Reprodução de trecho da matéria original
Medicina, médicos e clientes
(Aos drs. Othon Feliciano, Grimaldo Dutra e Carlos Moreira Gomes)
Costa e Silva Sobrinho
Na segunda metade do século XVIII,
residiu vários anos em Santos um cirurgião português, natural de Lisboa, chamado tout court José Alves. Era homem branco e cristão velho.
Na história da sua vida, segundo testemunhos insuspeitos, havia três capítulos eloqüentes:
mulherio, ignorância e sovinice - uma desgraça, três desgraças.
Assim, sabiam todos que o nascimento de uma menina, filha de Ana de Chaves, mulher solteira,
natural de S. Paulo, havia constituído uma das últimas aventuras amorosas desse cirurgião. Fato, aliás, que se tornara falado porque, vivendo Ana de
Chaves em discreta condição de horizontalidade, já tinha duas outras filhas e possuía cada uma um progenitor diferente
(N.E.: SIC - deveria ser genitor, pai, e não progenitor, avô).
A 20 de janeiro de 1755 levava a criança à pia batismal, como padrinho, o licenciado José
Rodrigues Martins Cardoso, "professor de Cirurgia, aqui casado", e punham-lhe o nome de Rosa.
José Alves via agora desabrochar, sob a ternura dos seus olhos, a graça frágil daquele pequenino
ser. Seu maior desejo, dizia ele, era trabalhar muito e ganhar dinheiro para dotá-la com um bom patrimônio. Já nem pensava em voltar para a
metrópole.
Mas... um belo dia, os arroubos da saudade da terra natal lhe produziram no espírito completa
mutação. Meteu-se em u navio que estava em nosso porto de Verga d'Alto para Lisboa. Foi-se embora. E nunca mais deu notícia de si. Decorridos vários
lustros, quando já se lhe cerravam as portas da mocidade, Rosa Alves Alexandrina ainda aqui pensava resignada no transvio paterno.
José Maria da Costa e Paiva foi outra figura curiosa de cirurgião que viveu entre nós. Residiu em
Santos apenas três ou quatro anos. Filho de Bernardo José Guedes e de sua mulher d. Ana Maria, fora casado com d. Francisca Maria da Costa e Paiva,
filha do cirurgião-mor Jerônimo Francisco dos Reis Guimarães e de sua esposa d. Francisca Maria das Chagas. Teve dois filhos santistas: Eugênio, em
1833; e Francisco, em 1834. Nesse ano, vamos encontrá-lo também no exercício na função de jurado.
Em diversos documentos, aparece ele mencionado como "professor". Indaguemos a razão disso:
Celso Cornélio Aulo, o célebre enciclopedista romano autor da obra intitulada "De ré médica",
foi quem primeiro sinonimizou "médico", ou "cirurgião", com "professor". Licurgo Santos Filho, tratando entre nós desse assunto, explica que "professor
de cirurgia e professor de medicina foram expressões usadas nos tempos coloniais, e mesmo em princípio do século XIX, tanto em papéis
oficiais como em papéis outros, para designar cirurgiões ou físicos".
Depois, argumenta:
"Ora, no Brasil, antes de 1808, não
existiram escolas médicas nem aqui clinicaram professores de Coimbra. Portanto, o título de professor, no Brasil-Colônia, foi adjudicado a
cirurgiões ou físicos que tiveram, tinham ou ainda viriam a ter discípulos ajudantes, aprendizes".
E conta-nos, enfim, que "no Recife, em 1840,
o cirurgião Manuel Pereira Teixeira antepunha ao seu nome o título de Professor de Cirurgia" (Hist.
da Med. no Brasil, tomo I, págs. 172 e 174).
Em Santos, vários cirurgiões usaram desse título. Um deles, como dissemos, era esse Costa e Paiva.
Até nos atestados não deixava de mencionar a qualificação de professor. Ponhamos alguns exemplos.
Em 1833, no sítio denominado Porto, na ilha de Santo Amaro, pertencente então ao espólio de
d. Rosa Maria Leite, estava uma escrava de nome Luzia a plantar ramas de mandioca em uma roça, quando viu aproximar-se dali um cavalo. Tratou desde
logo de enxotá-lo. Mas aconteceu dar-lhe o animal um coice na barriga e ficar enferma a referida escrava.
Contra a introdução de gado vacum e cavalar no aludido sítio, os quais só serviam para destruir as
plantações, os arvoredos, e para causar prejuízos, como esse do ferimento da escrava, protestou judicialmente Joaquim José Lopes, como testamenteiro
e inventariante de d. Rosa, contra o herdeiro depositário do imóvel, José Marques Leite.
