Nesta concepção do pesquisador de História e pintor
Benedito Calixto, pintura baseada em foto do século XIX, vê-se à esquerda o conjunto arquitetônico dos Jesuítas, sem a torre,
e ao centro a antiga Igreja Matriz de Santos, também demolida
ANÁLISE ARQUITETÔNICA
A Igreja e o Colégio de São Miguel da Vila de Santos (1585-1759)
Gino Caldatto Barbosa (*)
CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEMA
O presente trabalho tem como objetivo estudar a
arquitetura da Companhia de Jesus em Santos, obra construída no final do século XVI e demolida na segunda metade do século XIX, analisando-a
comparativamente com outras edificações religiosas do mesmo período, reforçando a tese da materialização de uma tipologia arquitetônica na região,
semelhante às demais obras jesuíticas no Brasil.
Sobre o tema, reuniram-se informações existentes em publicações, monografias e
documentos, organizando-as de modo a facilitar a análise construtiva desse edifício no processo histórico. Nem sempre a bibliografia consultada
veiculou coerência nas suas afirmações face a abordagens imprecisas do objeto de estudo, acarretando incertezas sobre os autores pesquisados.
Entre os assuntos levantados foi comum deparar-se com afirmações de que a antiga
igreja Matriz de Santos fora anteriormente o templo dos jesuítas. A esse respeito, chama a atenção o trabalho de Ubyrajara
Gilioli intitulado "Santos: Largo e Colégio dos Jesuítas", apresentado como dissertação de mestrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo. Após extensa argumentação, o autor discorre que os jesuítas, em Santos, construíram igreja e colégio em edificações
separadas, e que, após sua expulsão em 1759, o templo passou a ser incorporado pela paróquia, transformando-se em Matriz do povoado.
Nesses termos, Gilioli afirma que "do desenho da cidade,
adquire singular interesse a disposição dos dois principais, a igreja isolada e o colégio, e os dois espaços diferenciados que esta disposição irá
motivar; ou seja, o próprio largo da Matriz em frente aos dois edifícios e a pequena praça, do lado Leste do colégio em frente ao antigo
forte de 1560" [1].
Mais adiante, o referido autor valoriza as qualidades dessa concepção
arquitetônica separada em dois blocos, como fruto da percepção espacial do arquiteto da Companhia de Jesus, irmão Francisco Dias: "este
projeto, com pequena praça lateral ao colégio e ligada ao antigo forte em 1560, isola e deixa para trás, no tempo e no espaço, preso entre o fundo
da igreja e o outeiro, o conjunto dos fatos que marcaram o primeiro estabelecimento português frente ao canéu
(N.E.: Caneu, Canéu, Caneú - diferentes grafias para indicar o largo marítimo existente no Estuário
santista, defronte à região conhecida como o atual bairro da Alemoa). Ao mesmo tempo, a
outra praça, a praça principal, define o novo lugar, o novo ponto de partida para sertão"
[2].
Contrapondo-se às observações de Gilioli, aparece o trabalho do pesquisador
norte-americano Robert Smith intitulado "A Arquitetura Jesuítica no Brasil". Em sua publicação, o conhecido estudioso da arquitetura colonial
brasileira revela elementos importantes sobre a concepção e tipologia da igreja e do colégio dos jesuítas em Santos.
Do Arquivo Militar do Rio de Janeiro, Robert Smith resgata um desenho
de 1801 contendo planta e três elevações do colégio jesuíta de São Miguel, construído no final do século XVI em Santos. Nessa ilustração, é possível
observar a inserção do edifício no entorno, e ao mesmo tempo apresenta a planta térrea dos compartimentos do antigo colégio agenciado à igreja em
ruínas: "a planta do Arquivo Militar... apresenta a antiga propriedade dos jesuítas em relação aos arredores. Bem ao
lado, ficava a Matriz ou igreja paroquial, com sua fachada formando ângulo reto com a do colégio. Este último e a igreja jesuíta tinham face para o
interior e fundos para o porto"... "A igreja revelava-se em ruínas"...
"A planta da igreja do Colégio de São Miguel difere do plano do colégio e dos seminários baianos quanto à igreja, que
ocupa aqui um dos lados em vez do centro do conjunto. Esta era a forma preferida das construções provinciais jesuíticas..."
[3].
