Francisco Martins dos Santos
Em 1660, o governador da Capitania, Jorge Fernandes da
Fonseca, para disfarçar a crise entre os paulistas e os padres da Companhia de Jesus, anunciou grandes obras no Caminho do Mar. Em 1661 era ele
recebido em sessão solene pela Câmara de São Paulo, e na Ata da sessão respectiva ficou registrado que o governador "havia mandado fazer a
Estrada do Mar de modo que possa andar carro por ela, cortando serras, indo em pessoa ver este benefício na república, donde se fizeram mais de
setenta pontes: obra que ainda aos que dizemos nos parece impossível".
Manoel Rodrigues Ferreira, observando esta passagem, verdadeira "tirada" ou "gabolice" do governador, comentou:
É fácil verificar que não se trata da Serra, pois, como veremos, o trecho da Serra era tão
ruim, que posteriormente Bernardo José de Lorena fez novo caminho. Pela quantidade de pontes (setenta), verifica-se que só pode ser o trecho
do planalto adaptado para estrada de carros. Aliás, é bem provável que esse tenha sido o primeiro caminho por terra, abandonando-se a viagem
antes feita por canoas para S. Paulo, usando-se os rios Pequeno, Grande, Jurubatuba e Pinheiros.
Por outro lado, é bem possível que o governador tenha mandado fazer o caminho terrestre por uma
questão de estratégia, depois da experiência do fechamento anterior, pelos paulistas, da via fluvial no Rio Pequeno. Assim, constituem pois um
momento importante na história do Caminho do Mar esses melhoramentos executados pelo Governador em 1660/1661, no trecho do planalto. |
Em 1681, governando a Capitania o capitão-mor Diogo Pinto do Rego, o famoso paulista Lourenço Castanho Taques
com Luís P. Penedo e João Francisco Viegas assinaram um contrato com os vereadores da Câmara e homens bons da Vila de São Paulo, obrigando-se a
fazer à sua custa, dentro de um ano, a Estrada de São Paulo a Santos, tendo em remuneração o privilégio de só eles venderem os líquidos mar-fora,
dentro do termo da Vila de São Paulo.
Após descerem a Serra, as tropas de burros paravam na
Vila de Cubatão
Depois dessa tentativa, cumprida apenas em parte pelos contratantes, os diversos governadores da Capitania de S.
Paulo empregaram mais ou menos esforços na abertura de uma via de comunicação entre os dois pontos, ligando cada vez melhor o litoral ao planalto,
porém nada ou quase nada conseguiram, sempre por falta de recursos adequados, notadamente o capitão-general Dom Luís Antônio de Sousa Botelho
Mourão, que chegou a conseguir fosse aplicado, à construção do Caminho, o produto do imposto, que durante muitos anos existiu na Capitania, sob o
título de Novo Imposto para a Reedificação de Lisboa.
A 17 de fevereiro de 1770, ele mandava publicar (afixar nos lugares da praxe em toda a Capitania) o seguinte
"Bando" ou edital:
Porquanto são notórias as ruínas e precipícios com que se acha desbaratado o caminho de
Cubatão, e tão grandes as dificuldades que nele experimentam, que têm afugentado dele os viandantes, transportando o comércio a outras partes
com notável detrimento do bem comum dos povos, o que constitui uma das maiores causas da decadência e pobreza desta Capitania.
Além disso, acha-se o dito caminho tão interrompido e embaraçado que por ele se faz
impraticável o transportar as munições e petrechos que é preciso mover repetidas vezes para as expedições do real serviço.
Vejo que tudo necessita de uma pronta e eficaz providência, para que cessem totalmente os
danos e inconvenientes que se padecem há tantos anos.
Ordeno ao sargento-mor Manoel Caetano Zuñiga a fazer imediatamente consertar o dito caminho,
para o que lhe dou o poder a fim de que possa obrigar todas as pessoas de qualquer estado, grau ou condição, que tiverem terras na estrada que
vai desta cidade para o Porto de Cubatão, a que logo mandem compor as suas testadas na referida estrada, e a façam por tal modo franca, que
não haja o menor embaraço para passarem por ela carros.