Procurou este mostrar que a doença da escrava não resultara do coice recebido, mas que já sofria
ela de uma moléstia crônica, que se agravara por outros motivos. Disso, a prova mais concludente que o depositário pôde oferecer está no seguinte
atestado:
"Eu abaixo assinado atesto que, no dia 24 de
outubro do presente ano, fui chamado para ver na qualidade de professor, a preta Luzia, de nação conga, a qual encontrei com uma inflamação no
estômago, intestino, duodeno e fígado; e tendo feito a análise médica necessária, conheci com evidência que esta inflamação existia no estado
crônico desde longo tempo, e que no estado atual não fez mais do que exacerbar-se, por infração do regime que devia conservar, atendendo sempre ao
seu estado. Eu lhe apliquei os socorros que a arte aconselha em semelhantes casos, os quais aproveitaram, e se acha restabelecida.
"Contudo, não assevero que deixará de ser de novo insultada do mesmo ataque se for excessiva
em tabaco ou gula. Passo o referido na verdade, e o juro aos Santos Evangelhos. - Santos, 18 de novembro de 1833. (a.) José Maria da Costa e Paiva".
A escrava Luzia era casada, contava 50 anos de idade, e tinha sido avaliada no inventário por
100$000. Os honorários médicos cobrados pelo seu tratamento andaram em 16$000, conforme nos mostra este recibo:
"Recebi do sr. José Marques Leite a quantia
de dezesseis mil réis, pelo curativo que fiz, na qualidade de professor, à preta Luzia, conga. - Santos, 12 de dezembro de 1833: (a.) José Maria da
Costa e Paiva".
No mesmo ano de 1833, tendo ficado enfermo o negociante português Manuel Joaquim da Silva
Quaresma, prestaram-lhe assistência os clínicos Alexandre Glass e José Maria da Costa e Paiva. A moléstia era grave. E o doente faleceu no fim de
três meses, isto é, a 5 de setembro do referido ano. Costa e Paiva cobrou de honorários 100$000. Assim reza o recibo por ele passado:
"Santos, 25 de setembro de 1833. O sr. José
Barbosa de Lima. Pelo trabalho que tive, na qualidade de professor, quase por três meses (inclusive duas juntas de professores), com o sr. Manuel
Quaresma, na grave moléstia que terminou seus dias 100$00.
"Recebi a conta acima do dito sr. Lima, Santos. - Era ut supra. - José Maria da Costa e Paiva".
O dr. Alexandre Glass cobrou muito menos. Eis a conta de honorários médicos que apresentou:
"O falecido sr. Quaresma,
"A Glass.
"Conferência e visitas: 20$400.
"Santos, 8 de setembro de 1833".
As conferências feitas por médicos e cirurgiões para esclarecimento de casos clínicos complicados
não eram de muito uso em Santos. As juntas médicas dependiam em geral das posses ou da importância do paciente. Demais, surgiam muitas vezes entre
os médicos que nelas tomavam parte discordâncias e desavenças por qualquer bagatela.
O Peregrino da América dá-nos notícia de uma junta médica que se teria realizado no século
XVIII, entre alguns cirurgiões. Em síntese, o caso foi este:
Certo enfermo mandou chamar a três cirurgiões, por não haver médicos no local. estava o enfermo
deitado em um estrado, quando chegaram os três cirurgiões. Sentaram-se junto ao doente, e como a enfermidade parecia ser opilação, votou o primeiro
dizendo que se tratava de um caso de hidropisia anasarca. No sentir do segundo, era uma opilação flatulenta.
Diagnosticou o terceiro que a doença era uma icterícia complicada com flatos uterinos. Os outros
outros dois, com os olhos arregalados e um riso largo derramado pela boca fora, começaram a bater com as mãos nas coxas. Indagou deles então o
terceiro:
- Qual a razão de tantas guinadas de riso?
E responderam: - rimo-nos, porque sendo o enfermo homem, o quer vossa mercê fazer mulher.
Nasceu daí uma discussão renhida e porfiada, seguida de sopapos e luta, vindo a cair um dos
cirurgiões em cima do enfermo. Começou este a gritar que os três cirurgiões o tinham matado.
Deram eles às gâmbias pela porta fora. O doente começou a expelir uma supuração pela boca. Voaram
a socorrê-lo a esposa e algumas vizinhas, as quais lhe foram dando caldo de galinha com leite de peito, e assim o foram fortalecendo, até que em
breves dias ficou restabelecido.
Divertimo-nos um pouco do nosso assunto, razão é que a ele nos tornemos.
Ao dr. Alexandre Glass costumavam dar também o título de professor. Mas ele, com aquela
modéstia que lhe avivava o prestígio da capacidade, nunca o empregou. Inglês, nascido na Escócia, em 1803, era esse médico filho de Diogo Glass e de
d. Helena Glass. Veio para Santos em 1829, pouco depois de formado, e morou durante os primeiros anos em casa de Guilherme Backheuser.
