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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - MEDICINA
Medicina, médicos e clientes (1)

Nos tempos dos primeiros médicos em terras santistas
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Esta série de artigos dentro da coluna Santos Noutros Tempos, que depois seria reunida pelo autor Costa e Silva Sobrinho como parte da obra Romagem pela Terra dos Andradas, foi publicada no jornal santista A Tribuna, enfocando assuntos médicos na Santos do final do século XIX e início do século XX. Este artigo foi publicado na página 19 (segundo caderno) da edição de 20 de maio de 1951 (ortografia atualizada nesta transcrição):
 


Reprodução da matéria original

Medicina, médicos e clientes

(Aos drs. Paulo Teixeira de Carvalho, Artur Domingues Pinto e Clóvis de Lacerda)

Costa e Silva Sobrinho

Havia no Rio de Janeiro, no século passado (N.E.: século XIX), um homem que amava aquela cidade com infinita ternura. Não se contentava ele, por isso, de ser um contemplador estático das suas maravilhas e do seu povo. Ia muito além. Investigava nos arquivos o seu passado. E, com amena erudição,  escrevia-lhe a história. Era Joaquim Manuel de Macedo, o conhecido e fecundo romancista da Moreninha, do Moço Loiro e de tantos outros livros em cuja leitura se deleitou e embeveceu a nossa mocidade descuidosa.

Outras de suas obras, como Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro e Memórias da Rua do Ouvidor, constituíram depois novos espairecimentos para o nosso espírito.

E, por causa desta última obra, vem-nos agora à lembrança o seguinte fato:

Em Santos, há também uma rua que, como a do Ouvidor, no Rio, bem merecia ter o seu romancista-historiador. É a Rua 15 de Novembro.

Ela nos fala muito à imaginação, não só pelo que ali podemos observar no presente, senão também pela sua vida no passado, pelas figuras que nela residiram, ou exerceram o comércio, pelos episódios em suma de que foi palco.

As Memórias da Rua Quinze formar-se-iam, assim, de coisas e fatos do nosso tempo e de vozes do passado.

Agora, por exemplo, no número 96 dessa rua funciona a Casa Bancária Ribeiro Carvalho. O prédio é relativamente moderno.

Na segunda metade do século XVIII, existia quase no mesmo lugar um sobrado de longo beiral e janelas de rótula.

Era então a quarta casa da Rua Direita, indo-se dos Quatro Cantos para a ponte do Carmo, da parte do campo. Dividia de um lado com uma casa de dois pavimentos, pertencente a Bonifácio José de Andrada, onde carregados de anos viviam em 1765 os pais deste; e do outro lado confrontava com casa dos religiosos do Carmo.

Residiam na referida casa, nesse mesmo ano, Manuel José da Silva e sua esposa, d. Maria Rosa de Andrada, genro e filha do médico dr. José Bonifácio de Andrada.

Nascido em Santos, foi esse ilustre facultativo batizado na igreja paroquial a 21 de maio de 1706, por frei Manuel da Purificação, religioso carmelita.

Em 5 de junho de 1737, formava-se ele em ciências físicas e médicas pela Universidade de Coimbra. Em 1739 já clinicava em sua terra natal com o melhor resultado.

Desde 1730 vinha a Câmara da vila de Santos pedindo com insistência a d. João V um médico que pudesse tratar dos enfermos, tanto desta vila como das circunvizinhas, e também dos da guarnição militar e dos pobres do Hospital da Misericórdia.

Não havia, então, em Santos, quem soubesse receitar um remédio. Morriam os doentes nas mãos inexpertas de alguns charlatães.

A Câmara por sua vez andava sem rendas. As que costumava arrecadar provinham do imposto das bebidas. Produziam 600$666, pouco mais ou menos. Mas Sua Majestade mandara que fosse ele recolhido aos cofres da Fazenda Real em conseqüência do tributo lançado à vila de Santos para completar o dote da rainha da Grã-Bretanha.

Em representação de 12 de agosto de 1730 os oficiais da Câmara apontavam um meio de solucionar o caso, dizendo: - "... e como Vossa Majestade na Universidade de Coimbra esteja concorrendo para médicos que se formam com a obrigação de irem para onde seja necessário, suplicam este remédio da proteção de Vossa Majestade".