O desenho analisado por Robert Smith contraria a tese de que a igreja jesuíta era
separada do colégio, conforme as afirmações de Ubyrajara Gilioli. O desconhecimento da pesquisa do estudioso norte-americano levou Gilioli a
utilizar referências bibliográficas pouco rigorosas para a análise arquitetônica, buscando respostas definitivas a esses assuntos nos estudos de
historiadores locais como Frei Gaspar da Madre de Deus, Francisco Martins e Alberto Sousa, deixando de investigar com maior rigor as argumentações
dos referidos autores.
A disposição perpendicular entre os edifícios da igreja e do colégio, conforme sugere
Gilioli, foge do tradicional partido arquitetônico jesuítico realizado no Brasil, que concentrava todas as atividades em um único prédio. Solução
também utilizada pelas demais ordens religiosas presentes em Santos nesse período, como os carmelitas, franciscanos e beneditinos, que construíram
igreja e mosteiro sob o mesmo teto.
Essa concepção arquitetônica é precisamente estudada por Lúcio Costa
e não deixa dúvidas de que o "partido arquitetônico tradicionalmente empregado pelas ordens religiosas nos seus
mosteiros e conventos, ou seja, o de dispor os vários corpos em construção em 'quadra'... formando-se um ou mais pátios, foi mantido também pelos
jesuítas"... "um dos quartos da quadra era sempre ocupado pela igreja, cujo
frontispício, mantido no alinhamento do quarto contíguo, formava com este, em elevação, um plano só, correspondendo ao colégio..."
[4].
A descrição de Lúcio Costa condiz perfeitamente com os desenhos da Igreja e Colégio de
São Miguel, em Santos, divulgados por Robert Smith. Vale lembrar que esse partido arquitetônico foi também utilizado por Francisco Dias nos colégios
de Salvador e Rio de Janeiro, não deixando dúvidas sobre a sua adoção em Santos.
Sobre a pesquisa de Lúcio Costa, "A Arquitetura Jesuítica no Brasil", uma
ressalva. Sendo um levantamento tão amplo sobre a obra jesuítica, lamenta-se a inexistência de qualquer menção à igreja santista, que, com certeza,
seria de grande importância.
Os elementos escolhidos para o estudo dessa arquitetura se resumem na identificação
das características do projeto original, realizado no século XVI por Francisco Dias, e nas modificações sofridas no edifício até a sua demolição no
século XIX.
Basicamente, pretende-se resgatar a memória da Igreja e Colégio de São Miguel e
compreender o conjunto de fatores que influenciaram na concepção do edifício e sua relação com o entorno, valorizando a sua importância para a
História da Arquitetura da Companhia de Jesus no Brasil.
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O ARQUITETO: IRMÃO FRANCISCO DIAS
No final do século XVI, os jesuítas se estabelecem definitivamente na vila de Santos.
Antes, os ofícios da fé eram realizados pelos padres do Colégio de São Vicente que esporadicamente passavam por ali. Santos ainda era pequena e
pobre, e lentamente ia se recuperando dos problemas causados pela liberação de acesso do colono ao planalto a partir de 1544.
Com o passar dos anos, o acanhado porto de Santos conheceu relativa prosperidade,
firmando-se como o principal pólo comercial da região e atraindo os investimentos de São Vicente.
No final do século XVI, o povoado vicentino cai em total decadência, levando os padres
da Companhia de Jesus a se mudarem para Santos. A presença jesuítica é confirmada com a doação do terreno onde existia a Casa do
Conselho, efetuada pelos camaristas em 1585. Após quinze anos, a igreja e o mosteiro já estavam de portas abertas, construídas sob a orientação
do irmão Francisco Dias, o primeiro arquiteto jesuíta no Brasil.
Francisco Dias era português e entrou para a Companhia de Jesus em 1567. Foi pedreiro,
carpinteiro, mestre-de-obras, arquiteto e até navegador. Chegou ao Brasil em 1577 e trouxe em seu currículo a experiência de conduzir as obras da
igreja de São Roque de Lisboa e de projetar a igreja e o colégio na Ilha Terceira dos Açores.
Certamente os jesuítas de Lisboa sentiram a ausência do irmão Dias.