Consevou-se sempre solteiro. Há entretanto na sua biografia uma mulher cujo nome ele
cautelosamente sempre ocultou. Teve com ela uma filha, de nome Joana Rosa de Jesus Glass, que foi reconhecida, e em 1853 casou com Antônio de Padua
do Coração de Jesus. Deu-lhe esse casal cinco netos. Foram eles: Alexandre, em 1854; Antônio, em 1856; Joana, em 58; Bernardino, em 59; e Manuel em
61.
Possuía o dr. Glass, nos seus últimos tempos, uma chácara no morro de S. Bento, duas casas na Rua
da Palha (hoje da Constituição), um terreno na Rua dos Quartéis (atual Xavier da Silveira) e uma casa na Barra. As duas casas da Rua da Palha
deixou-as em legado às africanas Leonor e Mariana, escravas que arrematara em hasta pública para lhes dar apenas serviço temporário.
Estreitíssimas foram as suas relações com os Florindos, isto é, com José Joaquim Florindo e Silva,
Miguel José Florindo e Romão José Florindo, e também com Manuel Pereira dos Santos, Guilherme Backheuser e Gustavo Backheuser.
Como médico, tinha uma copiosa e fiel clientela. Trataram-se, por exemplo, com ele, Luís Batista
da Silva Bueno, d. Emerenciana Jesuina Bueno, Manuel Joaquim da Silva Quaresma, Rosa Maria da Silva Bastos, o sargento-mor Bernardino Antonio Vieira
Barbosa, o sargento-mor Bernardo Bueno de Sousa Lobo e inúmeras outras pessoas.
Para ele, as três virtudes teologais do médico eram: Ciência, Paciência e Consciência. Não se
acovardava diante dos males sutis e traiçoeiros, estranhos mesmo ao saber dos mais notáveis galenos do seu tempo, antes pelo contrário os combatia
com a coragem serena de um verdadeiro homem de ciência. Tinha imensa fé no seu arsenal terapêutico. Brandia por isso as suas armas com arrebatado
entusiasmo.
Se o mal recrudescia, vindo azedar com mais fel o cálix do enfermo, apoderava-se dele então uma
excessiva preocupação investigatória. É que ele aliava perfeitamente na sua personalidade invulgar o espírito do cientista ao espírito sacerdotal. O
espetáculo da natureza fora da completa normalidade figurava-se-lhe um desafio ao desvelo e ao zelo do clínico. Lutava, à vista disso, com todas as
suas forças, contra os assaltos das moléstias.
No ano de 1850, quando em Santos houve um andaço de tifo e grassou pela primeira vez a febre
amarela, o dr. Glass, curtido de multiplicadas fadigas, encontrou enfim a morte.
A propósito dessa primeira manifestação aqui da febre amarela, escreveu Guilherme Álvaro:
"Em fins de 1849 a febre amarela
desembarcava no Rio de Janeiro e ali se instalava, causando a grande epidemia de 1850, e Santos não podia escapar à visita da doença, dada a sua
proximidade da Corte e a semelhança das suas condições e de clima. De fato, neste ano, em abril, aparecia o primeiro óbito pela doença em Santos;
era um rapaz português, caixeiro, tratado no Hospital da Santa Casa. Mais alguns casos e óbitos ocorreram até o fim do verão, quando a febre
desapareceu, não voltando nos anos seguintes, de 1851 e 1852". (A
Campanha Sanitária de Santos, p. 12).
Labutou, porém, em erro o saudoso e preclaro delegado de Saúde de Santos ao
dizer que a febre amarela não voltou em 1851 e 1852. Em 1851 ela causou até maior número de vítimas do que em 1850.
Uma delas foi o dr. Júlio Hensler, médico, de 36 anos, casado, natural do Grão Ducado de Baden, que veio a falecer em 14 de maio de 1851.
A Revista Comercial, hebdomadário pertencente ao advogado dr. Guilherme Délius, assim
noticiou em 1850 o passamento do dr. Glass:
"Faleceu, no dia 5 do corrente mês, pelas 8
horas e meia da manhã, vítima da febre amarela, o dr. Alexandre Glass.
"Vinte e dois anos havia que este ilustre médico, nascido na Escócia e formado na Universidade de
Edimburgo, tinha-se constituído santista e exercia nesta cidade sua nobre profissão. Dotado de qualidades não vulgares e de uma probidade e honradez
digna de inveja, soube ganhar o coração de todos os habitantes de Santos, que geralmente o estimavam e tinham em grande conceito.
"Sua morte tem sido muito chorada e profundamente deplorada pelos numerosos amigos que possuía, e
pela pobreza, que nele perdeu um pai carinhoso e benfazejo".
Médico de uma sociedade urbana modesta, como devia ser a de Santos naquele tempo, o dr. Glass
deixou entretanto de si grata e duradoura memória.
Qual perfume que uma aragem traz de muito longe, são estas ligeiras evocações da sua vida
laboriosa e prestadia. |