Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0260h5.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/07/08 21:55:13
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - MEDICINA
Medicina, médicos e clientes (4)

Nos tempos dos primeiros médicos em terras santistas
Leva para a página anterior
Esta série de artigos, que depois seria reunida pelo autor Costa e Silva Sobrinho como parte da obra Romagem pela Terra dos Andradas, foi publicada no jornal santista A Tribuna, enfocando assuntos médicos na Santos do final do século XIX e início do século XX. Este artigo foi publicado nas páginas 19 e 18 da edição de 29 de julho de 1951 (ortografia atualizada nesta transcrição):
 


Reprodução de trecho da matéria original

Medicina, médicos e clientes

(Aos drs. Oscar Santos Dias, Leôncio Rezende Filho e Mário Billerbeck)

Costa e Silva Sobrinho

Santos é uma cidade diferente de quase todas as outras. Ela encerra em si uma cidade morta que só a bem poucos se mostra no meio rumoroso da cidade viva. Por esse motivo, quem quiser hoje compreendê-la e admirá-la, precisa primeiro fazer uma espécie de iniciação.

Os forasteiros, os visitantes de breve demora procuram em geral conhecer as nossas praias, os grandes hotéis, o centro comercial e os arrabaldes mais pitorescos.

Às vezes vão às igrejas, às repartições públicas, aos hospitais e percorrem as principais avenidas. Encontram então edifícios elegantes palacetes opulentos, arranha-céus e templos novos, ou, quando antigos, já modificados e renovados.

Apenas através dos monumentos é que conseguem visionar um pouco do passado da cidade. E não nos será difícil roborar com numerosos exemplos o que levamos dito. Vejamos, por brevidade, unicamente este:

Em 1918 esteve entre nós o aplaudido escritor português João Paulo Freire (Mário), que de volta à sua pátria, deu a público um volume intitulado Uma viagem à América do Sul.

A respeito de Santos, escreveu ele:

"Santos, 10 de julho, meia noite. Este Palace Hotel, onde me encontro, que é um dos melhores de Santos, foi mandado construir e pertence a um patrício, o sr. Manuel Alves Tomaz, natural de Castanheira de Pera, e que em 1887 desembarcou aqui, menino e moço, cheio de fé e de energias para o trabalho extenuante do balcão. Trabalhou, educou-se, progrediu e chegou a chefe da firma Thomas Irmão & Cia., que foi durante muitos anos das mais importantes e respeitadas do Brasil. Em 1903 liquidou-se amigavelmente a firma e três anos depois, Alves Tomaz, já cansado de não fazer nada, voltava às preocupações da vida, compra este terreno, edifica o hotel e põe-se à sua frente a dirigi-lo e a administrá-lo".

Referindo-se à estátua de Braz Cubas, assim discorreu:

"Foi um português, Braz Cubas, cavaleiro fidalgo da Casa de El Rei, quem fundou a cidade, nela fazendo construir o Hospital de Todos os Santos, que deu o nome e imprimiu caráter a esta hospitaleira cidade que tem hoje na sua Praça da República o tributo da sua gratidão ao Fundador, na estátua em mármore que lhe erigiu em frente ao antigo Colégio da Companhia de Jesus e perto da velha Matriz, que durante séculos conservou intactas suas cinzas. O Colégio da Companhia é hoje a Alfândega. A igreja desapareceu perante o camartelo do progresso e da devastação, sem sequer escapar o piedoso túmulo que encerra os restos mortais do pundonoroso fidalgo de El-rei".

Advirta-se, antes de mais nada, que estava o ilustre autor insuficientemente informado quando descreveu acima que o "Colégio da Companhia é hoje a Alfândega". O prédio da Alfândega de então, como o da atual, ficava no mesmo lugar onde se erguia outrora a mole enorme do Colégio dos Jesuítas, mas não era o mesmo prédio.

Reatemos agora o fio do assunto, como a sultana Scheherazade o de suas histórias maravilhosas. Dos nossos edifícios, disse ele o seguinte:

"Dos edifícios de Santos que já visitei, salientam-se: o Real Centro Português, que é a casa dos portugueses que seguem ainda as idéias tradicionalistas e que eu preferia fosse a casa de todos os portugueses; a estação da São Paulo Railway, ampla, cheia de luz; o Quartel dos Bombeiros; a Santa Casa de Saúde, de belo aspecto e de ótimas acomodações; o palacete Carvalho, na Praça do Rosário, e o edifício dos Correios, na mesma praça, além de outros. É digno de ver-se também o Hospital da Beneficência Portuguesa, pelo seu asseio, orientação e instalações".