Ouvido o procurador da Coroa, opinou ele que a vila de Santos não concorria, como as do Reino, para as exíguas despesas dos médicos que iam estudar em Coimbra. Não havia razão, portanto, para obrigar aos que nela se formavam a ir clinicar em região tão remota.

Por provisão de 18 de junho de 1731, resolveu-se ordenar que o provedor da Fazenda Real da Praça de Santos informasse sobre os rendimentos que possuía a Câmara, que subsídio lhe tinham tirado e qual a sua importância.

Em carta de 5 de agosto de 1732, respondeu o provedor dizendo que tudo quanto a Câmara expunha era verdade. E, sobre o subsídio das bebidas, acrescentava que tinha sido uma imposição que se lançara à vila de Santos para o dote da rainha da Grã-Bretanha. Que satisfeito o lançamento, ficara a Câmara encarregada da sua arrecadação. Mas, como tinha dado má conta relativamente ao destino do dinheiro recebido, ordenara Sua Majestade a incorporação do imposto à Fazenda Real.

O Conselho Ultramarino opinou, enfim, que se desse 100$000 de ordenado por ano a um médico com a obrigação de curar os soldados da Praça.

A resolução do rei, em 14 de novembro de 1733, foi nesse sentido.

Era muito parco, entretanto, o estipêndio concedido.

Por isso, em 1744, representaram ao rei os oficiais da Câmara solicitando aumento daqueles vencimentos. Só assim se poderia "conservar naquela praça o doutor José Bonifácio de Andrada", que se recusava a aceitar aquele posto diante de tão minguados salários. Demais, o cirurgião-mor percebia 180$000. Ele, por menos de 200$000, não ficaria.

A Câmara dirigia-se agora mais uma vez ao rei, e dessa feita com o reforço dos oficiais da Infantaria da vila.

Elucidaram que, pela tenuidade do ordenado, ninguém queria aceitar o encargo. Achava-se então na praça "o bacharel José Bonifácio de Andrada, médico perito e diligente", que desejava ausentar-se pela pouca vantagem que lhe oferecia a guarnição militar da Praça. Pediram destarte ao general da Capitania que ordenasse ao provedor da Fazenda Real que desse mais 100$000, ao referido médico, a fim de que ele não se fosse embora.

Conveio no aumento o general. Mas o rei discordou, determinando que se suspendesse o seu pagamento. Tendo conhecimento disso, procurou desde logo o médico ausentar-se da Praça, por lhe não convir tão tênue ordenado para tão grande trabalho.

Esse fato e uma representação que os oficiais militares fizeram ao general, compeliram-no a conseguir do médico que suspendesse a sua viagem até que o assunto fosse decidido pelo rei.

Enfim, depois de muita luta e descompassados aranzéis, concordou com o aumento o monarca.

Eis a provisão pela qual o rei mandou pagar mais 100$000, de ordenado, em cada ano, ao médico do presídio, José Bonifácio de Andrada:

"Dom João por graças de Deus rei de Portugal e dos Algarves, d'aquém e d'além mar em África e Senhor da Guiné etc.

"Faço saber a vós governador e capitão-general da Capitania de S. Paulo, que se viu a vossa carta de 2 de setembro do ano passado, em que dava conta da representação que vos fizeram os oficiais de Infantaria da Praça de Santos sobre a utilidade que se tinha seguido, não só à mesma Infantaria, mas ainda a todos aqueles moradores, da assistência e caridade que com eles usava nas suas enfermidades o médico José Bonifácio de Andrada, curando-os com muito acerto, pela sua grande experiência, não havendo outro na dita praça, e do prejuízo que viriam a padecer se se ausentasse de lá, como intentava, com o fundamento de lhe não dar mais que 100$000 de ordenado cada ano pela Provedoria da mesma praça, tendo o cirurgião-mor dela 180$000. Pelo que, vos requeriam me expusesse o referido para eu haver de atender ao dano que resultava àquele presídio na falta do dito médico, e visto me representarem a grande necessidade que havia dele, o que também me fizeram presente os oficiais da dita Câmara da vila de Santos, sobre o que foi ouvido o procurador da minha Fazenda.

