Reprodução de trecho da matéria original
Medicina, médicos e clientes
(Aos drs. Oscar Santos Dias, Leôncio Rezende Filho e Mário Billerbeck)
Costa e Silva Sobrinho
Santos é uma cidade diferente de quase
todas as outras. Ela encerra em si uma cidade morta que só a bem poucos se mostra no meio rumoroso da cidade viva. Por esse motivo, quem quiser hoje
compreendê-la e admirá-la, precisa primeiro fazer uma espécie de iniciação.
Os forasteiros, os visitantes de breve demora procuram em geral conhecer as nossas praias, os
grandes hotéis, o centro comercial e os arrabaldes mais pitorescos.
Às vezes vão às igrejas, às repartições públicas, aos hospitais e percorrem as principais
avenidas. Encontram então edifícios elegantes palacetes opulentos, arranha-céus e templos novos, ou, quando antigos, já modificados e renovados.
Apenas através dos monumentos é que conseguem visionar um pouco do passado da cidade. E não nos
será difícil roborar com numerosos exemplos o que levamos dito. Vejamos, por brevidade, unicamente este:
Em 1918 esteve entre nós o aplaudido escritor português João Paulo Freire (Mário), que de volta à
sua pátria, deu a público um volume intitulado Uma viagem à América do Sul.
A respeito de Santos, escreveu ele:
"Santos, 10 de julho, meia noite. Este
Palace Hotel, onde me encontro, que é um dos melhores de Santos, foi mandado construir e pertence a um patrício, o sr.
Manuel Alves Tomaz, natural de Castanheira de Pera, e que em 1887 desembarcou aqui, menino e moço, cheio de fé e de energias para o trabalho
extenuante do balcão. Trabalhou, educou-se, progrediu e chegou a chefe da firma Thomas Irmão & Cia., que foi durante muitos anos das mais
importantes e respeitadas do Brasil. Em 1903 liquidou-se amigavelmente a firma e três anos depois, Alves Tomaz, já cansado de não fazer nada,
voltava às preocupações da vida, compra este terreno, edifica o hotel e põe-se à sua frente a dirigi-lo e a administrá-lo".
Referindo-se à estátua de Braz Cubas, assim discorreu:
"Foi um português, Braz Cubas, cavaleiro
fidalgo da Casa de El Rei, quem fundou a cidade, nela fazendo construir o Hospital de Todos os Santos, que deu o nome e
imprimiu caráter a esta hospitaleira cidade que tem hoje na sua Praça da República o tributo da sua gratidão ao Fundador,
na estátua em mármore que lhe erigiu em frente ao antigo Colégio da Companhia de Jesus e perto da velha Matriz, que
durante séculos conservou intactas suas cinzas. O Colégio da Companhia é hoje a
Alfândega. A igreja desapareceu perante o camartelo do progresso e da devastação, sem sequer escapar o piedoso túmulo que
encerra os restos mortais do pundonoroso fidalgo de El-rei".
Advirta-se, antes de mais nada, que estava o ilustre autor insuficientemente informado quando
descreveu acima que o "Colégio da Companhia é hoje a Alfândega".
O prédio da Alfândega de então, como o da atual, ficava no mesmo lugar onde se erguia outrora a mole enorme do Colégio dos
Jesuítas, mas não era o mesmo prédio.
Reatemos agora o fio do assunto, como a sultana Scheherazade o de suas histórias maravilhosas. Dos
nossos edifícios, disse ele o seguinte:
"Dos edifícios de Santos que já visitei,
salientam-se: o Real Centro Português, que é a casa dos portugueses que seguem ainda as idéias tradicionalistas e que eu
preferia fosse a casa de todos os portugueses; a estação da São Paulo Railway, ampla, cheia de luz; o
Quartel dos Bombeiros; a Santa Casa de Saúde, de belo aspecto e de ótimas acomodações; o palacete Carvalho, na
Praça do Rosário, e o edifício dos Correios, na mesma praça, além de outros. É digno de ver-se
também o Hospital da Beneficência Portuguesa, pelo seu asseio, orientação e instalações".