Rodeasse esses edifícios das múltiplas recordações que os realçam, e o nosso visitante teria, sem dúvida, entrevisto muitas coisas idas e distantes. Teria feito reviver, perante os seus olhos, a outra cidade, e talvez a própria vila que a névoa do passado encobrira.

Para isso, entretanto, seria de mister que fosse ele bem conhecedor do passado inteiro de Santos.

Alberto Sousa, na sua obra sobre Os Andradas, em três alentados volumes, mostrou muitas vezes carecer também dessa condição. À asserção juntemos a prova:

Na "tentativa de reconstituição topográfica da vila de Santos em 1801", que se encontra entre as páginas 216 e 217 do primeiro volume da citada obra, ele resvala até em erros palpáveis.

Assim, a capela do Carvalho (ou de Jesus, Maria, José), que está assinalada no plano com "esse" maiúsculo (S), acha-se colocada à esquerda do ribeiro da Praia ou ribeiro de S. Jerônimo, quando ela, na realidade, ficava à direita desse riacho.

Com a letra "jota" (J) indicou a casa da Câmara e a cadeia, como se funcionassem em dois prédios contíguos e distintos, sendo certo que já em 1697 ocupavam ambas um só edifício.

Ligou ele a Rua da Praia à Rua da Alfândega Velha, que descia dos Quatro Cantos para a Praia, e à Travessa da Graça, que era uma rua que descia da capela da Graça para o mar. De três ruas fez assim uma só, estabelecendo para a Rua da Praia, no presente Rua Tuiuti, este absurdo trajeto: começando nos Quatro Cantos (esquina da Rua Frei Gaspar com a Rua 15), passava pelo Largo da Praia (hoje Largo Senador Vergueiro), atravessava a ponte do ribeiro da Praia ou de São Jerônimo (onde atualmente sai a Rua Conde d'Eu) e subia a Travessa da Graça, ou Rua do Sal (agora José Ricardo), até atingir a Capela da Graça, na esquina da Rua de Santo Antônio.

Há diversos outros enganos no referido levantamento gráfico da vila de Santos em 1801, feito por Alberto Sousa. Deixemo-los, porém, de lado. Nestas divagações não temos em mira endireitar desacertos alheios, senão sim renovar na memória dos contemporâneos alguns fragmentos da história da cidade.

Demasiado longe nos foi a pena desta feita. Mas é que visávamos as ruas da Praia e do Sal desembaraçadas de confusões.

A Câmara Municipal, em 22 de agosto de 1878, deu o nome de Rua José Ricardo à Rua do Sal. Na mesma data, a Rua da Praia passou a chamar-se Rua 24 de Maio. E é hoje, como dissemos, a Rua Tuiuti.

Pois bem, em 1825 morava na Rua da Praia, esquina da Rua do Sal, bem defronte do porto das Canoas, num sobrado, o cirurgião dr. Manuel José de Faria. Homem de grande proceridade moral e a quem se atribuíam foros de extraordinária competência na arte de curar, era ele natural do Rio de Janeiro, orçava então pelos 54 anos, e era casado com d. Mariana Benedita de Faria e Albuquerque.

Dessa aliança lhes veio a seguinte prole: Maria Carolina de Faria, nascida em 1803; Antônio José Xavier de Faria, em 1804; Francisco Xavier de Faria, em 1805; Caetano Manuel de Faria, em 1807; Maria Amália de Faria, em 1809; Balbina Henriqueta Pimenta Bueno, em 1810; e Emília Brasilina de Faria Erichsen, em 1819.

Esta última, natural da freguesia de N. Senhora da Luz, na Província de Pernambuco, casou com o dinamarquês Conrado Erichsen, ascendente do poeta e jornalista Nestor Erichsen Guimarães, do Paraná.

A penúltima, também natural de Pernambuco, desposou-se nesta cidade, em 23 de junho de 1834, com o dr. José Antônio Pimenta Bueno, juiz de Direito da comarca, e mais tarde marquês de São Vicente.

