogar bola, seu Otávio tinha que se deslocar para onde é hoje o Jardim Piratininga, pois integrava o
grupo de atletas do Esporte Clube Flor do Cedro. O pão vinha de Cubatão, e ele ainda se lembra muito bem que, com 110 mil réis, a avó fazia
compras para o mês inteiro, na Casa Amado, na Rua São Bento.
A escola ficava distante como ela só: estudava no Grupo Escolar Olavo Bilac, que ficava na Rua Dom Pedro II,
onde atualmente funciona a Caixa Econômica Estadual. Pegava os ônibus da Companhia Geral de Transportes (CGT), que passavam na Bandeirantes de
hora em hora, e pagava 20 mil réis por mês, isso com o desconto especial concedido pela empresa para os escolares. E como se esquecer dos
motoristas Joaquim Sérgio e Tony, que trabalhavam na linha?
Não se queixa nem um pouco de ter passado a infância num local tão isolado. Pelo contrário, sente pena dos
netos, que são obrigados a viver em apartamentos. Os tempos são outros, não resta dúvida, pois naquela época o avô ganhava 400 mil réis por mês,
com direito a casa, água, luz, lenha e carvão. A avó ganhava outros 30 mil réis como telefonista.
Como se não bastasse, o avô tinha um Ford modelo T à disposição. Conserva até hoje a carta de motorista dele,
onde está bem claro que o documento só lhe dava direito a dirigir automóveis da marca Ford...
Não faz muito tempo: para se chegar lá, era preciso ir a Cubatão - O Jardim São
Manoel começou a surgir em fins da década de 1950. Lá estava o tratorista Avelino José de Oliveira abrindo ruas, executando serviços de
terraplanagem. Logo, começava a venda dos primeiros lotes. E, para homenagear o genitor, Manoel de Souza Varella, os irmãos Varella deram seu nome
ao lugar.
Seu Vavá diz que o lugar já foi melhor
Manoel
de Souza Varella nasceu em Portugal, veio muito jovem para o Brasil e a princípio trabalhou como caixeiro-viajante na firma de um tio. Chegou
a Santos em 1935 e, com o Banco do Comércio e Indústria de São Paulo, fundou a Cia. de Armazéns Varella, que se tornou uma das principais
organizações da praça. Retirou-se da firma em 1940 e passou a exercer atividades no ramo imobiliário.
Apesar de já ter ares de bairro no final da década de 50, o Jardim São Manoel ficou praticamente isolado até uns
seis anos atrás. Vejam o absurdo: para se chegar até ele, de automóvel, era indispensável passar pelo Casqueiro, no município vizinho de Cubatão.
Lá se fazia o retorno para pegar a pista descendente da Via Anchieta, a única que dava acesso ao núcleo.
Desde a abertura da Marginal da Via Anchieta, ficou bem mais fácil chegar-se lá. Só que, para se atingir a
Marginal, é obrigatório passar pela Rua Bóris Kauffmann, no Chico de Paula, que leva a fama de ser uma das piores vias de Santos. Está toda
esburacada, permanentemente cheia de poças de água, e ninguém se arrisca a desenvolver velocidade superior a 20 quilômetros por hora. Os
pedestres, além de não conseguirem escapar dos buracos, tomam banho de lama e fazem malabarismos para escapar dos enormes caminhões que circulam
por ali.
Não é à toa que o pessoal diz que o Jardim São Manoel sobrevive aos trancos e barrancos. Dos primeiros
moradores, poucos permanecem lá até hoje: a maioria desistiu de acreditar em seu desenvolvimento.
A primeira casa a surgir naquele descampado foi a de dona Conceição, na Rua Coronel Feliciano Narciso Bicudo,
esquina com Abel Simões de Carvalho. Atualmente está oculta atrás de enormes muros amarelos. Logo, seu Adolfino, já falecido, começou a
levantar a sua, pouco antes de Lorival Evangelista dos Santos, ou simplesmente seu Vavá, iniciar aquela que seria a terceira residência do
bairro e onde vive até hoje.
Seu Vavá acha que o bairro já foi melhor e reclama providências
- Aquele moreno alto, bem falante, conhecido de todo mundo, gosta de recordar. Corria o ano de 1958 e trabalhava como ajudante de caminhão na
empresa Líder. Um dia, seguia com o Augusto para São Paulo e notou que as goiabeiras que orlavam a pista estavam carregadas. Pararam para pegar
algumas goiabas e, por entre os galhos, seu Vavá viu um gramado bonito, como um campo de futebol bem cuidado. Na mesma hora assegurou:
"Augusto, vou comprar um terreno aqui".
E o entusiasmo não foi passageiro. Naquela mesma noite, procurou o Maneco, que andava doido para comprar seu
barraco lá no Morro do São Bento. Fez negócio com o homem e, com o dinheiro em mãos, tratou de dar entrada no terreno. Não se esquece: 30 contos
de réis, quantia bastante razoável para a época. Mas seu Vavá achou que valia a pena.
Aos poucos, levantou a casa. E, como os loteadores não deixavam construir moradias de madeira (o bairro não tem
nenhuma), seu Vavá passou bons apertos. Quando mudou-se, não havia água e nem luz, mas essas melhorias chegaram três meses depois. Em 1968,
ele e tantos outros acabaram de pagar o terreno e, para surpresa de todos, a família Varella não passou a escritura definitiva. A questão se
arrasta há anos e a luta pela liberação do documento é apenas mais uma na longa lista de reivindicações do bairro.
Seu Vavá costuma dizer que o São Manoel de uns 20 anos atrás era bem melhor. Pelo menos, logo na entrada
havia uma praça urbanizada com fonte luminosa e muitos peixinhos coloridos, coisa bonita de se ver. E mais, a família Varella mantinha uma turma
de homens para fazer a limpeza de valas, tapar os buracos das ruas e outros serviços do tipo.
Depois que a manutenção passou a ser competência da Prefeitura, o lugar entrou no mais completo abandono. A
fonte luminosa de que o pessoal tanto gostava foi-se estragando e, como nunca passou por reforma, acabou-se de vez. E a atual Praça Antônio
Guilherme Gonçalves, onde ficava, agora ostenta um matagal com mais de um metro de altura, numa repetição do que se vê em duas outras praças.
Virou depósito de ferro-velho e a molecada já pescou até traíra na via que passa junto a ela. Sapo e cobra
proliferam à vontade e alguns apostam que, se procurar direito, pode-se até encontrar algum jacaré por lá.
Pois é, seu Vavá, Isso não representa simplesmente um sinal dos tempos... |