Rodeasse esses edifícios das múltiplas recordações que os realçam, e o nosso visitante teria, sem
dúvida, entrevisto muitas coisas idas e distantes. Teria feito reviver, perante os seus olhos, a outra cidade, e talvez a própria vila que a névoa
do passado encobrira.
Para isso, entretanto, seria de mister que fosse ele bem conhecedor do passado inteiro de Santos.
Alberto Sousa, na sua obra sobre Os Andradas,
em três alentados volumes, mostrou muitas vezes carecer também dessa condição. À asserção juntemos a prova:
Na "tentativa de reconstituição topográfica da vila de Santos em 1801",
que se encontra entre as páginas 216 e 217 do primeiro volume da citada obra, ele resvala até em erros palpáveis.
Assim, a capela do Carvalho (ou de Jesus, Maria, José), que está
assinalada no plano com "esse" maiúsculo (S), acha-se colocada à esquerda do ribeiro da Praia ou
ribeiro de S. Jerônimo, quando ela, na realidade, ficava à direita desse riacho.
Com a letra "jota" (J) indicou a casa da Câmara e a cadeia, como se
funcionassem em dois prédios contíguos e distintos, sendo certo que já em 1697 ocupavam ambas um só edifício.
Ligou ele a Rua da Praia à Rua da Alfândega Velha, que descia dos Quatro
Cantos para a Praia, e à Travessa da Graça, que era uma rua que descia da capela da Graça para o mar. De três ruas fez assim uma só,
estabelecendo para a Rua da Praia, no presente Rua Tuiuti, este absurdo trajeto: começando nos Quatro Cantos (esquina da Rua Frei Gaspar com a Rua
15), passava pelo Largo da Praia (hoje Largo Senador Vergueiro), atravessava a ponte do ribeiro da Praia ou de São
Jerônimo (onde atualmente sai a Rua Conde d'Eu) e subia a Travessa da Graça, ou Rua do Sal (agora José Ricardo), até
atingir a Capela da Graça, na esquina da Rua de Santo Antônio.
Há diversos outros enganos no referido levantamento gráfico da vila de Santos em 1801, feito por
Alberto Sousa. Deixemo-los, porém, de lado. Nestas divagações não temos em mira endireitar desacertos alheios, senão sim renovar na memória dos
contemporâneos alguns fragmentos da história da cidade.
Demasiado longe nos foi a pena desta feita. Mas é que visávamos as ruas da Praia e do Sal
desembaraçadas de confusões.
A Câmara Municipal, em 22 de agosto de 1878, deu o nome de Rua José Ricardo à Rua do Sal. Na mesma
data, a Rua da Praia passou a chamar-se Rua 24 de Maio. E é hoje, como dissemos, a Rua Tuiuti.
Pois bem, em 1825 morava na Rua da Praia, esquina da Rua do Sal, bem defronte do
porto das Canoas, num sobrado, o cirurgião dr. Manuel José de Faria. Homem de grande proceridade moral e a quem se
atribuíam foros de extraordinária competência na arte de curar, era ele natural do Rio de Janeiro, orçava então pelos 54 anos, e era casado com d.
Mariana Benedita de Faria e Albuquerque.
Dessa aliança lhes veio a seguinte prole: Maria Carolina de Faria, nascida em 1803; Antônio José
Xavier de Faria, em 1804; Francisco Xavier de Faria, em 1805; Caetano Manuel de Faria, em 1807; Maria Amália de Faria, em 1809; Balbina Henriqueta
Pimenta Bueno, em 1810; e Emília Brasilina de Faria Erichsen, em 1819.
Esta última, natural da freguesia de N. Senhora da Luz, na Província de Pernambuco, casou com o
dinamarquês Conrado Erichsen, ascendente do poeta e jornalista Nestor Erichsen Guimarães, do Paraná.
A penúltima, também natural de Pernambuco, desposou-se nesta cidade, em 23 de junho de 1834, com o
dr. José Antônio Pimenta Bueno, juiz de Direito da comarca, e mais tarde marquês de São Vicente.