De Francisco Xavier de Faria e sua mulher, d. Leocádia Augusta de Figueiredo, era filho Francisco Américo de Faria, de apelido Muchacho, nascido em Cuiabá, e casado nesta cidade, a 17 de abril de 1869 com a prendada vicentina d. Maria Bárbara (d. Sinhára), filha de Antônio José da Silva Bastos e de d. Maria Plácida da Silva Bastos.

Tinham sido íntimas, cordialíssimas, estreitíssimas, as relações dos pais dos consortes Francisco e d. Maria Bárbara. Ligava-os mesmo o vínculo espiritual de um reiterado compadrio.

A 29 de dezembro de 1839, falecia em Santos, de uma apoplexia, o aludido cirurgião-mor Manuel José de Faria. Poucos anos antes, em virtude de certos incômodos que lhe vinham minando a saúde, já havia sido reformado. Sua renda era então de um conto de réis anual, inclusive negros de ganho.

Quando o dr. José Antônio Pimenta Bueno (marquês de S. Vicente) foi nomeado presidente da Província de Mato Grosso, e administrou-a de 1835 a 1837, levou para lá em sua companhia os seus cunhados Caetano Manuel de Faria e Francisco Xavier de Faria.

Encontraram estes, naquelas regiões, terras de produtividade extraordinária, que se estendiam por léguas, mas cobertas de florestas e cheias de bugres astutos e ferozes.

Embrenhando-se corajosamente pelas matas, desbastando o mais grosso delas e obrigando os índios a se fixarem bem longe, montaram para logo suas fazendas de agricultura e de criação de gado.

O dr. Pimenta Bueno voltou depois para Santos. Eles continuaram entregues aos trabalhos improbos da lavoura e da pecuária. Alguns anos depois, as plantações começavam a desatar-se em frutos copiosos.

Nasceram-lhes ali os filhos com o rebentar dos arrozais e as rijas bateduras dos pilões e do monjolo. Estavam, assim, radicados ao chão natal da família.

O nome do dr. Pimenta Bueno vem por inteiro do nome de seu progenitor incógnito - José Antônio Pimenta Bueno, que nasceu em Santos e foi batizado no dia 1º de novembro de 1771, sendo seus pais Antônio José da Cruz Pimenta e d. Quitéria Ferreira Bueno.

Teve ainda este casal, em 1772, uma filha, de nome Ana Gertrudes, que foi casada com o capitão-mor João Batista da Silva Passos e faleceu de parto em 17 de novembro de 1811, tendo deixado cinco filhos.

No derradeiro quartel do século XVIII, d. Quitéria Ferreira Bueno, tendo enviuvado, casou de novo com Luis Pereira Machado. Pouco depois seguia para Coimbra o primeiro José Antônio Pimenta Bueno. A 5 de outubro de 1792 formava-se em Matemáticas e Filosofia, disciplinas necessárias "para entrar com sólidos princípios no estudo da Medicina, que é uma Física particular do corpo humano, cujo mecanismo não é possível entender-se sem precederem os ditos estudos", consoante se lê no livro 3º, pág. 14, dos Estatutos da referida Universidade. No dia 5 de outubro de 1794 formava-se ele, afinal, em Medicina.

Em seguida, confiante no conquistado ganha-pão, tornava para Santos; pois os citados Estatutos, que por carta regia de d. José tinham "toda a força e vigor de leis", dispunham que "concluído o curso, ficarão os que forem aprovados com a liberdade de exercitarem a praxe da Medicina e Cirurgia em todos os meus Reinos, e Domínios, sem dependência de outra alguma aprovação, e exame; E outrossim ficarão habilitados para obterem partidos públicos das câmaras, conselhos, hospitais etc., servindo-lhes para tudo isso de título as suas Cartas".

Ficavam então dispendiosíssimas as formaturas em Coimbra. Documento importante pela luz que lança sobre o assunto, é uma escritura de dívida outorgada a 8 de outubro de 1801, nas notas do tabelião Manuel da Silva Borges, pelo bacharel em Medicina José Antônio Pimenta Bueno a Luis Pereira Machado.

