Reprodução de trecho da matéria original
Medicina, médicos e clientes
(Aos drs. Ulisses Paranhos, Ernesto de Sousa Campos e José de Melo Rosatelli)
Costa e Silva Sobrinho
Fundada por Braz
Cubas em 1543, devia a Santa Casa da Misericórdia de Santos assinalar o primeiro período da história da Medicina no
Brasil. Isto entretanto não acontece, porque não soube ela conservar em seus arquivos documentação referente à segunda metade do século XVI. E,
assim, ficou destituída dos vultos e fatos que lhe haveriam de augurar o grande lustre dos porvindouros dias.
Agora, portanto, cumpre conformar-nos com o deplorável obscurecimento da sua atuação inicial.
Embora não pudesse ser esta igual á do grande Hospital de Todos os Santos, fundado em Lisboa por d. João II, pelo menos nos daria a satisfação de
conhecer melhor um precioso fragmento do nosso passado, isto é, a infância do primeiro hospital do Brasil.
- Mas a amargura de um desengano não viria logo abalar essa grande satisfação? - perguntar-nos-á
alguém.
E, quase aquiescendo, redargüiremos:
- É bem possível que sim.
Santos ainda era um modesto vilarejo. Não podia ter homens peritos e versados na arte de curar.
O conceito do oratoriano Bernardes, na sua Nova Floresta (3-87), de que "dois
dias de barbeiro é o espaço de tempo necessário para alguém ser médico na aldeia", já ressoava
nos ouvidos do nosso povo.
Habilitados para o exercício da Medicina, vieram durante muito tempo da velha metrópole indivíduos
de uma ignorância radical, absoluta, pasmosa, que aqui pimpolharam em curandeiros e charlatães.
Em 1816, ao tempo da viagem do sábio Saint-Hilaire à província de São Paulo, notava ainda ele:
"Todos os que exerciam então a cirurgia na
cidade de São Paulo e seus arredores eram indivíduos sem educação e sem estudos; e, entre as parteiras, a ignorância era ainda maior. o dr.
Francisco de Melo Franco, filho de um médico célebre, e que era também médico do regimento militar de São Paulo, afirmou-me que para partejar uma
mulher, faziam-na assentar-se sobre uma medida quadrada, denominada meio-alqueire, posição em que várias pessoas a mantinham, enquanto a parteira
recebia a criança, tendo-se o cuidado de sacudir a parturiente, com a intenção de tornar o parto mais fácil"
(Viagem à Prov. de São Paulo, pg. 185).
Frei Caetano Brandão, natural do Porto, bispo do Pará, homem extraordinário, que foi até comparado
a frei Bartolomeu dos Mártires, assim se enunciou a respeito dos médicos da capital lusitana: - "é
melhor tratar-se a gente com um tapuia do sertão, que observa com mais desembaraçado instinto, do que com médico de Lisboa".
Essas palavras amargas, ditas pelo insigne prelado no derradeiro quartel do século XVIII, poderiam
atingir em cheio um médico lisboeta que vivia em Santos naquele tempo, se não houvesse nelas algo de exagero. Referimo-nos ao dr. Joaquim José
Freire da Silva.
Ele era médico da Guarnição Militar de São Paulo, em 1768. Veio em 1769 para Santos.
Alberto Sousa, no primeiro volume, página 285, nota 1,
do seu laureado livro sobre Os Andradas, escreveu que o "dr. Freire... até 1772, ainda
se não achava em Santos". Enganou-se, porém, o abalizado jornalista e historiador.
Nos Documentos Interessantes, vol. 65, pág. 337, encontra-se uma ordem de pagamento que faz
certa a sua residência em Santos, já em 1769.
Reproduzi-la-emos aqui, na sua íntegra:
"O Provedor da Fazenda Real ordena ao
almoxarife da mesma satisfaça ao dr. Joaquim José Freire da Silva, médico do presídio da Praça de Santos, um ano de seus soldos à conta do que se
lhe está devendo, procedendo-se com as clarezas necessárias. São Paulo, a 14 de novembro de 1770".