"Fui servido, por resolução de 21 de maio deste presente ano, em consulta do meu Conselho Ultramarino, fazer mercê ao dito médico José Bonifácio de Andrada de lhe aumentar mais 100$000 de partido, de que vos aviso para que assim o tenhais entendido e fazer cumprir esta minha resolução.

"El-rei nosso senhor o mandou por Alexandre de Gusmão e Tomé Joaquim da Costa Corte Real, conselheiros do seu Conselho Ultramarino e se passou por duas vias. - Caetano Ricardo da Silva a fez em Lisboa a 6 de agosto de 1745".

Continuou assim o dr. José Bonifácio de Andrada a clinicar em sua terra natal. Tinha ele casado em S. Paulo, no dia 1º de agosto de 1732, com d. Rosa Ribeiro da Silva, filha de José Dias da Silva e d. Leonor Correia de Abreu; e neta do intrépido bandeirante Estevão Raposo Bocarro e d. Maria de Abreu Pedroso Leme (Taunay, Hist. Geral das Bandeiras, 9, 343).

Teve desse consórcio em 1740 uma filha única, que ficou cega ainda na infância, quando afetada de varíola - cegueira que mergulhou aquela pobre criança na tristeza das trevas, transformando-lhe o mundo em cripta sem fresta alguma por onde lucilasse a menor claridade, mas que a fez sentir e compreender a incomensurabilidade do amor paterno. Dobaram-se-lhe, por isso, os anos da meninice como o cenário de um teatro mágico de bonecas e de boas fadas.

Chamava-se ela Maria Rosa de Andrada e se aliançou por casamento com Manuel José da Silva, natural da freguesia de S. Miguel, comarca de Guimarães, arcebispado de Braga, e que vivia do ofício de tabelião. Teve por sua vez uma filha, nascida em Santos, e batizada com o nome de Ana, a 3 de novembro de 1771.

O dr. José Bonifácio de Andrada viuvou aos dezesseis anos de casado, ficando a filha com oito anos apenas. Sentiu-se então duramente apalpado pelo infortúnio. Com a ausência da mulher entrou-lhe no coração uma entranhável saudade.

Tinha o dr. José Bonifácio de Andrada dois irmãos padres. Resolveu seguir-lhes o exemplo, completando o brilho do seu espírito com a perfeição cristã.

A sua vontade de abraçar o estado eclesiástico encontrou, porém, um obstáculo. Era a índole essencialmente materialista dos estudos próprios da sua profissão de médico. E ele não podia abandoná-la de repente, não só pela imensa falta que faria ao povo de sua terra, como também porque de sua arte é que tirava a maior parte dos recursos com que se mantinha. (Alberto Sousa, Os Andradas, 1, 283).

Graças a d. Bernardo Rodrigues Nogueira, primeiro bispo de São Paulo, conseguiu que o papa Bento XIV, pelo breve apostólico de 28 de agosto de 1749, o dispensasse daquele impedimento. Em 15 de março de 1752, tomou, enfim, ordens sacras e foi sacerdote do hábito de S. Pedro.

Durante mais de trinta anos exerceu ele a clínica na sua terra. Homem extremo na virtude e forte no saber, mereceu do Morgado de Mateus um insigne elogio quando, entre os fundamentos da mercê concedida a Bonifácio José de Andrada, mencionou o fato de "ser este irmão legítimo do defunto reverendo doutor José Bonifácio de Andrada, o qual serviu a Sua Majestade no emprego de médico da Guarnição no espaço de 23 anos".

Foi ele, provavelmente, o primeiro médico nascido em terras paulistas.

Merece o seu nome ficar gravado na lembrança dos vivos. As suas ações o imortalizaram.

