Esta fotografia, do arquivo particular do Eugênio Gaeta,
mostra um dos primeiros banhos de D. Dorotéia
Foto e legenda publicadas com a matéria
Assim nasceu a D. Dorotéia
Motta Netto
Era princípio de 1923. Pinto Filho,
com o seu "21 na zona", fazia, todas as noites, as delícias da platéia do Teatro Guarani. Era uma comédia musicada,
salgadíssima para a época, e que, embora com roteiro traçado em enredo que se untava de contínuo bom humor, sofria, de quando em quando, a
interferência (sempre aplaudida), de sketchs, cortinas e, sobretudo, de desengonçados saracoteios ao som endiabrado de infernais
maxixes.
A essas interrupções no desdobramento da peça, chamava-se apresentação de
números. E foi um desses números que deu o nome ao banho carnavalesco que hoje empolga a cidade momística.
***
Luiz Vieira de Carvalho tinha vindo do Rio. Carioca, toda a gente sabe
disso, é sinônimo de folião. Mas santista - e quem é que ignora tal coisa? - também possui no sangue a quentura enlouquecedora do fandango
carnavalesco.
Luiz Vieira de Carvalho sentiu isso. Sentiu que ao santista, tal como ao
carioca, Carnaval é razão de ser de sua existência. O meio era bom, portanto, para reverenciar o Rei Momo das Praias. E lembrou-se de criar, em
Santos, o que se fazia, há alguns anos, no Rio de Janeiro: banho de mar a fantasia.
Os clubes de remo da capital da República, localizados em Santa Luzia - o
Boqueirão, o Vasco da Gama, o Natação, o Internacional de Regatas - e até mesmo os mais distantes - o Guanabara, o Flamengo, o Botafogo de Regatas,
o S. Cristovão - todos realizavam, isoladamente ou em conjunto, o carnaval aquático. E por que não fazê-lo em Santos?
Luiz Vieira contou a seu amigo Oscar Pimentel a sua idéia. Pimentel achou
ótima. Traçaram-se planos. O Saldanha da Gama seria o instituidor do banho: a rapaziada se reuniria na garagem,
haveria uma passeata interna, e depois, então, surgiria o banho propriamente dito.
- "E o nome que daremos?", indagou Oscar Pimentel.
- "O nome é que está difícil de escolher. Passei o dia todo pensando
nisso... e, nada! Mas há de aparecer! Vou pensar novamente".
- "Mas não agora! Agora, nós vamos - afirmou Oscar Pimentel - nós vamos é ao
Guarani, porque as cadeiras já estão compradas".
E lá se foram, Oscar Pimentel e Luiz Vieira de Carvalho, a
caminho da Praça dos Andradas.
***
Era logo um dos primeiros números. Pinto Filho entrava em cena quase
escura, vestido com roupa de banho de mar. Ao fundo, uma praia, e, nela, a crista branca de uma onda maior. Parada, de costas para a platéia,
escultural em sua forma, envolvida pelas sombras e tendo a encobri-la um guarda-sol muito grande, lá estava uma banhista do outro mundo...
O ato era silencioso. Pinto Filho vinha com aquele jeitão todo seu, alisando
os bigodes, soltando assobios, esses mesmos assobios que toda a gente pensa que só agora é que se estridulam quando se vê uma dona boa, mas
que Adão já teve de usá-los ao se defrontar com Eva...
E dirigindo-se, por fim, ao vulto da banhista, Pinto Filho lançou o convite
em voz tonitruante:
-"Dona Dorotéia, vamos furar aquela onda?"
A banhista não respondeu. Nem se virou. E Pinto Filho, ar mais malandro do
que nunca, tornou a indagar:
-"Dona Dorotéia, vamos furar aquela onda?"
Aí, então, a banhista, toda trejeitos, fez a volta,
vagarosamente, sobre si mesma, e quando os jorros de luz bateram-lhe na face, era a velha mais feia deste mundo que surgia aos olhares do público,
enquanto Pinto Filho, esbaforido, corria para os bastidores, tomado de pavor...
***
Na rua, após o espetáculo, Luiz Vieira de Carvalho afirmou a Oscar Pimentel
que o nome já estava escolhido. Oscar Pimentel quis saber qual seria. E Luiz Vieira de Carvalho, voz pausada, procurando imitar o Pinto Filho:
-"Dona Dorotéia, vamos furar aquela onda?"
***
Toda a gente gostou do nome. E a idéia do banho tomou vulto cada vez maior.
O núcleo central era o Saldanha, mas o Internacional, com o Feliciano Primo Ferreira (Javali) e Dawdson Muniz (Whisky)
à sua frente, também se tornou gigante na iniciativa. O Eugênio Gaeta, que nas rodas carnavalescas possuía uma denominação das mais curiosas -
Lord Chafariz de Asneiras com Registro Quebrado - contribuiu, grandemente, para os preparativos. Foi ele quem, de baleeira, lá se foi para a
praia do Góis, em busca de bambus, de bananeiras, de pencas de coco, de flores silvestres, tudo para vestir os
componentes do banho.