Neste instrumento diz o bacharel "que ele foi para a Universidade de Coimbra por sua livre vontade, e sem constrangimento algum, com licença do juiz, à custa de suas legítimas paterna e materna estudar, onde esteve em estudos até que se formou em Medicina, em cuja diligência gastou três contos duzentos e setenta e cinco mil quatrocentos e oitenta e nove réis (3:275$489), com a qual quantia supriu e lhe assistiu seu padrasto Luis Pereira Machado, naquela cidade de Coimbra, por mão de seu correspondente como se verifica dos avisos nas cartas do ilustríssimo Joaquim Pedro Quintela, da cidade de Lisboa".

Esse Joaquim Pedro Quintela foi o primeiro barão de Quintela, pai do célebre primeiro conde de Farrobo, e em cujo palácio monumental, na Rua do Alecrim, esteve Junot em 1803 com o seu quartel general.

Vem-nos à lembrança que em 1801, uma casa térrea, na Rua dos Cortumes (hoje de S. Bento), custava em média 100$000, e uma casa de sobrado, na Rua Direita (agora 15 de Novembro) era vendida em 16 de outubro do mesmo ano por 500$000.

Explica-se, pois, que o moço santista tivesse gasto as suas legítimas paterna e materna, e ainda ficasse devendo ao padrasto para conseguir formar-se em Medicina.

O dr. Pimenta Bueno não chegou a clinicar em sua terra natal. Foi nomeado logo cirurgião-mor em S. Paulo e mudou-se enfim para Campos de Goitacazes (ou simplesmente Campos, no Estado do Rio), onde se casou e deixou vários filhos. Consignemos os seus nomes como simples contribuição ao estudo das linhagens, pois estas sã também documentos históricos. Ei-los aqui:

1 - Maria Fausta Pimenta Bueno, casada com Francisco Pereira Lima da Costa; 2 - Luis José Pimenta Bueno; 3 - José Antônio Pimenta Bueno, formado em Direito pela Academia de S. Paulo, em 1863; 4 - João José Pimenta Bueno, capitão agregado ao Sexto Batalhão da Reserva da Guarda Nacional da Província do Rio; 5 - Quitéria Fausta Pimenta Bueno, casada com Luis Duarte Pereira Gomes; e Carolina Pimenta Bueno.

Com o dr. Pimenta Bueno, quando cirurgião-mor, deu-se um fato curioso.

No dia 25 de março de 1803, tinha sido encontrado caído de bruços, numa das ruas de São Paulo, o cadáver de um homem.

Servia como juiz ordinário o capitão João José Rodrigues que, tomando conhecimento do ocorrido, determinou que o escrivão das execuções Francisco Luis Pena avisasse ao médico dr. Pimenta que, às duas horas da tarde, estivesse em casa dele juiz, para proceder a exame de corpo de delito do mencionado morto.

O escrivão dirigiu-se para a casa do médico, à Rua Direita, e encontrou-o na porta da rua, em conversa com o capitão Antônio Pedro Fernandes Pinheiro, irmão de José Feliciano (visconde de S. Leopoldo).

Deu-lhe conhecimento da ordem do juiz, sem obter qualquer resposta do dr. Pimenta, porque na ocasião o capitão Antônio Pedro, metendo-se no meio, dissera ao médico que "não fosse a chamado do juiz, porque dito juiz era um tolo, era um cavalo". E, por isso, o dr. Pimenta não foi proceder ao exame.

Infelizmente, porém, na certidão da intimação, o escrivão tinha posto tudo aquilo que ouvira. Leu-a o juiz. Revestiu-se-lhe imediatamente o rosto em mostra de ira. E o desfecho foi a punição de que nos dá notícia a Revista do Arquivo Municipal, de S. Paulo, no volume 7, pág. 104, sob o título de "Denúncia contra um médico por não ter cumprido intimação do juiz".

Não! Podem dizer o que quiserem, a lição não foi de um juiz tolo.

O mesmo jornal publicou, na página 21 da edição de 3 de junho de 1951 (ortografia atualizada nesta transcrição):


Reprodução de trecho da matéria original

Medicina, médicos e clientes

(Aos drs. Heitor Guedes Coelho, Avelino Vieira e Ciro Werneck)

Costa e Silva Sobrinho

Quando chegou ao Brasil em 1808 a Corte Portuguesa, procurou desde logo d. João VI regulamentar o exercício da Medicina.