Através de uma correspondência enviada a Roma pelo padre provincial à época de sua viagem, nota-se o respeito e reconhecimento profissional
adquirido por ele nos 10 anos de serviço à Companhia: "Tratei com os padres de São Roque e achamos ser muito
necessário este ano o Irmão Francisco Dias nesta casa por que esperamos que se acabe a igreja, e o mais que falta do edifício, o qual é de muita
importância e depende deste irmão, que anos há traz tudo entre mãos, e sabe o particular de cada coisa e como há de fazer. E partindo para o Brasil
este ano, como V. Paternidade ordena, será notável falta" [5].
A vinda de Francisco Dias era providencial. Até o momento, a maioria das construções
jesuíticas no Brasil eram improvisadas, empregando materiais pobres, de feitura tosca, às vezes chegando a resultados desastrosos como o colégio de
São Vicente em 1550, relatado por Manoel da Nóbrega como a casa "mas pobre de todas".
Na medida em que o trabalho da Companhia de Jesus foi apresentando resultados
satisfatórios na catequese e conversão do índio, logo veio a necessidade de substituir a precariedade das primitivas igrejas, verdadeiras malocas de
pau, barro e cobertura de palha, por construções que passariam a atender às exigências de "perpetuidade" instruídas desde Roma.
No Brasil, a tarefa imediata de Francisco Dias foi a de projetar novos colégios para a
Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, mas a necessidade de se repensar o modelo construtivo jesuítico o tornou revisor de todas as obras da Companhia
no Brasil.
Nesse sentido, sua primeira atividade se deu no colégio de Salvador,
junto à igreja empreendida por Mem de Sá em 1572. Para Francisco Dias, a igreja "razoável, bem acabada, com seu
coro, é bastante por agora para a terra, e bem ornada com os seus ricos ornamentos"
[6]. Assim, decidiu-se pela sua manutenção, conjugando-se ao
prédio do colégio "no quarto da parte leste".
Em seguida, ruma para o Rio de Janeiro, onde, em 1585, inicia a
construção da igreja no morro do Castelo, concluída três anos depois. Segundo Benedito Lima de Toledo, "seu
fronstispício guarda muita semelhança com São Roque" [7],
cujo traçado original de Afonso Álvares foi refeito em 1586 por Felipe Terzi. Esta mesma composição também pode ser encontrada na fachada da igreja
jesuítica de Santos.
O padre Serafim Leite sustenta que este projeto é contemporâneo ao do
Rio de Janeiro, conforme relata a escritura de doação do terreno pelo Conselho santista aos padres da Companhia no ano de 1585: "mandasse
aqui fazer o dito mosteiro como já estava e ficara assentado com o dito padre provincial, por lhe assim pedirem sucedeu isso e ordenou que se
fizesse no sítio e logar que mandava traçar pelo irmão Francisco Dias..."
[8].
Dando prosseguimento à sua atividade no Brasil, o incansável Francisco Dias concluiu
em 1592 as obras da Igreja N. S. da Graça do Colégio de Olinda, segundo "a traça de São Roque", como recorda o padre Pero Rodrigues em 1597.
Dos edifícios projetados por Francisco Dias, a igreja de Olinda é a
única ainda existente. Sofreu incêndio, passou por reformas e anos atrás foi restaurada. Alguns estudiosos ainda levantam a possibilidade da sua
participação nas construções de Reritiba (atual Anchieta, 1610), Reis Magos (atual Nova Almeida, 1615) e São Pedro da Aldeia (1617): "É
o que nos vem à mente olhando a bela portada serliana da igreja da Aldeia de Reis Magos, reveladora da erudição de quem realizou o projeto",
sugere Benedito Lima de Toledo [9].
Entre as diversas outras atividades de Francisco Dias, destacava-se a de navegador
que, conduzindo o navio da companhia, auxiliava na supervisão das obras pela costa litorânea. Também, com muito zelo, dirigia a oficina de
carpintaria do Colégio do Rio de Janeiro, "departamento de intenso movimento".
Para a história da arquitetura religiosa brasileira, o nome de
Francisco Dias está associado à introdução de um repertório arquitetônico erudito, de caráter sóbrio e composições renascentistas, que marcou a
feição das igrejas jesuítas do Brasil nos séculos XVI e XVII. Para Lúcio Costa, a sua presença "foi sem dúvida
decisiva, não só no sentido de fixar, de forma definitiva e logo de início, as características de estilo próprio da nossa arquitetura jesuítica,
como também no de influir nas construções contemporâneas não jesuíticas"
[10].