Nos primeiros desfiles havia apenas a D. Dorotéia como figura de escol. O
casamento ainda não entrara na programação, e somente a D. Dorotéia é quem aparecia em destaque. Quem encarnou D. Dorotéia pela primeira vez foi
Luiz Vieira de Carvalho. E o seu travesti permitiu a visão de uma velha horrenda, que viajou, sentada na capota arriada do landau. O carro
era da Empresa Serra. O "seu" Serra quis mandar fazer uma limpeza no veículo.
-"Não, senhor! Mande mesmo como está".
-"Mas está velhíssimo, empoeiradíssimo".
-"Não faz mal - esclarecia Luiz Carvalho - mande assim mesmo, porque assim
mesmo é que tem graça".
E tinha graça mesmo, aquele carro de casamento, velhíssimo, teia de aranha
em todos os cantos, poeira em todas as superfícies, conduzindo a D. Dorotéia, que era o Luiz Carvalho, o então famoso Lord Gorila.
Depois, em 1925, houve algo que jamais alguém esqueceu. Foi o John Cross,
fazendo o papel de D. Dorotéia, já com vestido de noiva, dentro de uma redoma, e... fumando um charuto de palmo e meio de comprimento.
O Bloco Pé no Fundo, do Internacional, sempre com Javali e
Whisky a animar os folguedos, ganhou em Alpe Rutigliano uma figura de projeção, tanto mais que sua voz magnífica punha novos encantos no banho
cada vez mais sensacional.
Havia, porém, a luta financeira. Dinheiro pouco. Tudo rapaziada sem posses.
A polícia não permitia livros de ouro. E assim o recurso era o Eugenio Gaeta continuar remando, todos os anos, para a praia do Góis, de onde
vinha com a baleeira repleta de fantasias que a natureza dava...
Às vezes, o Cristalino Mesquita arranjava a contribuição de um
estabelecimento do Gonzaga, na importância de 10 ou 20 cruzeiros, e aquilo, àquela época, ajudava que não era
brincadeira...
Certa ocasião, a caminho do Embaré, ia o banho,
em efervescência, pelo asfalto, quando sucedeu uma tragédia: quebrou-se o eixo da roda do carro da D. Dorotéia. os primeiros instantes foram de
aborrecimento. Mas, depois, D. Dorotéia foi sustida nos ombros da turma, carregada ao ar, e rumou, em triunfo, avenida afora, a caminho do Gonzaga.
Uma noiva de sucesso foi o Pituca, que fora do Carnaval se chama Berl
Júnior. Pituca, de noiva, ficava uma uva. Muita gente teve que apanhar porque cismou em garantir e querer comprovar que o Pituca era
moça mesmo...
Jimmi Harding era outro astro do banho. O campeão sul-americano de remo
também o era em folguedos de Momo.
Luiz Carvalho deu um jeito, com sucesso, para que
surgissem os sultões e o banho descambou para o cenário dos haréns, todo o mundo desfilando na cadência complicada das odaliscas...
Mas para demonstrar que o banho era poliglota, o ritmo era marcado pelo som de gorduchas gaitas galegas...
***
Vieram os barris de chope aparecendo no banho,
acondicionados nos caminhões enfeitados com cores berrantes. E o espírito ganhou reforços de alto valor. D. Dorotéia foi-se tornando tradição
nos carnavais da cidade e, por ocasião da guerra, existindo o racionamento da gasolina, os caminhões não puderam trafegar.
E quando toda a gente julgou que não haveria banho,
eis que uma comissão se encaminhou à Cia. City, bateu papo com o gerente e, no domingo anterior ao Domingo Gordo, lá estava
Dona Dorotéia confortavelmente instalada em bondes de gôndola, a cumprir o seu itinerário e o seu já glorioso destino.
***
Nem sempre o banho se estendia até o Gonzaga. Às
vezes ficava mesmo lá pela Ponta da Praia. Quando a coragem era maior, chegava até o Boqueirão, ali à altura do
Miramar, e voltava, às pressas, para cair na água. Água dupla, entenda-se bem...
Quem deu grande estímulo e decisão ao banho foi,
sem dúvida, o bloco Dengosas do Marapé. Carlito Tavares reuniu sua rapaziada, vestiu-a com gosto, com apuro,
ensaiou conjuntos musicais e proporcionou ação e vida ao banho, a este mesmo banho que, agora, é um dos motivos de orgulho do Carnaval
brasileiro, prestigiado, entre outros, pelo Bloco Favoritas do Sultão, tri-campeão doroteano.
Trinta e três anos se passaram após aquela noite, no
teatro Guarani, em que uma frase de Pinto Filho inspirou Luiz Vieira de Carvalho para a denominação de um banho de mar a fantasia.
Naquele tempo era o sonho em início, um sonho que, por
vezes, se entremeava de pesadelos, como o daquela feita em que os cavalos alugados para tomar parte no desfile, e quando já o cortejo caminhara mais
de um quilômetro, se negaram a prosseguir, porque haviam descoberto, ali junto à avenida, um terreno baldio onde capim do bom estava dando sopa... E
não houve pancada no lombo dos animais que os tirasse das moitas gostosas...
Mas sonho que não é envolvido, de quando em quando, pelos
mantos negros dos pesadelos, é algo que se torna cansativo, tão monótono e exaustivo como exaustiva e monótona é a felicidade completa, constante e
inacabável...
Imagem: reprodução parcial da matéria original
|