Andava então a profissão médica muito desacreditada, tanto aquém como além-mar. Prestava-se constantemente a críticas acerbas. A musa de Bocage, que se distinguiu entre as mais soltas e mordazes do seu tempo, satirizou-a por vezes sem piedade. Constitui exemplo frisante disso este seu epigrama:

"Homem de gênio impaciente,

tendo uma dor infernal,

pedia, para matar-se,

um veneno ou um punhal.

- Não há (lhe diz um vizinho,

homem que pensava bem)

não há punhal nem veneno...

mas o médico aí vem".

Um dos primeiros atos do príncipe-regente foi, pois, criar os cargos de físico-mor e de cirurgião-mor do exército. Para aquele, o primeiro nomeado foi o dr. Manuel Vieira da Silva, e para este o dr. João Corrêa Picanço.

Em 29 de dezembro de 1809 participava por sua vez o conde de Linhares ao capitão-general de S. Paulo haver sido nomeado para o cargo de físico-mor das Tropas da Capitania o dr. João Alves Fragoso, médico diplomado pela Universidade de Coimbra.

Vivendo completamente absorvido no trabalho, apresentava este ao governo em 1811 um extenso relatório sobre os hospitais de Santos e de S. Paulo, e, em 1814, um projeto de regulamento para os mesmos.

Concedeu-se-lhe em 17 de setembro de 1814 a patente de físico-mor das Tropas de S. Paulo.

Na memória de d. Francisco de Assis Mascarenhas, conde de Palma, sobre o estado da Capitania nesse ano, lê-se o seguinte:

"Há também aqui um delegado do físico-mor deste Estado, que exercita sua jurisdição sobre os facultativos de Medicina, Cirurgia e Farmácia. Esta ocupação tem andado anexa aos físicos-mores da tropa desta Capitania, que exerce hoje o bacharel João Alvares Fragoso".

E conclui: "O delegado de cirurgião é hoje o cirurgião-mor Tomaz Gonçalves Gomide".

Por provisão régia de 5 de novembro de 1821 foi nomeado físico-mor de S. Paulo o dr. Justiniano de Melo Franco, formado em Medicina pela Universidade de Goettingen. Na capital bandeirante foi ele diretor do Hospital Militar, inspetor geral da Vacinação e comandante da companhia de cavalaria da guarda cívica, denominada "Sustentáculo da Independência Brasileira", e que d. Pedro I criou por decreto de 9 de setembro de 1822, após a proclamação da Independência.

Filho do dr. Francisco de Melo Franco, médico e poeta satírico brasileiro, que andou preso nos cárceres do Santo Ofício, em Lisboa, elaborou o dr. Justiniano o regulamento para o hospital militar de S. Paulo e escreveu duas memórias, uma sobre a vacinação e a outra sobre a cadeira de obstetrícia do professor Stein.

Quem lançar uma rápida vista de olhos pelo recenseamento da vila de Santos de 1822, que se encontra no terceiro volume dos Andradas, de Alberto Sousa, topará na página 114 com a figura estranha de um homem que poucos meses antes havia deixado um alto posto em S. Paulo.

Chamava-se João Alves Fragoso. Era tenente-coronel, físico (médico, diríamos hoje), branco, casado, de cinqüenta e nove anos. Sua mulher dava pelo nome de Maria. Orçava pelos quarenta e quatro anos, que exibiam o maduro esplendor apenas dos trinta. Alegre, porte elegante, maneiras finas, saúde florescente.

Entre beijos e afagos criavam cinco filhos, que eram Pedro Carlos, de 13 anos; Miguel Caetano, de 12; Maria Benedita, de 10; Isabel, de 5; e finalmente Francisco de Assis, de 3.

Possuía ele uma leva de 13 escravos. Uso antigo que ainda perdurava. Bem o escreveu a pena primorosa de Oliveira Martins: "Sem os negros, o Brasil não teria existido; e sem escravos nação alguma começou".

Morava ao pé da botica de Lucas José de Oliveira, na nona casa da Rua Setentrional. Seria hoje, com pequena diferença, no mesmo lugar onde se acha o prédio n. 7-8, da Praça da República.

