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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - CARNAVAL
Tempo de Carnaval (24)

Uma festa caracteristicamente santista
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A história de como surgiu a tradição dos banhos de Dona Dorotéia foi contada nesta matéria de 5 de fevereiro de 1956 pelo jornal santista A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 


Esta fotografia, do arquivo particular do Eugênio Gaeta,

mostra um dos primeiros banhos de D. Dorotéia

Foto e legenda publicadas com a matéria

Assim nasceu a D. Dorotéia

Motta Netto

Era princípio de 1923. Pinto Filho, com o seu "21 na zona", fazia, todas as noites, as delícias da platéia do Teatro Guarani. Era uma comédia musicada, salgadíssima para a época, e que, embora com roteiro traçado em enredo que se untava de contínuo bom humor, sofria, de quando em quando, a interferência (sempre aplaudida), de sketchs, cortinas e, sobretudo, de desengonçados saracoteios ao som endiabrado de infernais maxixes.

A essas interrupções no desdobramento da peça, chamava-se apresentação de números. E foi um desses números que deu o nome ao banho carnavalesco que hoje empolga a cidade momística.

***

Luiz Vieira de Carvalho tinha vindo do Rio. Carioca, toda a gente sabe disso, é sinônimo de folião. Mas santista - e quem é que ignora tal coisa? - também possui no sangue a quentura enlouquecedora do fandango carnavalesco.

Luiz Vieira de Carvalho sentiu isso. Sentiu que ao santista, tal como ao carioca, Carnaval é razão de ser de sua existência. O meio era bom, portanto, para reverenciar o Rei Momo das Praias. E lembrou-se de criar, em Santos, o que se fazia, há alguns anos, no Rio de Janeiro: banho de mar a fantasia.

Os clubes de remo da capital da República, localizados em Santa Luzia - o Boqueirão, o Vasco da Gama, o Natação, o Internacional de Regatas - e até mesmo os mais distantes - o Guanabara, o Flamengo, o Botafogo de Regatas, o S. Cristovão - todos realizavam, isoladamente ou em conjunto, o carnaval aquático. E por que não fazê-lo em Santos?

Luiz Vieira contou a seu amigo Oscar Pimentel a sua idéia. Pimentel achou ótima. Traçaram-se planos. O Saldanha da Gama seria o instituidor do banho: a rapaziada se reuniria na garagem, haveria uma passeata interna, e depois, então, surgiria o banho propriamente dito.

- "E o nome que daremos?", indagou Oscar Pimentel.

- "O nome é que está difícil de escolher. Passei o dia todo pensando nisso... e, nada! Mas há de aparecer! Vou pensar novamente".

- "Mas não agora! Agora, nós vamos - afirmou Oscar Pimentel - nós vamos é ao Guarani, porque as cadeiras já estão compradas".

E lá se foram, Oscar Pimentel e Luiz Vieira de Carvalho, a caminho da Praça dos Andradas.

***

Era logo um dos primeiros números. Pinto Filho entrava em cena quase escura, vestido com roupa de banho de mar. Ao fundo, uma praia, e, nela, a crista branca de uma onda maior. Parada, de costas para a platéia, escultural em sua forma, envolvida pelas sombras e tendo a encobri-la um guarda-sol muito grande, lá estava uma banhista do outro mundo...

O ato era silencioso. Pinto Filho vinha com aquele jeitão todo seu, alisando os bigodes, soltando assobios, esses mesmos assobios que toda a gente pensa que só agora é que se estridulam quando se vê uma dona boa, mas que Adão já teve de usá-los ao se defrontar com Eva...

E dirigindo-se, por fim, ao vulto da banhista, Pinto Filho lançou o convite em voz tonitruante:

-"Dona Dorotéia, vamos furar aquela onda?"

A banhista não respondeu. Nem se virou. E Pinto Filho, ar mais malandro do que nunca, tornou a indagar:

-"Dona Dorotéia, vamos furar aquela onda?"

Aí, então, a banhista, toda trejeitos, fez a volta, vagarosamente, sobre si mesma, e quando os jorros de luz bateram-lhe na face, era a velha mais feia deste mundo que surgia aos olhares do público, enquanto Pinto Filho, esbaforido, corria para os bastidores, tomado de pavor...

***

Na rua, após o espetáculo, Luiz Vieira de Carvalho afirmou a Oscar Pimentel que o nome já estava escolhido. Oscar Pimentel quis saber qual seria. E Luiz Vieira de Carvalho, voz pausada, procurando imitar o Pinto Filho:

-"Dona Dorotéia, vamos furar aquela onda?"

***

Toda a gente gostou do nome. E a idéia do banho tomou vulto cada vez maior. O núcleo central era o Saldanha, mas o Internacional, com o Feliciano Primo Ferreira (Javali) e Dawdson Muniz (Whisky) à sua frente, também se tornou gigante na iniciativa. O Eugênio Gaeta, que nas rodas carnavalescas possuía uma denominação das mais curiosas - Lord Chafariz de Asneiras com Registro Quebrado - contribuiu, grandemente, para os preparativos. Foi ele quem, de baleeira, lá se foi para a praia do Góis, em busca de bambus, de bananeiras, de pencas de coco, de flores silvestres, tudo para vestir os componentes do banho.