E para o referido se tirarão dos armazéns da Vila de Santos as ferramentas necessárias, e
para este trabalho se buscarão todos e quaisquer soldados da Praça de Santos, o mestre do "Trem", carpinteiro da Ribeira das Naus com os
índios do escaler e todos os negros da fazenda de Cubatão, que pertencem a S. Majestade, o que tudo se unirá a mais gente e escravatura que os
donos das testadas trouxerem em sua companhia, e para o referido ordeno a todos os oficiais militares, justiças, oficias de Auxiliares e
Ordenanças lhe prestem o auxílio que para o referido lhes for pedido.
O que tudo se cumprirá sem dúvida alguma, sob pena de serem presos todos os que faltaram em
executar esta minha determinação. |
Outras providências tomou ainda, além das citadas, o grande governador, sem conseguir fazer, contudo, nem metade
do que pretendera.
Cubatão em 1826
Imagem: tela pintada em 1922 por Benedito Calixto de
Jesus
Frei Gaspar da Madre de Deus, o celebrizado historiador santista, subindo e descendo freqüentemente o velho
Caminho, a esta altura do século, classificou-o: "talvez o pior que tem o mundo", mas, em seguida, que entusiasmo lhe provocava a evocação do
panorama oferecido pela serra escabrosíssima de Paranapiacaba "aos que lhe vencem as quebradas e asperezas, o jardim ameníssimo de ruas alagadas e
canteiros de vegetais sempre verdes que o mar e a floresta formam aos olhos deslumbrados do viajor", rematando com estas palavras: "Prospecto mais
agradável que este não há", esquecia-se até da ruindade do Caminho.
O capitão-general Martim Lopes Lobo Saldanha foi quem mandou, depois de 1776, construir o aterrado que passava
por ser o primeiro que houve, entre os rios Grande e Pequeno (e que pelo visto não era), e, mais tarde, ao governador interino José Raimundo
Chichorro da Gama Lobo caberia tentar o primeiro aterrado que ia do sopé da serra até o rio Cubatão.
Aquele capitão-general Martim Lopes Lobo fizera outra interessante comunicação ao Reino, no ano de 1781,
que vale ser conhecida:
...me obrigou o meu zelo a fazer o caminho que vai desta cidade a Cubatão de Santos, o qual
era quase invadiável e não se transitava sem que fosse aos ombros dos índios e sempre em evidente perigo de vida, por se passar por uns
apertados tão fundos, nascidos da primeira picada que os primeiros habitantes tinham feito, e tão estreita, que não cabia mais do que uma
pessoa ou animal, ficando muitas vezes abafados debaixo da terra que com as chuvas desabava e outros mortos nas profundas covas que com os pés
faziam, o que aqui chamam "Caldeirões", me resolvi a escrever à Câmara desta Cidade, à de Santos, Itu, Atibaia, Sorocaba, Parnaíba, Jundiaí,
Mogi-Mirim e Mogi-Guaçu, uma carta, cuja cópia vai inserta, de que resultou darem-me o donativo gratuito de 2:668$905 réis com que dei
princípio ao sobredito caminho no mês de maio do corrente ano e tenho quase vencido, porque espero até o fim deste mês completar o melhor de
toda a América e ainda de muitos da Europa, tendo-se-lhe formado infinitas pontes das mais duráveis madeiras, confessando todo este povo que,
em um século, nem estas, nem o caminho poderão ser arruinados... |
As fantasias e gabolices do capitão-general eram patentes. Incluía entre seus trabalhos o que já fora feito por
outros e o que ainda não estava feito nem mesmo por ele, pintando o seu "Caminho" com cores de verdadeiro poeta. Até a importância recebida devia
ser menor.
A Calçada do Lorena, em foto do final do século XX
Foto: autor desconhecido
Não foi preciso um século. Dez anos depois já o Caminho do Mar sofria justos ataques e recebia novos reparos
necessários e urgentes, indo aperfeiçoar-se e transformar-se inteiramente às mãos e aos cuidados de quem ficaria célebre com isso - o
capitão-general Bernardo José de Lorena, que realizou sobretudo a construção do percurso da Serra, conhecido depois, e pela posteridade, como o
Caminho Calçado do Lorena, em zig-zag, ou simplesmente: Calçada do Lorena em zig-zag, que trouxe a vantagem de firmar a marcha dos
animais que escalavam a serra em grande número, e mesmo dos pobres tropeiros e outros viajantes, libertando-os dos imensos sacrifícios das antigas
travessias sobre terra batida, libertando-os, em última análise, das maravilhas estradeiras daquele Martim Lopes Lobo Saldanha... facilitando e
beneficiando, realmente, os transportes comuns e especiais.