O dr. João Alves Fragoso gozava dos foros de homem experiente e consumado na sua profissão. Em 5 de maio de 1824, quando repousou na bem-aventurança d. Mateus de Abreu Pereira, quarto bispo de S. Paulo, foi o dr. Fragoso incumbido do embalsamamento do cadáver.

Informa-nos desse fato uma interessante carta de Antônio Mariano de Azevedo Marques (O Mestrinho), dirigida a seu irmão José Xavier de Azevedo Marques, feitor e escrivão da abertura da Alfândega de Santos. Pertence ela hoje em dia ao Máximo de Azevedo Marques, um estudioso do nosso passado e artista de pujante talento, que gentilmente no-la comunicou. Folgamos, portanto, de poder trazer à luz na sua íntegra esse documento ainda não divulgado. É ele deste teor:

"S. Paulo, 6 de maio de 1824.

"José:

"Quero aproveitar a fresca da manhã, que é quando estou mais aliviado, para escrever-vos duas linhas.

"A minha moléstia consiste em muita febre, e mais nada; e manifestou-se no domingo, 25 do passado; os acessos são agora muito menos violentos; mas enfim não estou são de tal febre, e isto é tudo, porque no estado de fraqueza em que estou não poderei resistir, se se demorar muitos dias. Estou na Rua Direita, para onde vim sábado, a ver se melhoro com o bom tratamento.

"Ontem, pelas 8 horas da manhã, faleceu o bispo, depois de poucos dias de enfermidade. A moléstia julgou-se séria na segunda-feira, no qual dia começaram as preces na Sé, mas não fizeram mais que dois dias, inda ontem ele amanheceu sem maior novidade e disse que queria descansar, deixaram-no com efeito descansar, mas quando voltaram a vê-lo, já estava frio; não tomou Sacramentos.

"O que eu mais sinto é não aproveitares a função do funeral, que é coisa que acontece uma vez na vida do homem; eu estou com vontade de ir ver o Depósito, que é hoje à noite, não obstante a minha moléstia; amanhã é o Ofício; ontem foram feitas todas as operações pelo Fragoso e Quinquim, extraíram tudo o que era úmido, até os miolos, e furaram os olhos, e depois embalsamaram; os dobres têm sido de hora em hora, e não se interromperam toda a noite.

"Anteontem à noite também morreu quase de repente o Anhanguera. As moléstias têm sido gerais, a seca mui longa, pois não choveu um pingo d'água depois que daqui fostes.

"Mandai-me dizer se ides fazendo fortuna com o vosso emprego, e se achais melhor da moléstia que daqui levastes. A vossa do 1º deste recebi. Dai lembranças ao João, que bem por...... certo se lembra de mim; recomendações dai-me igualmente ao Inácio, e a todos de casa, e ao padre Santana. Sobre os soldos de abril não se tem falado ainda.

"Adeus José, aceitai lembranças de todos de casa, e em particular do

Antônio.

P.S. - Recebi a vossa carta pelo correio passado; escrevi ao Pinheiro agradecendo a carta para o João Bahiano, pois ele quis vir para.... com vagar escreverei ao Inácio.

"Xinhô".

O embalsamamento, que encerrava uma longa série de pequenos e complicados atos, foi, como se vê por essa carta, praticado pelo dr. João Alves Fragoso e pelo cirurgião Joaquim Cardoso, de apelido Quinquim.

A operação, para que a conservação artificial oferecesse garantia, demandava uma técnica muito aperfeiçoada. Os embalsamadores mostraram que não lhes faleciam os conhecimentos peculiares do assunto. D. Mateus dava a impressão de um santo na sua redoma.

Uma lei de 30 de agosto de 1828 declarou, enfim, extintos os cargos de físico-mor e de cirurgião-mor do Império.

O físico-mor foi durante alguns séculos a autoridade máxima dos médicos na metrópole e nas colônias. Passava ele cartas de habilitação para o exercício da Medicina. E segundo as prescrições do livro I, título 58, parágrafo 33, das Ordenações do reino, o médico que curasse sem ter carta de seu grau, ou provisão, era emprazado para se apresentar na Corte ante o físico-mor, ou cirurgião-mor, para se livrar da culpa.

