Casa da Câmara e Cadeia de 1697, ainda existente na
Vila de Santos do início do século XIX, em tela do pintor Benedito Calixto de Jesus. Entrevistos ao fundo, além da Rua Direita (atual XV de
Novembro), o Arsenal de Marinha, o Pelourinho e a igreja do Carmo, na área da atual Praça da República
UMA NOVA CIDADE
Santos em 1839
Wilma Therezinha Fernandes de Andrade (*)
Colaboradora
Em 26 de fevereiro de 1839, uma notícia importante chegava a
Santos: a Assembléia Provincial de São Paulo, pela Lei nº 122, declarava Santos uma cidade!
A sessão em que a notícia foi conhecida realizou-se nesse dia, às 9 horas, no Paço da Câmara
Municipal, então situado na atual Praça da República, cuja fachada principal ficava voltada para o Largo do Carmo, hoje Praça Barão do Rio Branco.
Propomos aqui que um marco, simples, assinale o local da antiga Câmara, instituição
relevante para a História santista.
A lei assinada em 26 de janeiro foi subscrita pelo presidente da Assembléia, Venâncio José
Lisboa, mas a portaria enviando a lei só foi assinada pelo presidente da Província em 23 de fevereiro. Levava-se uns dois dias para se vir de São
Paulo a Santos e assim a feliz notícia custou um mês para chegar ao seu destino! Como tudo que as pessoas não sabem é novidade, o grato
acontecimento foi festivamente comemorado.
Tão logo soube da faustosa notícia, a Câmara Municipal pôs a nova cidade em rebuliço.
Decidiu que uma banda militar percorresse as ruas e praças para chamar a atenção do povo anunciando a novidade. Três dias de festas foram
programados, às pressas. Pediu-se ao povo que iluminasse a fachada das casas nesses dias.
Uma cerimônia de ação de graças - Te Deum - foi realizada na
Matriz. As igrejas - Carmo, Valongo, as duas do Rosário,
São Bento - tocaram os sinos em regozijo. Para encerrar os festejos, uma parada militar foi
programada pela Guarda Nacional. Os negros, na maioria escravos, com danças e batuques, participaram da alegria geral.
Santos, governada pela Câmara Municipal, tinha no presidente uma importante figura política,
com funções executivas. A Prefeitura só começou a existir em 1908.
A memorável sessão de 26 de fevereiro foi presidida por Joaquim José Vieira de Carvalho.
Presentes: Joaquim Xavier Pinheiro, Manoel Pereira dos Santos, João Batista Rodrigues da Silva, João Otávio Nébias e o suplente em exercício Firmino
José Maria Xavier. Ausentes, os vereadores: Manoel Ferreira da Silva Bertholdo, que se justificou, e Francisco Xavier de Carvalho, que faltou "sem
causa".
Há 159 anos [N.E.: lembrando-se que este artigo foi
publicado em 1998, portanto referindo-se a 1839], o que acontecia?
Sob o regime imperial, o Brasil era governado por uma Regência exercida por Pedro de Araújo
Lima. A situação política era péssima. No Sul, ocorria a guerra separatista dos Farrapos, que proclamava a República de Piratini, no Rio Grande do
Sul, e em Santa Catarina, a República Juliana. No Norte, as coisas não eram melhores. Eclodia a revolta da Cabanagem na Província do Grão-Pará e, na
do Maranhão, outra revolta, a Balaiada.
Na Província de São Paulo, os interesses voltavam-se para as vantagens econômicas do café,
que não cessavam de aumentar, quase atingindo a exportação do açúcar, a maior produção paulista.
Pouso de Paranapiacaba, no Caminho do Mar, por volta de 1940.
Dali, quem descia a Serra via Santos e o mar pela primeira vez
A
necessidade econômica de transportar o café, em quantidades cada vez maiores, tornara a Calçada do Lorena de 1792
ultrapassada e pensava-se em abrir outra via entre Santos e São Paulo. Seria a Estrada da Maioridade, a ser aberta na década de
1840.