Nos primeiros desfiles havia apenas a D. Dorotéia como figura de escol. O casamento ainda não entrara na programação, e somente a D. Dorotéia é quem aparecia em destaque. Quem encarnou D. Dorotéia pela primeira vez foi Luiz Vieira de Carvalho. E o seu travesti permitiu a visão de uma velha horrenda, que viajou, sentada na capota arriada do landau. O carro era da Empresa Serra. O "seu" Serra quis mandar fazer uma limpeza no veículo.

-"Não, senhor! Mande mesmo como está".

-"Mas está velhíssimo, empoeiradíssimo".

-"Não faz mal - esclarecia Luiz Carvalho - mande assim mesmo, porque assim mesmo é que tem graça".

E tinha graça mesmo, aquele carro de casamento, velhíssimo, teia de aranha em todos os cantos, poeira em todas as superfícies, conduzindo a D. Dorotéia, que era o Luiz Carvalho, o então famoso Lord Gorila.

Depois, em 1925, houve algo que jamais alguém esqueceu. Foi o John Cross, fazendo o papel de D. Dorotéia, já com vestido de noiva, dentro de uma redoma, e... fumando um charuto de palmo e meio de comprimento.

O Bloco Pé no Fundo, do Internacional, sempre com Javali e Whisky a animar os folguedos, ganhou em Alpe Rutigliano uma figura de projeção, tanto mais que sua voz magnífica punha novos encantos no banho cada vez mais sensacional.

Havia, porém, a luta financeira. Dinheiro pouco. Tudo rapaziada sem posses. A polícia não permitia livros de ouro. E assim o recurso era o Eugenio Gaeta continuar remando, todos os anos, para a praia do Góis, de onde vinha com a baleeira repleta de fantasias que a natureza dava...

Às vezes, o Cristalino Mesquita arranjava a contribuição de um estabelecimento do Gonzaga, na importância de 10 ou 20 cruzeiros, e aquilo, àquela época, ajudava que não era brincadeira...

Certa ocasião, a caminho do Embaré, ia o banho, em efervescência, pelo asfalto, quando sucedeu uma tragédia: quebrou-se o eixo da roda do carro da D. Dorotéia. os primeiros instantes foram de aborrecimento. Mas, depois, D. Dorotéia foi sustida nos ombros da turma, carregada ao ar, e rumou, em triunfo, avenida afora, a caminho do Gonzaga.

Uma noiva de sucesso foi o Pituca, que fora do Carnaval se chama Berl Júnior. Pituca, de noiva, ficava uma uva. Muita gente teve que apanhar porque cismou em garantir e querer comprovar que o Pituca era moça mesmo...

Jimmi Harding era outro astro do banho. O campeão sul-americano de remo também o era em folguedos de Momo.

Luiz Carvalho deu um jeito, com sucesso, para que surgissem os sultões e o banho descambou para o cenário dos haréns, todo o mundo desfilando na cadência complicada das odaliscas... Mas para demonstrar que o banho era poliglota, o ritmo era marcado pelo som de gorduchas gaitas galegas...

***

Vieram os barris de chope aparecendo no banho, acondicionados nos caminhões enfeitados com cores berrantes. E o espírito ganhou reforços de alto valor. D. Dorotéia foi-se tornando tradição nos carnavais da cidade e, por ocasião da guerra, existindo o racionamento da gasolina, os caminhões não puderam trafegar.

 

E quando toda a gente julgou que não haveria banho, eis que uma comissão se encaminhou à Cia. City, bateu papo com o gerente e, no domingo anterior ao Domingo Gordo, lá estava Dona Dorotéia confortavelmente instalada em bondes de gôndola, a cumprir o seu itinerário e o seu já glorioso destino.

***

Nem sempre o banho se estendia até o Gonzaga. Às vezes ficava mesmo lá pela Ponta da Praia. Quando a coragem era maior, chegava até o Boqueirão, ali à altura do Miramar, e voltava, às pressas, para cair na água. Água dupla, entenda-se bem...

 

Quem deu grande estímulo e decisão ao banho foi, sem dúvida, o bloco Dengosas do Marapé. Carlito Tavares reuniu sua rapaziada, vestiu-a com gosto, com apuro, ensaiou conjuntos musicais e proporcionou ação e vida ao banho, a este mesmo banho que, agora, é um dos motivos de orgulho do Carnaval brasileiro, prestigiado, entre outros, pelo Bloco Favoritas do Sultão, tri-campeão doroteano.

 

Trinta e três anos se passaram após aquela noite, no teatro Guarani, em que uma frase de Pinto Filho inspirou Luiz Vieira de Carvalho para a denominação de um banho de mar a fantasia.

 

Naquele tempo era o sonho em início, um sonho que, por vezes, se entremeava de pesadelos, como o daquela feita em que os cavalos alugados para tomar parte no desfile, e quando já o cortejo caminhara mais de um quilômetro, se negaram a prosseguir, porque haviam descoberto, ali junto à avenida, um terreno baldio onde capim do bom estava dando sopa... E não houve pancada no lombo dos animais que os tirasse das moitas gostosas...

 

Mas sonho que não é envolvido, de quando em quando, pelos mantos negros dos pesadelos, é algo que se torna cansativo, tão monótono e exaustivo como exaustiva e monótona é a felicidade completa, constante e inacabável...


Imagem: reprodução parcial da matéria original

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