Reprodução de trecho da matéria original
Medicina, médicos e clientes
(Aos drs. Jarbas Barbosa de Barros, Sílvio Guerra e Washington de Giovanni)
Costa e Silva Sobrinho
Era das oito às nove horas - hora em
que o céu santista sorri límpido e sereno, nestas manhãs de maio, e em que o sol com afagadora doçura resplende como uma grande péla doirada.
Sentia-se em todas as ruas da cidade o múltiplo rumor da sua vida laboriosa e inquieta.
Na Praça Mauá, em frente do Paço Municipal,
perpassavam as mais diversas fisionomias: senhoras, crianças, estudantes, operários, empregados públicos, médicos, advogados, em suma, gente de
todas as idades e de todas as classes sociais.
Levara-nos também ali o estudo de um assunto especial.
Por isso, ao mesmo tempo que todas aquelas pessoas iam caminhando, umas a matutar nos seus
negócios, outras a conversar e a sorrir, observávamos nós do meio do jardim um correr de casas.
Enlevados, recompúnhamos o passado contemplando assim o presente:
Nessa formosa praça, desde a "Galeria de Cristal" até "A Preferida", isto é, do número 39 ao 51,
existem hoje oito prédios. São todos eles relativamente modernos.
Vemos ali, além das duas casas comerciais já mencionadas, a companhia Singer, a sociedade anônima
Etam, as casas Lausanne, Minerva, Mattiy e a Jóia Brasil. Essas casas de negócio, os prédios onde estão, a própria denominação da praça refletem um
trecho da cidade atual.
Há, porém, nesse lugar, uma coisa bem antiga, na qual ninguém ainda reparou. É o número de
prédios. Oito são eles no presente, como dissemos. E, da mesma forma, oito eram eles há mais de um século.
Esse número, só esse número, é que nos transporta ao passado. É ele que nos faz reconstituir na
imaginação um recanto da cidade nos tempos idos, quando ali era Rua do Campo, mais tarde Rua Áurea, depois abarcada nesse
trecho pelo Largo da Coroação, Largo da Misericórdia e por fim Praça Mauá, como a denominamos hoje.
É ainda esse número que nos faz entrever na penumbra dos anos volvidos as pessoas que ali moraram
nas velhas casas desfeitas.
Assim, por exemplo, onde se acha a casa Mattiy residiu Zeferino Barbosa, avô materno do ilustre
médico dr. Heitor Guedes Coelho.
No remoto ano de 1822 ficava nesse mesmo lugar a morada de João Mariano de Campos, bisavô paterno
do dr. Antenor de Campos Moura, benemérito fundador do Asilo de Mendicidade, e do notável médico santista dr. Luís de Campos
Moura, cuja memória sua terra não poderá olvidar.
Na casa pegada, onde está a Jóia Brasil, residiu também na mesma época o guarda-mor Manuel Inácio
de Oliveira.
E logo em seguida, no prédio da esquina, que é o da Galeria de Cristal, existiu a casa de um
personagem de mui estimável mérito. Vejamos de espaço quem era ele.
Na lista dos habitantes de Santos em 1822, que Alberto Sousa publicou
no volume terceiro dos Andradas, lê-se a tal respeito o seguinte: "Rua do Campo,
vigésima primeira casa: - José do Amaral, cirurgião-mor, branco, casado, 49 anos. D. Maria Joaquina, sua mulher, branca, casada, 36 anos. Tem três
escravos. Agregados: João Batista, branco, solteiro, 18 anos; Adolfo, branco, solteiro, 9 anos; Adena, sua escrava, negra, solteira, 2 anos".
O referido cirurgião-mor José do Amaral havia arrematado essa casa por 450$100, em 27 de março de
1817, em praça, numa execução promovida pelo padre Patrício Manuel de Andrada e Silva contra Antônio Elias da Encarnação Moura.
Consta do respectivo auto esta descrição: "Uma
casa térrea coberta de telha, de dois lanços, na Rua do Campo, com fundos para o Monte Serrate, que de uma banda parte com
casa do guarda-mor Manuel Inácio de Oliveira e da outra com o Hospital Velho".
José do Amaral veio a falecer de um enfarte, às 7 horas da manhã do dia 23 de julho de 1823. Entre
os seus bens foi inventariada essa casa, acrescentada de mais um andar, e com os seguintes característicos: "Uma
morada de casas de sobrado, sitas na Rua do Campo, portadas de frente de tijolo, que de uma banda parte com casas da herança do falecido Manuel
Inácio de Oliveira, e de outra banda parte por um pequeno beco (agora Rua Riachuelo),
junto do Hospital Velho, que foi avaliada por 2:000$000".