No Brasil, o grande arquiteto difundiu um partido arquitetônico moderno, trazido da
experiência de São Roque, cujo projeto do arquiteto régio Afonso Álvares constituía grande novidade em Portugal. Projetou igrejas com nave única,
introduzindo capelas laterais, eliminando colunas e valorizando a visibilidade do altar e púlpitos, melhorando a acústica e a iluminação, elementos
esses que vinham ao encontro das mudanças do ato litúrgico apresentadas pela Contra-Reforma.
Na época, a importância do trabalho de Francisco Dias para a arquitetura jesuítica é
decisiva. Passados anos de sua chegada ao Brasil, ainda possuía elevado prestígio em Portugal. Em certo momento, foi objeto de uma acirrada disputa
entre os padres do Brasil e Portugal, levando à intervenção do padre geral da Companhia na resolução do caso.
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A ESCOLHA DO TERRENO
A escolha do melhor sítio para a construção da igreja e colégio dos jesuítas também
contou com a colaboração do arquiteto Irmão Francisco Dias.
Por alguma razão, Dias não aproveitou a construção iniciada por
José de Anchieta e preferiu fazer outro prédio em um novo local, talvez com situação mais privilegiada.
Decidiu-se pelo terreno em frente da praça da igreja da Misericórdia (atual Praça da República), onde ficava a Casa do
Conselho, junto ao mar e próximo do porto e do forte da Vila.
Não restava dúvida ser este um terreno adequado às necessidades da Companhia de Jesus.
A vizinhança com o porto favorecia a carga e descarga de mercadorias para o abastecimento do colégio, o forte ao lado proporcionaria a segurança
necessária, e a praça existente serviria aos propósitos jesuíticos da catequese.
Nota-se que a primitiva praça possuía até o momento dupla função. Prestava-se tanto
para as atividades religiosas dos irmãos da Misericórdia, como também às solenidades dos camaristas.
Com certeza, foi o principal espaço cívico da vila de Santos. Quando
os oficiais da Câmara e a população local empenharam-se na construção da nova Casa do Conselho, não esqueceram a sua importância como espaço
incorporado às suas solenidades, escolhendo o terreno de João Fernandes Brun "por ser lugar mais acomodado para n'ellas
estarem as ditas casas de cadêa, por estarem junto da praça"
[11].
Provavelmente, esses aspectos foram decisivos na opção de Francisco Dias por implantar
a casa dos jesuítas no terreno escolhido.
Com o aproveitamento do amplo terreiro à frente do colégio para as atividades da
catequese dos irmãos de Jesus, a praça converteu-se em amplo espaço democrático. Servia como palco dos atos oficiais da câmara, para as festividades
religiosas organizadas na Igreja da Misericórdia, depois Matriz, para a reunião de mercadores com suas tendas e barracas, e passou também a
incorporar as danças e representações dos jesuítas.
Até o início do século XX, o sagrado e o profano ainda se conciliavam neste mesmo
espaço. Com as sucessivas renovações urbanas ocorridas no correr das décadas, eliminaram-se definitivamente as principais referências históricas
outrora existentes, rompendo uma tradicional e secular vocação.
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A CONSTRUÇÃO
Com a escolha do local, organizou-se a construção da igreja e do mosteiro dos jesuítas
junto ao limite Sul do terreno, acentuando a demarcação da praça existente. A entrada principal do edifício deu as costas para o mar, voltando-se
para o amplo terreiro que se abria à sua frente, e com isso alcançando um relativo destaque na acanhada paisagem da vila.
Observando a planta do edifício levantada em 1801 pelo engenheiro militar João da
Costa Ferreira, é possível visualizar com clareza a solução jesuíta de origem. Na parte Sul situavam-se as entradas da igreja e do colégio, ambos
separados pela torre sineira. No Oeste dispunha-se a igreja com a sacristia e, ao Norte, voltada para o mar, a parte de serviços. Do lado Leste, um
muro dava fechamento ao conjunto, delineando um pátio interno. Ladeando o conjunto, nota-se a presença de uma cercadura que delimita o restante do
terreno, área que outrora deveria prestar-se à horta dos irmãos de Jesus, a exemplo da que existiu no colégio de São Vicente.