O porto de Santos aumentava ganhos e o crescimento era visível;
mas foi a morte de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca, em 1838, que motivou a Assembléia Provincial a elevar Santos à categoria de
Cidade, projeto do deputado Amaral Gurgel.
Como era a nova cidade?
Sede de um grande município, pois abrangia os territórios atuais de
Cubatão, Guarujá e Bertioga, além
da atual área de Santos continental. A cidade tinha por limites urbanos o Outeiro de Santa
Catarina (hoje Rua Visconde do Rio Branco), o convento dos franciscanos, ao lado da Igreja de Santo Antônio do Valongo.
Principais edifícios: a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário (demolida, hoje o local é a
Praça Antônio Teles); o Palacete dos Jesuítas (que o governo português confiscara), no lugar
onde hoje é a Alfândega. Havia a Casa do Trem Bélico, o conjunto do Carmo (capela
e igreja) ainda existentes e a Igreja Nossa Senhora do Rosário, construída pela Irmandade do Rosário dos Homens
Pretos.
Aprovara-se, em 1836, a construção da nova Casa da Câmara e Cadeia e, nesse mesmo ano, a
Santa Casa da Misericórdia, no sopé do Monte Serrat, inaugurava novas instalações do hospital. Alguns locais significativos
ficavam fora dessa área urbana: a capela do Monte Serrat; o mosteiro da
Ordem de São Bento (hoje Museu de Arte Sacra) e as fortalezas.
Quais as pessoas mais importantes de Santos nessa época?
Joaquim José Vieira de Carvalho, presidente da Câmara, filho do coronel José Antônio Vieira
de Carvalho, que também fora vereador. A família Vieira de Carvalho, uma das mais ricas e importantes de Santos, morava num vistoso solar junto ao
porto, construído pouco antes da Independência e que é atualmente o edifício mais antigo da cidade, à
Rua Frei Gaspar, 6, onde funciona a tradicional firma Hard Rand S.A.
João Otávio Nébias, um dos vereadores, pai de Joaquim Otávio Nébias, figura das mais
importantes dos nascidos em Santos, pela brilhante carreira política, e que hoje dá nome a uma das maiores artérias da cidade: a
Av. Conselheiro Nébias. O vereador tinha 28 anos, quando fez parte da sessão da Câmara que agora lembramos, e já havia
proposto, em 1835, a elevação da vila à categoria de cidade, junto com o companheiro Manoel Pereira dos Santos. Este último, português, naturalizado
brasileiro, dedicou-se ao comércio, onde conseguiu considerável fortuna. Casou-se em Santos duas vezes e deixou numerosa descendência.
Frederico Fomm, alemão de 44 anos, o maior comissário de Santos, declarava ter 4:000$000
(quatro contos de réis). Casado com a brasileira Bárbara Fomm, com dois filhos e quatro escravos, pioneiro da industrialização, tendo uma fábrica de
beneficiamento de açúcar na Vila Nova, com máquinas a vapor, o primeiro estabelecimento do gênero, no Brasil.
Dr. José Antônio Pimenta Bueno, depois Marquês de São Vicente, juiz de Direito da Comarca,
seguindo fulgurante carreira chegou a ministro do Supremo Tribunal. Morava na Rua Direita (hoje XV de Novembro) perto dos
Quatro Cantos (hoje cruzamento da XV de Novembro com a Frei Gaspar) e aqui se casou e nasceram os quatro filhos do casal.
Em Santos, aprovou, em 1836, a planta da Câmara e Cadeia de Santos, à Praça dos Andradas.
Comendador Antônio Ferreira da Silva, notável membro da Câmara, na década de 1830, um dos
fundadores da futura Associação Comercial de Santos, comerciante abastado, recebeu a visita de D. Pedro II, em 1846. Seu
filho, que tinha o mesmo nome, foi Visconde do Embaré.