De Francisco Xavier de Faria e sua mulher, d. Leocádia Augusta de Figueiredo, era filho Francisco
Américo de Faria, de apelido Muchacho, nascido em Cuiabá, e casado nesta cidade, a 17 de abril de 1869 com a prendada vicentina d. Maria
Bárbara (d. Sinhára), filha de Antônio José da Silva Bastos e de d. Maria Plácida da Silva Bastos.
Tinham sido íntimas, cordialíssimas, estreitíssimas, as relações dos pais dos consortes Francisco
e d. Maria Bárbara. Ligava-os mesmo o vínculo espiritual de um reiterado compadrio.
A 29 de dezembro de 1839, falecia em Santos, de uma apoplexia, o aludido cirurgião-mor Manuel José
de Faria. Poucos anos antes, em virtude de certos incômodos que lhe vinham minando a saúde, já havia sido reformado. Sua renda era então de um conto
de réis anual, inclusive negros de ganho.
Quando o dr. José Antônio Pimenta Bueno (marquês de S. Vicente) foi nomeado presidente da
Província de Mato Grosso, e administrou-a de 1835 a 1837, levou para lá em sua companhia os seus cunhados Caetano Manuel de Faria e Francisco Xavier
de Faria.
Encontraram estes, naquelas regiões, terras de produtividade extraordinária, que se estendiam por
léguas, mas cobertas de florestas e cheias de bugres astutos e ferozes.
Embrenhando-se corajosamente pelas matas, desbastando o mais grosso delas e obrigando os índios a
se fixarem bem longe, montaram para logo suas fazendas de agricultura e de criação de gado.
O dr. Pimenta Bueno voltou depois para Santos. Eles continuaram entregues aos trabalhos improbos
da lavoura e da pecuária. Alguns anos depois, as plantações começavam a desatar-se em frutos copiosos.
Nasceram-lhes ali os filhos com o rebentar dos arrozais e as rijas bateduras dos pilões e do
monjolo. Estavam, assim, radicados ao chão natal da família.
O nome do dr. Pimenta Bueno vem por inteiro do nome de seu progenitor incógnito - José Antônio
Pimenta Bueno, que nasceu em Santos e foi batizado no dia 1º de novembro de 1771, sendo seus pais Antônio José da Cruz Pimenta e d. Quitéria
Ferreira Bueno.
Teve ainda este casal, em 1772, uma filha, de nome Ana Gertrudes, que foi casada com o capitão-mor
João Batista da Silva Passos e faleceu de parto em 17 de novembro de 1811, tendo deixado cinco filhos.
No derradeiro quartel do século XVIII, d. Quitéria Ferreira Bueno, tendo enviuvado, casou de novo
com Luis Pereira Machado. Pouco depois seguia para Coimbra o primeiro José Antônio Pimenta Bueno. A 5 de outubro de 1792 formava-se em Matemáticas e
Filosofia, disciplinas necessárias "para entrar com sólidos princípios no estudo da Medicina,
que é uma Física particular do corpo humano, cujo mecanismo não é possível entender-se sem precederem os ditos estudos",
consoante se lê no livro 3º, pág. 14, dos Estatutos da referida Universidade. No dia 5 de outubro de 1794 formava-se ele, afinal, em
Medicina.
Em seguida, confiante no conquistado ganha-pão, tornava para Santos; pois os citados Estatutos,
que por carta regia de d. José tinham "toda a força e vigor de leis",
dispunham que "concluído o curso, ficarão os que forem aprovados com a liberdade de
exercitarem a praxe da Medicina e Cirurgia em todos os meus Reinos, e Domínios, sem dependência de outra alguma aprovação, e exame; E outrossim
ficarão habilitados para obterem partidos públicos das câmaras, conselhos, hospitais etc., servindo-lhes para tudo isso de título as suas Cartas".
Ficavam então dispendiosíssimas as formaturas em Coimbra. Documento importante pela luz que lança
sobre o assunto, é uma escritura de dívida outorgada a 8 de outubro de 1801, nas notas do tabelião Manuel da Silva Borges, pelo bacharel em Medicina
José Antônio Pimenta Bueno a Luis Pereira Machado.