O mesmo jornal publicou, em 29 de abril de 1951, na página 19, segundo caderno (ortografia atualizada nesta transcrição):


Reprodução de trecho da matéria original

Medicina, médicos e clientes

(Aos drs. Ulisses Paranhos, Ernesto de Sousa Campos e José de Melo Rosatelli)

Costa e Silva Sobrinho

Fundada por Braz Cubas em 1543, devia a Santa Casa da Misericórdia de Santos assinalar o primeiro período da história da Medicina no Brasil. Isto entretanto não acontece, porque não soube ela conservar em seus arquivos documentação referente à segunda metade do século XVI. E, assim, ficou destituída dos vultos e fatos que lhe haveriam de augurar o grande lustre dos porvindouros dias.

Agora, portanto, cumpre conformar-nos com o deplorável obscurecimento da sua atuação inicial. Embora não pudesse ser esta igual á do grande Hospital de Todos os Santos, fundado em Lisboa por d. João II, pelo menos nos daria a satisfação de conhecer melhor um precioso fragmento do nosso passado, isto é, a infância do primeiro hospital do Brasil.

- Mas a amargura de um desengano não viria logo abalar essa grande satisfação? - perguntar-nos-á alguém.

E, quase aquiescendo, redargüiremos:

- É bem possível que sim.

Santos ainda era um modesto vilarejo. Não podia ter homens peritos e versados na arte de curar.

O conceito do oratoriano Bernardes, na sua Nova Floresta (3-87), de que "dois dias de barbeiro é o espaço de tempo necessário para alguém ser médico na aldeia", já ressoava nos ouvidos do nosso povo.

Habilitados para o exercício da Medicina, vieram durante muito tempo da velha metrópole indivíduos de uma ignorância radical, absoluta, pasmosa, que aqui pimpolharam em curandeiros e charlatães.

Em 1816, ao tempo da viagem do sábio Saint-Hilaire à província de São Paulo, notava ainda ele:

"Todos os que exerciam então a cirurgia na cidade de São Paulo e seus arredores eram indivíduos sem educação e sem estudos; e, entre as parteiras, a ignorância era ainda maior. o dr. Francisco de Melo Franco, filho de um médico célebre, e que era também médico do regimento militar de São Paulo, afirmou-me que para partejar uma mulher, faziam-na assentar-se sobre uma medida quadrada, denominada meio-alqueire, posição em que várias pessoas a mantinham, enquanto a parteira recebia a criança, tendo-se o cuidado de sacudir a parturiente, com a intenção de tornar o parto mais fácil" (Viagem à Prov. de São Paulo, pg. 185).

Frei Caetano Brandão, natural do Porto, bispo do Pará, homem extraordinário, que foi até comparado a frei Bartolomeu dos Mártires, assim se enunciou a respeito dos médicos da capital lusitana: - "é melhor tratar-se a gente com um tapuia do sertão, que observa com mais desembaraçado instinto, do que com médico de Lisboa".

Essas palavras amargas, ditas pelo insigne prelado no derradeiro quartel do século XVIII, poderiam atingir em cheio um médico lisboeta que vivia em Santos naquele tempo, se não houvesse nelas algo de exagero. Referimo-nos ao dr. Joaquim José Freire da Silva.

Ele era médico da Guarnição Militar de São Paulo, em 1768. Veio em 1769 para Santos.

Alberto Sousa, no primeiro volume, página 285, nota 1, do seu laureado livro sobre Os Andradas, escreveu que o "dr. Freire... até 1772, ainda se não achava em Santos". Enganou-se, porém, o abalizado jornalista e historiador.

Nos Documentos Interessantes, vol. 65, pág. 337, encontra-se uma ordem de pagamento que faz certa a sua residência em Santos, já em 1769.

Reproduzi-la-emos aqui, na sua íntegra:

"O Provedor da Fazenda Real ordena ao almoxarife da mesma satisfaça ao dr. Joaquim José Freire da Silva, médico do presídio da Praça de Santos, um ano de seus soldos à conta do que se lhe está devendo, procedendo-se com as clarezas necessárias. São Paulo, a 14 de novembro de 1770".