Dr. Cláudio Luiz da Costa, qualificado como cirurgião, representando muito bem a Medicina,
declarou possuir 2:000$000 (dois contos de réis). Nascido em Santa Catarina, 36 anos, foi o responsável pela construção do
terceiro hospital Santa Casa da Irmandade da Misericórdia, construído no sopé do Monte Serrat, que deu nome à Avenida
São Francisco, por causa da capela de São Francisco de Paula.
Joaquim Xavier Pinheiro, um dos vereadores de 1839, 53 anos, nascido em Lisboa, era casado
com Ana Maria Xavier, tinha seis filhos e vivia de negócios, pois era proprietário de um armazém de açúcar.
Francisco Xavier da Costa Aguiar, de 54 anos, cuja mãe era D. Bárbara Joaquina de Andrada,
irmã de José Bonifácio, o Patriarca. O pai fora capitão-mor, durante 21 anos, e previra, em 1809, que a expansão de Santos estava ligada ao
saneamento.
O padre Patrício Manoel de Andrada e Silva, o mais velho dos irmãos Andradas, nascido em
1760. No Panteão dos Andradas, vê-se uma urna de jacarandá preto onde, num cartão de placa, lê-se: "Aqui jazem os restos mortais do Reverendo
Patrício Manoel de Andrada, falecido a 8 de janeiro de 1847". O padre Patrício foi vereador de 1829 a 1833, na chamada "Câmara dos Padres", e
exerceu o espinhoso cargo de tesoureiro da Santa Casa, endividada. Era proprietário de casas, sítios, engenho e exportava gêneros do país. Pai
assumido, o padre Patrício legitimou duas filhas. Delfina, cega desde criança, vivia em sua companhia, e Maria Zelinda, casada com o primo-irmão
Francisco Xavier da Costa Aguiar, já mencionado.
Padre José Antônio da Silva Barbosa, vigário e pároco durante 33 anos, sendo um dos
paroquiatos mais longos da História santista.
Seguem-se algumas informações retiradas do precioso Recenseamento de Santos, de 1836,
da Fundação Arquivo e Memória de Santos, que consultamos para este trabalho.
A população de, aproximadamente, 5 mil
habitantes, concentrava-se na área ocupada há 300 anos (hoje parte do Centro da Cidade). Fora da Ilha de São Vicente, os núcleos mais importantes
eram Cubatão e Bertioga.
Santos em 1822, conforme concepção do pintor Benedito
Calixto
Do que vivia a população santista?
O comércio sustentava a economia da cidade. A prestação de serviços ocupava a maioria da
população que declarou "viver de suas agências", isto é, de pequenos negócios. Havia muitas vendas, bares (chamados de tavernas) e uma estalagem.
A agricultura de subsistência era praticada nos largos espaços entre as moradias e nos
sítios onde se cultivava cana-de-açúcar, café e arroz. Havia criação de gado. A pesca era praticada profissionalmente.
O recenseamento registra, ainda, pedreiros, carpinteiros, calafates, costureiras, alfaiates,
pescadores, cozinheiros, caixeiros, músicos, um ourives, um doutor em leis.
Os militares eram importantes: a Guarnição da Praça de Santos compunha-se de um Batalhão de
Infantaria, cinco companhias com 502 praças e os Guardas Nacionais, 79. Quanto à indústria, destacava-se o fabrico de aguardente, sabão, tijolo,
telhas, barris e barricas, estes dois produtos ligados à exportação do açúcar. Importante era a fábrica de refinação de açúcar de Frederico Fomm,
que importara da Inglaterra uma máquina a vapor.
Por causa da exportação do açúcar, Santos deixa a condição de porto sucursal do Rio de
Janeiro: em 1838-39, a exportação do açúcar foi 478.942 arrobas e 28 libras. Ia para o Chile, países do Prata, para Portugal, Espanha, África,
Estados Unidos, segundo Petrone, pág. 1968. Embora a tendência fosse o crescimento da exportação cafeeira, nessa época Santos era ainda o porto do
açúcar.