O desenho de Costa Ferreira ainda sugere um partido arquitetônico em quadra que não se
completou. Para a arquitetura jesuítica de Santos, Francisco Dias deve ter optado pela tradicional disposição dos corpos do edifício em torno de um
pátio central com a igreja ocupando um dos lados, como fez no colégio da Bahia.
O cuidado das obras ficou a cargo do Irmão Diogo Alvares, qualificado mestre-de-obras
e também carpinteiro, que iniciou suas atividades no canteiro de obras em 1592 até os arremates finais em 1601.
Por volta de 1598, foram concluídas a igreja e uma residência com oito cubículos,
ambas executadas com paredes de pedra e cal e decoradas no interior com pinturas do Irmão Belchior Paulo.
Quarenta e cinco anos depois, já se discutia entre os irmãos da Companhia a
possibilidade de transferir para Santos os ofícios do colégio de Piratininga, face às dificuldades de relacionamento com os bandeirantes, fato esse
que se concretizou em 1653 com a abertura do novo colégio sob a invocação de São Miguel.
A conclusão definitiva de tais obras sempre foi um problema para os jesuítas, quase
sempre às voltas com dificuldades de toda a natureza. A falta de recursos e os constantes conflitos com os paulistas vendedores de índios foram os
problemas mais freqüentes enfrentados pelos padres, levando-os por diversas oportunidades a abandonar o mosteiro, ficando exposto a toda sorte.
Assim, a retomada das obras estava quase sempre voltada aos reparos
e reconstruções das partes do edifício que se mostravam em avançado estado de degradação. A este respeito, o padre Serafim Leite relata: "a
velha Igreja do Irmão Francisco Dias também com o tempo se arruinou. Durou quase um século, mas deve-se ter salvado o recheio e talvez as pinturas
de Belchior Paulo. A igreja existente em 1694 já era outra, feita pouco antes. Trinta anos depois, em 1725, demoliu-se a velha torre, já prestes a
desmoronar-se; e ergueu-se terceira igreja 'totalmente nova'"... "onze anos depois, em
1736, andava-se nas obras da nova torre" [12].
No entanto, o edifício do colégio e residência dos jesuítas
permaneceu conservado por muito tempo. Porém, em 1732 sua situação era de quase ruína, "e já haviam começado novas
obras que corriam o risco de parar por falta de recursos" [13].
Mesmo com dificuldades, as obras foram prosseguidas com a construção, junto à igreja, de uma galeria sustentada por cinco arcos e a reforma do
ginásio.
Com a expulsão dos jesuítas em 1759, o conjunto arquitetônico jesuítico passou por um
estado de completo abandono até ser utilizado pela administração colonial durante o século XIX. No desenho de João da Costa Ferreira, de 1801, é
possível notar o estado de ruína em que se encontrava o edifício na época, observando o corpo da igreja sem cobertura, com o interior tomado pela
vegetação.
Anos mais tarde, o imóvel, tornando-se propriedade do governo português, assim como
todos os bens da Companhia de Jesus na colônia, passa a ter funções diversificadas, como residência dos Capitães-Gerais, Hospital Militar, Correios,
Armazém de Sal e a Alfândega.
Essas mudanças não se limitaram apenas à reordenação da planta. Buscando eliminar os
vestígios da arquitetura religiosa, a fachada foi sendo paulatinamente dilapidada. A torre sineira e o frontão triangular que rematavam o
frontispício da igreja foram demolidos. As envasaduras da fachada tiveram as antigas vergas retas alteradas para arco abatido.
No último quartel do século XIX, esse imóvel se apresentava insuficiente para abrigar
suas múltiplas funções, sobretudo com a crescente solicitação de espaço que a atividade alfandegária impunha na medida em que o porto de Santos, com
a exportação de café, ganhava importância no cenário internacional.
O antigo edifício dos jesuítas foi demolido nos anos de 1870 e ali construído o novo
prédio da alfândega, dando início a uma atividade que persiste até os dias de hoje.
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A PLANTA
O programa de necessidades das construções jesuíticas basicamente limitava-se a
organizar espaços para culto, trabalho, moradia, aulas, enfermaria, horta e pomar.