Em 1771, já era o dr. Freire até relacionado em Santos, como nos dão a saber vários assentos de batismo daquele tempo. Aqui vão por mostra alguns:

Em 26 de agosto de 1771 foi padrinho de Manuel, filho de José Angelo de Campos; em 6 de novembro do mesmo ano levou à pia batismal, como padrinho, a inocente Ana, filha de Gertrudes Maria Aranha; em 28 de novembro, ainda desse mesmo ano, apadrinhou a filha de Antonio Ribeiro, de nome Reginalda. Teve ele, afora esses, mais meia dúzia de outros afilhados.

Era natural de Lisboa, onde possuía bens, tanto que em 28 de junho de 1777 outorgou procuração a Antônio Gomes de Abreu, Joaquim José da Silva e Almeida, e ao dr. Antônio Freire Torres, todos de Lisboa, com poderes especiais para lá venderem umas casas, vinhas e olivais pertencentes ao outorgante.

Possuiu em Santos o sítio Conceição (hoje Conceiçãozinha), que no aviso régio de 1817 vem assim descrito: "Duas mil duzentas e cinqüenta braças de testada, e duas mil de fundo. Parte de um lado com o rio denominado Santo Amaro, e terras de d. Maria Rosa de Oliveira, e de outro com terras de Itapema, de Alexandre José Dias. Pertence ao dr. médico do presídio José Joaquim Freire, por título de arrematação dos bens dos extintos jesuítas. Cultiva com cinco escravos e cinco moradores com suas famílias, estes gratuitamente".

Esse imóvel foi depois vendido ao bacharel José Joaquim Guimarães, que o deu a registro em 30 de maio de 1856.

Pertencia também ao dr. Freire, em 1801, uma casa em São Vicente. Dos escravos que possuía, eram alguns tomados de aluguel. Assim, em 1803, vemo-lo fazer recolher à Fazenda do Cubatão, também dos extintos jesuítas e então entregue à administração do tenente Antônio Coutinho da Silva Xavier, o escravo Benedito, que lhe estava alugado.

Filho desse médico, e de mãe incógnita, era o padre Joaquim Inácio Moreira, falecido com testamento nesta cidade, a 30 de junho de 1836.

Já na madureza dos anos, resolveu o dr. Freire casar-se. Ligou o seu destino ao de uma distintíssima santista, que era d. Rosa Angélica da Silva, filha do capitão Inácio da Silva Costa, e de sua mulher d. Gertrudes Eufrásia dos Reis, natural de Santos, filha do sargento-mor Torquato Teixeira de Carvalho.

Ademais, era d. Rosa Angélica irmã de d. Luisa Americana dos Reis, que fora desposada com o tenente Joaquim Roberto de Azevedo Marques, tronco ilustre do qual trazem a descendência bons e numerosos santistas e paulistas.

Com os sacramentos da penitência e da extrema-unção, passou o dr. Freire a melhor vida em 3 de dezembro de 1818. E d. Rosa Angélica expirou de uma paralisia, na assomada dos setenta anos, a 2 de setembro de 1834. Esse casal não teve prole.

Clínico por excelência, distinguia-se o dr. Freire pela inteligência, pelo trabalho e pela bondade. Andava ele a pé ou a cavalo. E sempre o acompanhava um escravo com uma pequena mala de mão, onde trazia alguns remédios e instrumentos cirúrgicos.

A sua terapêutica era simples: dieta, remédios digestivos, evacuantes e alterantes, e sangrias sob todas as formas. Aliás, das extrações sanguíneas usaram e abusaram imensamente os médicos antigos.

A sangria foi outrora o grande remédio, foi o remédio universal. Uma das formas de sangrar estava, por exemplo, na aplicação de sanguessugas. Conta-se mesmo, a esse propósito, que em 1824 havia a França importado da Ásia Menor oitenta milhões de sanguessugas, o que levou Daremberg a escrever: - "Napoleão dizimou a França; e Broussais a dessangrou".

As doenças que então grassavam em Santos eram sobretudo a maligna, o fluxo de sangue, a diarréia sanguínea, a hética (tuberculose pulmonar) e mais algumas outras.