Em 1771, já era o dr. Freire até relacionado em Santos, como nos dão a saber vários assentos de
batismo daquele tempo. Aqui vão por mostra alguns:
Em 26 de agosto de 1771 foi padrinho de Manuel, filho de José Angelo de Campos; em 6 de novembro
do mesmo ano levou à pia batismal, como padrinho, a inocente Ana, filha de Gertrudes Maria Aranha; em 28 de novembro, ainda desse mesmo ano,
apadrinhou a filha de Antonio Ribeiro, de nome Reginalda. Teve ele, afora esses, mais meia dúzia de outros afilhados.
Era natural de Lisboa, onde possuía bens, tanto que em 28 de junho de 1777 outorgou procuração a
Antônio Gomes de Abreu, Joaquim José da Silva e Almeida, e ao dr. Antônio Freire Torres, todos de Lisboa, com poderes especiais para lá venderem
umas casas, vinhas e olivais pertencentes ao outorgante.
Possuiu em Santos o sítio Conceição (hoje Conceiçãozinha), que
no aviso régio de 1817 vem assim descrito: "Duas mil duzentas e cinqüenta braças de testada, e
duas mil de fundo. Parte de um lado com o rio denominado Santo Amaro, e terras de d. Maria Rosa de Oliveira, e de outro com terras de Itapema, de
Alexandre José Dias. Pertence ao dr. médico do presídio José Joaquim Freire, por título de arrematação dos bens dos extintos jesuítas. Cultiva com
cinco escravos e cinco moradores com suas famílias, estes gratuitamente".
Esse imóvel foi depois vendido ao bacharel José Joaquim Guimarães, que o deu a registro em 30 de
maio de 1856.
Pertencia também ao dr. Freire, em 1801, uma casa em São Vicente. Dos
escravos que possuía, eram alguns tomados de aluguel. Assim, em 1803, vemo-lo fazer recolher à Fazenda do Cubatão,
também dos extintos jesuítas e então entregue à administração do tenente Antônio Coutinho da Silva Xavier, o escravo Benedito, que lhe estava
alugado.
Filho desse médico, e de mãe incógnita, era o padre Joaquim Inácio Moreira, falecido com
testamento nesta cidade, a 30 de junho de 1836.
Já na madureza dos anos, resolveu o dr. Freire casar-se. Ligou o seu destino ao de uma
distintíssima santista, que era d. Rosa Angélica da Silva, filha do capitão Inácio da Silva Costa, e de sua mulher d. Gertrudes Eufrásia dos Reis,
natural de Santos, filha do sargento-mor Torquato Teixeira de Carvalho.
Ademais, era d. Rosa Angélica irmã de d. Luisa Americana dos Reis, que fora desposada com o
tenente Joaquim Roberto de Azevedo Marques, tronco ilustre do qual trazem a descendência bons e numerosos santistas e paulistas.
Com os sacramentos da penitência e da extrema-unção, passou o dr. Freire a melhor vida em 3 de
dezembro de 1818. E d. Rosa Angélica expirou de uma paralisia, na assomada dos setenta anos, a 2 de setembro de 1834. Esse casal não teve prole.
Clínico por excelência, distinguia-se o dr. Freire pela inteligência, pelo trabalho e pela
bondade. Andava ele a pé ou a cavalo. E sempre o acompanhava um escravo com uma pequena mala de mão, onde trazia alguns remédios e instrumentos
cirúrgicos.
A sua terapêutica era simples: dieta, remédios digestivos, evacuantes e alterantes, e sangrias sob
todas as formas. Aliás, das extrações sanguíneas usaram e abusaram imensamente os médicos antigos.
A sangria foi outrora o grande remédio, foi o remédio universal. Uma das formas de sangrar estava,
por exemplo, na aplicação de sanguessugas. Conta-se mesmo, a esse propósito, que em 1824 havia a França importado da Ásia Menor oitenta milhões de
sanguessugas, o que levou Daremberg a escrever: - "Napoleão dizimou a França; e Broussais a
dessangrou".
As doenças que então grassavam em Santos eram sobretudo a maligna, o fluxo de sangue, a diarréia
sanguínea, a hética (tuberculose pulmonar) e mais algumas outras.