Mesmo depois da Independência, mesmo em plena Regência, já depois de instaladas as Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, o físico-mor e o cirurgião-mor ainda concediam, eles próprios ou por meio dos seus delegados, após examinação, cartas de cirurgião etc.

O tipo mais comum de cirurgião era, então, o de cirurgião aprovado. Era este o aprendiz de cirurgia que havia praticado com um mestre-cirurgião em hospital. Examinado e aprovado por autoridade competente, podia exercer a cirurgia e a Medicina em lugar onde não houvesse médico, circunstância esta aliás raramente observada.

Na mesma Rua Setentrional, na sexta casa, residia também em 1822 o cirurgião-mor da guarnição da Praça, João Batista Teixeira, reinol, natural de S. Salvador de Sabrosa, do arcebispado de Braga, onde nasceu por 1757.

Casado com Ana Engracia de Avelar Correia, natural de S. Paulo e bem mais moça do que ele, teve em Santos seis filhos que formosamente cresceram sob os seus olhos enternecidos.

Por volta de 1781, quando o vigário José Xavier de Toledo começou o seu paroquiato em Santos, uma das pessoas que para logo ficou conhecendo foi o cirurgião-mor João Batista Teixeira.

Este em breve tempo se afeiçoou ao sacerdote, e por isso dele tratou desde a primeira vez que aqui enfermou, em 1783, até o dia 25 de fevereiro de 1813, quando aos 76 anos de idade passou a melhor vida.

Durante o estirado espaço de vinte e oito anos, isto é, até 1811, jamais quis aceitar daquele cliente qualquer remuneração pelos seus serviços profissionais. Dizia que as visitas não eram feitas por interesse. Fazia-as por afeição, por amizade e por obséquio ao preclaro e virtuoso vigário. Levava em gosto vê-lo, ouvi-lo e instruir-se com a sua conversação.

Todos os paroquianos da mesma maneira o admiravam e veneravam. Teólogo notável, pregador cuja voz abrasava os auditórios, sacerdote exemplar pelas suas perfeições cristãs e pelo seu saber, o vigário José Xavier de Toledo era de fato um sábio e um santo. Tinha ele pertencido a uma das derradeiras turmas de alunos dos jesuítas no Colégio de S. Miguel, em Santos. Ninguém o vencia no zelo, na meticulosidade e no estrito cumprimento das suas obrigações. Não comprava nada fiado. Julgava a vida assaz transitória para que se não andasse com ela sempre em dia.

Na enfermidade que o assaltou em 1812, foi ainda o cirurgião-mor João Batista seu médico assistente. Também desta feita, instou com ele o doente para que lhe desse a conta do tratamento. Mas foi em vão; pois a resposta foi que estava quite e livre de tal dívida.

- E como agradecer essa generosidade? - indagava, prostrado no leito, o velho sacerdote.

Refletindo e vacilando, resolveu, enfim, presentear os filhos do cirurgião com 19$200. A 6 de janeiro de 1813 deu-lhes de Reis essa importância, e um mês e pouco depois vinha a falecer. Os seus bens, deixou-os em testamento aos pobres.

Por derradeiro, nos autos do respectivo inventário, vamos encontrar este documento:

"Conta do curativo que fiz ao Muito Reverendo Vigário da Vara José Xavier de Toledo.

"Por 309 visitas que lhe fiz, desde 5 de julho de 1812 até 26 de fevereiro de 1813, a 320 réis.............................. 98$880
"Por 3 ditas de noite, fora de horas, a 2$000.................. 6$000
"Por 4 curas de vesicatórios a 640................................ 2$560
"Por 5 visitas que fiz a um escravo do dito senhor depois de sua morte, a 320.................................................. 1$600
"Soma..................................................................... 109$040
"Recebi do dito senhor que mandou no dia de Reis a meus filhos, em 6 de janeiro de 1813..................................... 19$200
"Resta..................................................................... 89$840

"(a) João Batista Teixeira".

O levar a crédito nessa conta a lembrança dada pelo finado aos filhos do cirurgião-mor revela na alma deste um ponto negro.

Bem exemplificado se acha no caso vertente o acerto do velho adágio: Deus nos livre de párrafo de legista, de et caetera de escrivão, e de récipe de médico.

Leva para a página seguinte da série