Estrangeiros (sem contar os portugueses) eram poucos, pouquíssimos. Alguns alemães,
franceses, ingleses, um sueco, um escravo de Montevidéu. Grande parte da população era escrava, muitos de origem africana. Não possuir escravos era
sinal de grande pobreza.
O recenseamento de 1836 também informa sobre sítios ao longo dos rios, das praias e do Canal
da Bertioga: Baruhi, Caruara, Cachoeira, Estaleiro, Prainha, Casqueiro, Cabupuí, Morrinhos, Itatuba, Tabatinga, Buturuá, Perequê-mirim, São
Lourenço, Guarapá, Rio Comprido, Itapema e outros.
Vejamos sobre um deles: o sítio Baruhi, no Canal da Bertioga. Vivia nele seu proprietário
Antônio Teixeira de Carvalho, de 46 anos, casado com Ana Jesus Sampaio, de 51, e dois filhos: o mais velho, de 12 anos, com o nome do pai, e a mais
nova, Joaquina de Jesus Sampaio, de 11 anos. O casamento, aparentemente, fora tardio: Ana tivera o primeiro filho aos 39 anos e a menina, aos 40. No
sítio, Antônio, com a ajuda de dez escravos, cultivava mandioca, arroz e legumes para consumo próprio. Declarou ter 300.000 rs. (trezentos mil réis)
de rendimento anual. Sabemos, por informação de família, que o sítio veio a chamar-se Barigui.
Mas nem tudo devia ser bucólico nessas áreas afastadas. Desde a década anterior, há notícia
de quilombos que eram combatidos, pois Santos ainda não se declarara abolicionista.
No ano da criação da cidade, encontramos em Santos uma geração com valores de alta
qualidade, e que vai transmitir essa herança para o futuro: o deslanchar da riqueza cafeeira; o desenvolvimento urbano; a construção do cais do
porto; mas também os grandes desafios e problemas do século XIX: a superpopulação, as péssimas condições ambientais, as epidemias. Lembrem-se ainda
das campanhas sociais pela abolição da escravatura e pela mudança do regime monárquico para o republicano. Mas esta é história de outros tempos.
Por agora, fiquemos com o júbilo causado pela boa notícia: Santos é cidade!
Apesar da euforia, a Câmara Municipal, na histórica sessão de 26 de fevereiro, não se
esqueceu do seu regulamento: o vereador que "sem causa" faltara à sessão levou uma multa pela ausência.
Bibliografia:
Ata da Câmara
Municipal de Santos, de 26 de fevereiro de 1839. Manuscrito inédito. Fundação Arquivo e Memória de Santos.
Costa e Silva
Sobrinho, José da. Santos Noutros Tempos. São Paulo: [s.c.p.], 1953, ilust.
Petrone, Maria
Thereza S.A. Lavoura Canavieira em São Paulo: Expansão e Declínio 1765-1851. São Paulo: Difel, 1968, p. 177 e ss.
Recenseamento da
Vila e Praça de Santos de 1836, Inédito, Manuscrito. Arquivo da Fundação Arquivo e Memória de Santos. Coleção Costa e Silva Sobrinho, v. 166.
Rodrigues, Olao.
Veja Santos. Santos; Prefeitura Municipal de Santos, 1973, ilust.
Santos, Francisco
Martins dos. História de Santos - 1532-1936. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1937, 2v, ilust.
Sousa, Alberto.
Os Andradas. Obra comemorativa do centenário da Independência do Brasil. São Paulo: Câmara Municipal de Santos, 1922, 3v, ilust.
(*) Wilma Therezinha Fernandes de Andrade é
professora titular de História do Brasil, pela UniSantos, doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP) e secretária municipal de Cultura
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