Neste instrumento diz o bacharel "que ele
foi para a Universidade de Coimbra por sua livre vontade, e sem constrangimento algum, com licença do juiz, à custa de suas legítimas paterna e
materna estudar, onde esteve em estudos até que se formou em Medicina, em cuja diligência gastou três contos duzentos e setenta e cinco mil
quatrocentos e oitenta e nove réis (3:275$489), com a qual quantia supriu e lhe assistiu seu padrasto Luis Pereira Machado, naquela cidade de
Coimbra, por mão de seu correspondente como se verifica dos avisos nas cartas do ilustríssimo Joaquim Pedro Quintela, da cidade de Lisboa".
Esse Joaquim Pedro Quintela foi o primeiro barão de Quintela, pai do célebre primeiro conde de
Farrobo, e em cujo palácio monumental, na Rua do Alecrim, esteve Junot em 1803 com o seu quartel general.
Vem-nos à lembrança que em 1801, uma casa térrea, na Rua dos Cortumes (hoje de S. Bento), custava
em média 100$000, e uma casa de sobrado, na Rua Direita (agora 15 de Novembro) era vendida em
16 de outubro do mesmo ano por 500$000.
Explica-se, pois, que o moço santista tivesse gasto as suas legítimas paterna e materna, e ainda
ficasse devendo ao padrasto para conseguir formar-se em Medicina.
O dr. Pimenta Bueno não chegou a clinicar em sua terra natal. Foi nomeado logo cirurgião-mor em S.
Paulo e mudou-se enfim para Campos de Goitacazes (ou simplesmente Campos, no Estado do Rio), onde se casou e deixou vários filhos. Consignemos os
seus nomes como simples contribuição ao estudo das linhagens, pois estas sã também documentos históricos. Ei-los aqui:
1 - Maria Fausta Pimenta Bueno, casada com Francisco Pereira Lima da Costa; 2 - Luis José Pimenta
Bueno; 3 - José Antônio Pimenta Bueno, formado em Direito pela Academia de S. Paulo, em 1863; 4 - João José Pimenta
Bueno, capitão agregado ao Sexto Batalhão da Reserva da Guarda Nacional da Província do Rio; 5 - Quitéria Fausta Pimenta Bueno, casada com Luis
Duarte Pereira Gomes; e Carolina Pimenta Bueno.
Com o dr. Pimenta Bueno, quando cirurgião-mor, deu-se um fato curioso.
No dia 25 de março de 1803, tinha sido encontrado caído de bruços, numa das ruas de São Paulo, o
cadáver de um homem.
Servia como juiz ordinário o capitão João José Rodrigues que, tomando conhecimento do ocorrido,
determinou que o escrivão das execuções Francisco Luis Pena avisasse ao médico dr. Pimenta que, às duas horas da tarde, estivesse em casa dele juiz,
para proceder a exame de corpo de delito do mencionado morto.
O escrivão dirigiu-se para a casa do médico, à Rua Direita, e encontrou-o na porta da rua, em
conversa com o capitão Antônio Pedro Fernandes Pinheiro, irmão de José Feliciano (visconde de S. Leopoldo).
Deu-lhe conhecimento da ordem do juiz, sem obter qualquer resposta do dr. Pimenta, porque na
ocasião o capitão Antônio Pedro, metendo-se no meio, dissera ao médico que "não fosse a
chamado do juiz, porque dito juiz era um tolo, era um cavalo". E, por isso, o dr. Pimenta não
foi proceder ao exame.
Infelizmente, porém, na certidão da intimação, o escrivão tinha posto tudo aquilo que ouvira.
Leu-a o juiz. Revestiu-se-lhe imediatamente o rosto em mostra de ira. E o desfecho foi a punição de que nos dá notícia a Revista do Arquivo
Municipal, de S. Paulo, no volume 7, pág. 104, sob o título de "Denúncia contra um médico por não ter cumprido intimação do juiz".
Não! Podem dizer o que quiserem, a lição não foi de um juiz tolo. |