Para atender a essas necessidades, os jesuítas utilizavam um partido
arquitetônico, secularmente adotado pelas ordens religiosas, que distribuía as diversas funções do edifício em torno de um pátio central.
No caso de Santos, essa solução não se completou. Na planta de 1801 se observa que a
disposição em quadra é simulada através da feitura de um muro, definindo o pátio no qual adossa todos os cômodos. Segundo Robert Smith, apesar da
ocorrência de sucessivas reformas no edifício, há indícios de que a concepção original de Francisco Dias foi preservada na essência.
Em Santos, o arquiteto jesuíta optou por dispor, na elevação da
praça, os edifícios da residência e da igreja, separando-os pela torre do sino. Lembra Lúcio Costa que essa organização era usual "quando
os planos previam a possibilidade de se vir a construir, futuramente, uma segunda torre, aquela que primeiro se fazia era a ligação entre a ala do
colégio correspondente ao terreiro e a igreja, como nos colégios do Castelo, no Rio de Janeiro e de São Paulo"
[14].
Através do desenho de João da Costa Ferreira, observa-se a planta jesuítica contendo
nave única, e atrás a sacristia, apresentando uma solução inovadora para [a] época. A
introdução desse partido no Brasil é atribuída a Francisco Dias, cuja concepção transformava o interior da igreja em um grande auditório gozando de
boa acústica, ótima iluminação e visão ampla do altar, vindo ao encontro das necessidades litúrgicas da Contra-Reforma.
A planta ainda revela uma solução diferenciada entre a nave e a capela-mor, com
menores dimensões e separadas pelo arco cruzeiro, aproximando-se de uma concepção própria das igrejas modestas. Segundo Smith, a nave deveria medir
135 pés de comprimento por 37 pés de largura, o equivalente a 36,50 m por 10,0 m, respectivamente. No desenho também se nota a ausência do coro
sobre a entrada principal, um equipamento importante nessa arquitetura, que deve ter ruído após o abandono dos padres em 1759. As laterais da igreja
continham duas portas que faziam a ligação da nave com a horta, por meio da parede com robustos contrafortes, e com o corredor arcado por onde se
alcançava a sacristia.
A residência dos padres deveria ter uma concepção muito simples. Sobre isso Serafim
Leite informa que, em 1600, essa moradia apresentava um corredor com oito cubículos.
Com a elevação da Casa de Santos a Colégio em 1653, os espaços internos tiveram um uso
mais diversificado. A planta de 1801 reproduz com detalhes o programa usual jesuíta na época da expulsão da Companhia. Ladeando a torre, situava-se
a portaria, com entrada voltada para o terreiro, convertendo-se no principal acesso ao colégio. Outros dois cômodos finalizavam a ocupação do
rés-do-chão desta parte do edifício; a botica do colégio, contando com excelentes provimentos, e a casa dos irmãos leigos. Essa ala se comunicava
com os fundos do conjunto arquitetônico por meio de um corredor arcado em forma de L, lembrando bastante o pátio da antiga residência jesuítica de
Nova Almeida, no Espírito Santo.
Na parte Norte, voltada para o mar, organizavam-se as demais dependências de serviços,
como a cozinha, a escadaria, o refeitório e o alojamento de escravos. Uma nota no desenho aponta que também, neste setor, no andar superior, ficavam
os cubículos para os estudantes.
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A FACHADA
No desenho de João da Costa Ferreira, o frontispício da igreja se apresenta pintado de
rosa, revelando uma composição típica dos edifícios mais antigos da companhia. Contém frontão triangular com óculo central, três janelas
retangulares sobre a porta de entrada do colégio. São elementos de composição ainda inspirados na Renascença, presentes desde os primeiros projetos
de Francisco Dias no Brasil.
Esse arquiteto trouxe de Portugal as referências arquitetônicas da igreja de São
Roque, de Lisboa, aprendidas durante o período [em] que conduziu essas obras. As igrejas
dos colégios de Olinda, Rio de Janeiro e Santos são exemplos evidentes da tradução dessa influência portuguesa nos projetos do arquiteto jesuíta e a
afirmação dessa tipologia nos séculos XVI e XVII.