Enfim, adquiriu-a em 1825, por arrematação, o escrivão da Alfândega, que
depois chegou a inspetor da mesma, Antônio Cândido Xavier de Carvalho e Sousa. Era este casado com d. Rita Olívia de Aguiar Andrada, filha do
coronel Francisco Xavier da Costa Aguiar e de d. Bárbara Joaquina de Andrada, irmã de José Bonifácio, o Patriarca.
O cirurgião-mor José do Amaral, nascido em Pernambuco, ainda lá deixou viva sua mãe, d. Maria
Antônia da Purificação, quando aqui veio a falecer. Chegou ele a Santos por volta de 1805, como cirurgião aprovado, e viveu exclusivamente de sua
Arte de Cirurgia até 1808. Em 1812 ainda se conservava solteiro.
Casou-se depois em S. Paulo com d. Maria Joaquina Pinheiro do Amaral, distinta senhora, da mesma
família a que pertenciam Francisco Xavier Pinheiro e Francisco de Assis Pinheiro e Prado.
Distinguiu-se ele pelo trabalho e pelo merecimento. Inteligente e estudioso, nos poucos e
escolhidos livros de sua biblioteca soube cavar e recavar quase toda a ciência médica de então.
Acha-se mencionada em seu inventário uma estantezinha contendo sessenta e um volumes bem folheados
e usados. Os nossos facultativos terão decerto curiosidade em conhecê-los. São os seguintes:
Almeira (Antonio de -), Tratado completo de Medicina Operatória,
4 tomos.
Idem, Tratado de Inflamação, 4 tomos.
Idem, Dissertação sobre o método mais simples e seguro de curar as
feridas de armas de fogo.
Alibert (João Luis -), Tratado das febres perniciosas intermitentes.
Idem, Novos elementos de terapêutica e de matéria médica, 2
volumes.
Barthez (Paulo José -), Ciência do homem, 2 volumes.
Baudelocque (João Luis -), L'art des accouchements, 2 volumes.
Bell (Benjamin -), Tratado das úlceras.
Bichat (Xavier -), Indagações filosóficas sobre a vida e a morte.
Blumenbach (João Frederico -), Instituições Fisiológicas.
Buchan (Guilherme - ), Medicina Doméstica, 10 volumes, trad. de
Padreli.
Darwin (Erasmo -), Resumo do Sistema de Medicina e tradução da
Matéria Médica.
Demalet, Febres perniciosas.
Ensaio sobre o oxigênio (sem o nome do autor).
Farmacopéia Geral para o Reino e Domínios de Portugal.
Lafaye (Jorge de -), Princípios de Cirurgia, 2 tomos.
Lanthois (E. -), Tísica pulmonar.
Manuel José Afonso e José Francisco de Melo, Novo método de partejar.
Pasta (André -), Tratado de perdas de sangue, 2 volumes.
Plenck (José Jacob de -), Elementos de partos.
Idem, Novo sistema de tumores.
Portal (Antônio -), Curso de Anatomia Medical, 5 volumes.
Richerand (Anselmo Baltasar -), Nosografia cirúrgica, 4 volumes.
Idem, Fisiologia, 2 volumes.
Idem, Erros populares relativos à Medicina.
Rubio (Francisco -), Arte de conhecer e de curar as enfermidades por
meio de regras de observação e experiência para a juventude médica.
Simmon (Samuel Foart -), Observações sobre a cura de gonorréia
virulenta.
Vademecum (sem nome de autor).
Whytt (Roberto -), Moléstias de nervos, 2 volumes.
Zimmermann (João Jorge -), A epidemia de disenteria no ano de 1765.
Idem, Tratado da experiência na arte de curar.
Esses livros, de superior merecimento e moderníssimos naquela época, constituem hoje preciosos
documentos sobre o saber e a prática médico-cirúrgica de José do Amaral.
Há muitos exemplos que frisam bem a sua experiência e competência. Vale a pena citarmos pelo menos
dois deles. Venha o primeiro:
No dia 21 de fevereiro de 1807, pelas 10 horas da noite pouco mais ou menos, estava a parda forra
Flora Maria Joaquina no botequim de uma mulata chamada Maria Rosa da Conceição, na Rua do Campo, quando ali entrou José Raimundo, contramestre de um
barco chegado da Bahia com grande carregamento de negros novos.
Ofereceu aquele homem um copo de licor à ondulosa e errante Flora; e, como esta não quisesse
beber, atirou-lhe com o copo na cara, bradando irritadíssimo:
- "Então, tome lá, mulher! Vai-te para o
diabo!"
E, logo a seguir, com uma contusão na face, disparou ela aos gritos pela porta fora.
O caso era de devassa, ou, como diríamos hoje, de inquérito.
O dr. Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, na qualidade de juiz de fora, determinou
por isso que a ofendida fosse submetida a exame de corpo de delito. Foi este feito, de acordo, com a praxe de então, na residência do juiz, onde
compareceu o escrivão com o alcaide do juízo, o cirurgião aprovado José do Amaral e a ofendida.