Citemos apenas um exemplo:

Em 1822, nesse memorável ano da Independência, faleceram em Santos 133 pessoas. Ponhamos a rol as principais moléstias de que elas morreram: de moléstias incógnitas, 36 pessoa; de maligna, 18; de fluxo de sangue, 9; de diarréia sanguínea, 9; de hética, 8; de hidropsia, 5; de lombrigas, 4; de sarampo, 3; de febre podre, 3; de apoplexia, 3; de reumatismo, 2; de obstrução, 2; de bexigas, 1 e de estupor, 1; e assim por diante.

Vê-se por aí que a medicina daquele tempo era como os mapas antigos, nos quais encontramos muitas regiões assinaladas com esta expressão: - "terras incógnitas".

A "maligna" matava muita gente, não só em Santos, mas também no Brasil inteiro. Ela compreendia um vasto número de infecções cuja sintomatologia era de difícil diferenciação. Tratava-a o dr. Freire com sangrias, purgas, xarope de azedo de cidra, água de Inglaterra e infusões de plantas medicinais.

Esse homem, quando já de provecta idade, raramente saía de casa. Por isso, o físico-mor das tropas da capitania de São Paulo, João Alvares Fragoso, informando ao conde de Linhares, em 16 de abril de 1811, a respeito do Hospital Real Militar da Vila de Santos, assim se referiu ao dr. Freire: "Há um médico que serve neste Hospital Real há mais de 40 anos. Ele é velho e cheio de moléstias, e por isso só vai ao hospital quando pode ser, quando há precisão urgente. Tem de ordenado 200$000. Tem um cirurgião-mor, o qual supre também as faltas do médico, alternativamente com o cirurgião-mor do Regimento aos meses. Ele tem de ordenado 240$000".

O cirurgião-mor do Regimento de Caçadores da Praça de Santos era José do Amaral e o outro cirurgião-mor do presídio era João Batista Teixeira.

Deram-se, enfim, com o dr. Freire, quando morou em Santos, alguns casos interessantes. Eis um deles:

Em 1775 tomava posse do cargo de governador de São Paulo Martim Lopes Lobo de Saldanha, homem de temperamento irascível e despótico.

Tratou ele, em 1780, de um modo enormemente severo e rancoroso o venerando paulista coronel Policarpo Joaquim de Oliveira, chegando a chamar-lhe "cabeça de motim", porque este, "achando-se no Rio de Janeiro em serviço, assoalhara a notícia conhecidamente falsa da sua exoneração do governo, assustando assim o povo".

Regressando o coronel Policarpo a São Paulo, ordenou o governador a sua prisão em um dos calabouços da fortaleza da Barra Grande de Santos, e com sentinela à vista. E ali permaneceu ele até o primeiro trimestre de 1782, isto é, todo o resto do tempo do governo de Lobo de Saldanha. Destarte, foi relaxado da prisão só depois da chegada do novo governador Francisco da Cunha Menezes.

Quando o coronel Policarpo estava preso, sobreveio-lhe porém uma grave moléstia, causada pela insalubridade do cárcere, segundo verificara o dr. Freire. Pelo que, o comandante da Vila de Santos, de combinação com o da fortaleza, requisitou a mudança do preso para outra prisão melhor.

A isso respondeu furioso o governador que "nada tinha com a saúde do coronel Policarpo, tendo muito contra a sua liberdade, pelo justo castigo que mereceu a sua soltura de língua, para quem e para os que fosse achando tão maus vassalos como ele, mandava aprontar um outro calabouço".

E ainda mais. Censurando em seguida o comandante da fortaleza pela imprudência de deixar-se levar pelas insinuações do preso, estendeu o governador suas invectivas contra o médico, a respeito do qual dizia, acrescentando uma obscenidade ao escárnio, que "só faltou pedir mulher para o preso, a fim de não padecer este alguma retenção".

Para as consciências extremes de malícia há nessa frase um sentido implícito, que é o seguinte: na alma desse médico floria a mais pura bondade. (N.E.: no livro, este parágrafo foi substituído pelo autor por: "Conclui-se daí que Martim Lopes, sobre ter sido desequilibrado, prepotente, mesquinho, foi ainda cínico e impudente. Belos predicados para o látego da história!")

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