Analisando antigas imagens das igrejas de Santos e Rio de Janeiro, observa-se uma
grande semelhança entre as suas fachadas. Por se tratarem de edifícios projetados por Francisco Dias no mesmo ano de 1585, é possível que o
arquiteto tenha se valido do mesmo risco para conceber ambas. Através de uma fotografia da antiga Alfândega de Santos,
feita por Militão Augusto de Azevedo na segunda metade do século XIX, é possível identificar elementos formais presentes na concepção original do
Colégio de São Miguel. Todos os elementos construtivos, como a portada com remate de frontão triangular, a pedra aparelhada do cunhal, as três
aberturas sobre a porta de entrada, também se encontram, quase nas mesmas proporções, na igreja do morro do Castelo, no Rio de Janeiro.
Isto leva a crer que as reformas executadas no edifício de Santos não chegaram na
essência a modificar a sua fachada original. Para Robert Smith, o frontispício da igreja santista, em 1801, ainda mantinha sua feição próxima à
original, parecendo admissível que, mesmo após as sucessivas reformas, as linhas básicas do projeto de Dias tenham sido respeitadas.
A torre sineira da igreja de Santos é outro elemento que se relacionava em analogia
com outras construções jesuíticas mais antigas. Mesmo após a sua reconstrução no ano de 1736, ainda conservava características que a aproximam do
estilo do século XVI. A existência de pequenas janelas retangulares alinhadas verticalmente, finalizando, na altura do sino, com duas aberturas em
arco pleno, pode ser verificada também nas igrejas do Rio de Janeiro, São Paulo e Vitória. No arremate, a cúpula de tijolo em forma de meia laranja
está presente nas torres de diversas igrejas como em Anchieta, Ries Magos, São Pedro da Aldeia, Santiago, Campos, entre outras.
É possível que a primeira torre projetada por Francisco Dias em Santos tivesse o
acabamento com telhado em forma de pirâmide, evocando as igrejas do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Devido à racionalidade de sua concepção, o projeto dos colégios de Santos, Rio de
Janeiro e Olinda fixou uma tipologia comum à arquitetura religiosa no Brasil até meados do século XVII, e mesmo após as transformações ocorridas na
obra jesuítica, ainda é possível encontrar unidade nela.
Para finalizar, citando Lúcio Costa, "apesar
das mudanças de forma, das mudanças de material e das mudanças de técnica, a personalidade inconfundível dos padres, o 'espírito'''
jesuítico, vem sempre à tona: - é a marca, o cachet que identifica todas elas e as diferencia, à primeira vista, das demais"
[15].
(*) Gino Caldatto Barbosa é arquiteto, professor
de Teoria da Arquitetura da FAUS-Unisantos e mestrando na FAU/USP.
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NOTAS
[1] - GILIOLI, Ubyrajara.
Santos: Largo e Colégio dos Jesuítas. São Paulo, 1983. Dissertação de Mestrado, FAU/USP, pág. 57.
[2] - Ibid. Pág. 58.
[3] - SMITH, Robert.
Arquitetura Jesuítica no Brasil. São Paulo, São Paulo, FAU/USP, 1962, págs. 31, 32.
[4] - COSTA, Lúcio. A
Arquitetura Jesuítica no Brasil, in Arquitetura Religiosa. São Paulo, FAU/USP - MEC/IUPHAN, 1978, pág. 27
[5] - TOLEDO, Benedito Lima
de. Do Século XVI ao início do Século XIX: Maneirismo, Barroco e Rococó, in ZANINI, Walter (org.), História Geral da Arte no Brasil.
São Paulo, Instituto Walter Moreira Salles, 1983, Vol. 1, pág. 120.
[6] - COSTA, Op. Cit. pág.
19.
[7] - TOLEDO, Op. Cit. pág.
131.
[8] - PEREIRA, Maria
Apparecida Franco. Instituições Jesuíticas em Santos nos Séculos XVI e XVII, in Revista Leopoldianum Nº 1. Santos, Sociedade Visconde
de São Leopoldo, pág. 67.
[9] - TOLEDO, Op. Cit. pág.
126.
[10] - COSTA, Op.
Cit. pág. 43.
[11] - PEREIRA, Op.
Cit. pág. 67.
[12] - LEITE,
Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VI. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1945, pág. 429.
[13] - Ibid. pág.
429.
[14] - COSTA, Op.
Cit. pág. 29.
[15] - Ibid. pág.
13. |