O juiz de fora recebeu o juramento do cirurgião, pondo este a mão direita sobre o Evangelho, e lhe
encarregou que bem e verdadeiramente visse e examinasse o ferimento que haviam feito no rosto de Flora Maria Joaquina. Ao prestar o juramento,
prometeu o cirurgião cumprir na forma da lei o que lhe era encarregado.
Logo depois, em presença do mesmo juiz, do escrivão e do alcaide, foi a ofendida vista e examinada
pelo cirurgião José do Amaral, que "declarou achar-se uma ferida contusa simples na face, do
lado direito, sobre a região malar, com polegada e meia de extensão, seis ou oito linhas de penetração, sem que demonstre perigo algum".
Seguem-se algumas perguntas que o juiz fazia à ofendida e, enfim, o encerramento do auto. Não
havia quesitos para serem respondidos. O perito narrava em breve síntese os fatos observados e deles deduzia se a lesão ameaçava perigo ou não.
O segundo exemplo é relativo a um crime de morte. Afigura-se-nos curioso pelos pormenores. Aqui o
temos:
No dia 17 de agosto de 1822, às ave-marias, encontrava-se no Hospital Militar, por estar doente, o
alferes de caçadores Antônio da Silva Leme, quando começou a promover ali uma grande desordem, chegando a armar-se de espada para acutilar os
escravos.
O governador da praça, Cândido Xavier de Almeida e Sousa, ao ter notícia disso, ordenou
imediatamente que o recolhessem a uma prisão do mesmo Hospital. E, como se dizia que o preso estava louco, ordenou também aquele governador que
pregassem umas argolas na porta da prisão, para maior segurança.
Chamado o carpinteiro Antônio Luís de Freitas, fazia ele o serviço acompanhado do soldado José
Faustino, que estava de sentinela na porta do Hospital. Nisso, pediu o alferes à sentinela que lhe desse um pouco de água. Enquanto foi ela buscá-la
ao pote, levantou-se o alferes, que se achava sentado numa tarimba, e perguntou ao carpinteiro:
- "Que é que estás fazendo aí?"
O homem, subtraindo-se receoso à realidade, respondeu-lhe:
- "Não sei".
Ato contínuo, puxando de uma faca, deu o preso algumas facadas no interpelado e berrou numa
investida:
- "Afastem-se, diabos, senão morrem todos."
O pobre carpinteiro só teve tempo de correr, ainda com o martelo na mão, até a porta do Estado
Maior e ali cair morto. O agressor sumiu-se. Algumas horas depois, foi, entretanto, capturado no Convento de Santo Antônio.
Procedeu-se no mesmo dia a exame de corpo de delito no cadáver do ofendido.
Consta, assim, do respectivo auto que o cirurgião-mor José do Amaral, do Hospital Militar, fez o
referido exame e "declarou achar cinco feridas compreendidas entre a face, o pescoço do lado
esquerdo e a nuca, sendo a que se reputa mortal a que penetrou no pescoço, por ter dividido as artérias carótidas, por cuja divisão o considerável
derramamento de sangue produziu em poucos instantes a morte. As feridas denotam ter sido feitas com instrumento cortante e perfurante. E de como
assim se procedeu e declarou o dito cirurgião-mor, eu escrivão etc."
Limitou-se aqui o médico legista a informar sobre o instrumento que ocasionou a morte e sobre a
causa eficiente dela. Hoje em dia, de acordo com a nossa praxe em vigor, teria ele de responder em linguagem mais técnica a uma série de quesitos.
Passemos agora a outra parte, sem levantar mão do assunto.
A varíola, ou bexigas, ainda era no primeiro quartel do século XIX uma moléstia muito grave. A
imunização se fazia por processos primitivos. Apesar disso, os resultados entre nós não eram maus.
A José do Amaral, como cirurgião-mor do Regimento de Caçadores da Vila de Santos, enviava o
capitão general Franca e Horta, em 4 de novembro de 1810, esta carta:
"Recebi o seu ofício de 31 do mês passado,
em que me dá parte do resultado feliz da vacina nessa vila, e me remete a lista dos que tem vacinado. Estimo o bom êxito das suas operações nesta
parte e as levarei à presença de Sua Alteza Real logo que vmcê. me remeter uma segunda via da primeira relação que me mandou dos vacinados, por a
primeira se achar confundida entre papéis, e não acho".
Vê-se, por aí, que a inoculação da varíola foi generalizada em Santos graças à dedicação e aos
pacientes esforços do cirurgião-mor José do Amaral.
E esse fato merece até especial nota porque, em Lisboa, a vacinação só tomou verdadeiro incremento
em 1812, quando a iniciou ali o médico brasileiro Francisco de Melo Franco, o célebre autor do poema O Reino da Estupidez, em cuja feitura se
diz que tivera também parte José Bonifácio. |