Citemos apenas um exemplo:
Em 1822, nesse memorável ano da Independência, faleceram em Santos 133 pessoas. Ponhamos a rol as
principais moléstias de que elas morreram: de moléstias incógnitas, 36 pessoa; de maligna, 18; de fluxo de sangue, 9; de diarréia sanguínea, 9; de
hética, 8; de hidropsia, 5; de lombrigas, 4; de sarampo, 3; de febre podre, 3; de apoplexia, 3; de reumatismo, 2; de obstrução, 2; de bexigas, 1 e
de estupor, 1; e assim por diante.
Vê-se por aí que a medicina daquele tempo era como os mapas antigos, nos quais encontramos muitas
regiões assinaladas com esta expressão: - "terras incógnitas".
A "maligna" matava muita gente, não só em Santos, mas também no Brasil inteiro. Ela compreendia um
vasto número de infecções cuja sintomatologia era de difícil diferenciação. Tratava-a o dr. Freire com sangrias, purgas, xarope de azedo de cidra,
água de Inglaterra e infusões de plantas medicinais.
Esse homem, quando já de provecta idade, raramente saía de casa. Por isso, o físico-mor das tropas
da capitania de São Paulo, João Alvares Fragoso, informando ao conde de Linhares, em 16 de abril de 1811, a respeito do Hospital Real Militar da
Vila de Santos, assim se referiu ao dr. Freire: "Há um médico que serve neste Hospital Real há
mais de 40 anos. Ele é velho e cheio de moléstias, e por isso só vai ao hospital quando pode ser, quando há precisão urgente. Tem de ordenado
200$000. Tem um cirurgião-mor, o qual supre também as faltas do médico, alternativamente com o cirurgião-mor do Regimento aos meses. Ele tem de
ordenado 240$000".
O cirurgião-mor do Regimento de Caçadores da Praça de Santos era José do Amaral e o outro
cirurgião-mor do presídio era João Batista Teixeira.
Deram-se, enfim, com o dr. Freire, quando morou em Santos, alguns casos interessantes. Eis um
deles:
Em 1775 tomava posse do cargo de governador de São Paulo Martim Lopes Lobo de Saldanha, homem de
temperamento irascível e despótico.
Tratou ele, em 1780, de um modo enormemente severo e rancoroso o venerando paulista coronel
Policarpo Joaquim de Oliveira, chegando a chamar-lhe "cabeça de motim",
porque este, "achando-se no Rio de Janeiro em serviço, assoalhara a notícia conhecidamente
falsa da sua exoneração do governo, assustando assim o povo".
Regressando o coronel Policarpo a São Paulo, ordenou o governador a sua prisão em um dos
calabouços da fortaleza da Barra Grande de Santos, e com sentinela à vista. E ali permaneceu ele até o primeiro
trimestre de 1782, isto é, todo o resto do tempo do governo de Lobo de Saldanha. Destarte, foi relaxado da prisão só depois da chegada do novo
governador Francisco da Cunha Menezes.
Quando o coronel Policarpo estava preso, sobreveio-lhe porém uma grave moléstia, causada pela
insalubridade do cárcere, segundo verificara o dr. Freire. Pelo que, o comandante da Vila de Santos, de combinação com o da fortaleza, requisitou a
mudança do preso para outra prisão melhor.
A isso respondeu furioso o governador que "nada
tinha com a saúde do coronel Policarpo, tendo muito contra a sua liberdade, pelo justo castigo que mereceu a sua soltura de língua, para quem e para
os que fosse achando tão maus vassalos como ele, mandava aprontar um outro calabouço".
E ainda mais. Censurando em seguida o comandante da fortaleza pela imprudência de deixar-se levar
pelas insinuações do preso, estendeu o governador suas invectivas contra o médico, a respeito do qual dizia, acrescentando uma obscenidade ao
escárnio, que "só faltou pedir mulher para o preso, a fim de não padecer este alguma retenção".
Para as consciências extremes de malícia há nessa frase um sentido implícito, que é o seguinte: na
alma desse médico floria a mais pura bondade. (N.E.: no livro, este parágrafo foi substituído
pelo autor por: "Conclui-se daí que Martim Lopes, sobre ter sido desequilibrado, prepotente, mesquinho, foi ainda cínico e impudente. Belos
predicados para o látego da história!") |