No alto da Serra ele abandonou o caminho antigo e tomando à esquerda vai sair em ponto bem distante do anterior.
O velho caminho, antigo trilho dos índios ou então mandado fazer pelo padre Manuel da Nóbrega, e que chamaram Caminho do Padre José e
depois Caminho do Mar, que subia pelo Tutinga, acompanhando o Rio das Pedras, ia ser agora abandonado. O novo Caminho Calçado do Lorena
ficou, depois de pronto, com cento e oitenta curvas. Calçou-o com pedras, numa largura de três metros e numa extensão de nove quilômetros.
E, para comemorar esse evento, Lorena fez erguer, no local, um padrão ou marco comemorativo,
em homenagem à rainha D. Maria I. E por essa nova estrada, em que as tropas transitavam com segurança, em setembro de 1789, Lorena enviava ao
Reino, de presente, uma indiazinha apanhada nos sertões de Curitiba, e alguns quadrúpedes e pássaros e várias coisas em três caixotes
numerados, entre os quais iam alguns trastes que se achavam no alojamento dos gentios, e três pitos dos antigos paulistas...
[1].
Padrão do Lorena, em foto do final do século XX, num
cruzamento do Caminho do Mar com a Calçada do Lorena
Foto: autor desconhecido
O trecho da Serra encontrava-se, pois, em ótimas condições. Entretanto, o mesmo não acontecia com o percurso do
Cubatão às Vilas de Santos e São Vicente, que era feito em embarcações, ao longo dos canais. E por isso começa a idéia de se fazer um aterrado que
substituísse esse percurso. Alguns anos depois, em 1797, o Capitão-General Antônio Manoel de Melo, tratando do mesmo assunto, informava:
Seguem por água até a Vila de Santos, tendo que passar em más embarcações pelo largo do
Canéu, onde são temíveis as trovoadas, porque tendo em muitas partes, muito pouco fundo, altera-se de forma que muitas vezes vira as
embarcações, outras as enche de água, o que arruína os açúcares e mais gêneros, e tem morrido bastante gente neste sítio, e mesmo na Enseada
do Porto de Santos. |
A 14 de março de 1798, principiava na Capitania de S.Paulo uma contribuição popular, organizada pelo
capitão-general Antônio Manoel de Melo Castro e Mendonça, para o fim especial de ser feito o aterrado de Cubatão, isto é, o trecho final da
estrada, que conduzisse do sopé da serra e da barreira fiscal de Cubatão, até a Vila de Santos, evitando o trajeto por água (rio e mar), com
baldeação difícil e encarecedora dos produtos, do lombo dos animais para as canoas e outras embarcações.
As obras tiveram início em setembro daquele mesmo ano de 1798; entretanto, sabe-se que não continuaram por muito
tempo, devido às grandes dificuldades existentes e à falta de aparelhamento adequado.
Caberia esse grande feito, vinte e nove anos depois, a Lucas Antônio Monteiro de Barros, primeiro presidente da
Província de S. Paulo, que veria inaugurar-se o sonhado trecho, conhecido por Aterrado de Cubatão, no dia 7 de fevereiro de 1827, sob a direção do
notável engenheiro militar, mais tarde Marechal, Daniel Pedro Muller.
Aterrado de Cubatão, em foto de meados do século XX
Foto: autor desconhecido
Daquele ano em diante, e notadamente de 1848 a 1870, os diversos presidentes e a Assembléia Provincial de S.
Paulo ocuparam-se constantemente do velho Caminho do Mar, que, de meados do século XIX em diante, seria conhecido por Estrada do Vergueiro, pela
circunstância que adiante explicaremos.
O aterrado de Cubatão daria nova expressão econômica à velha estrada e talvez à antiga Província e a Santos;
provocaria o deslocamento da lavoura cafeeira da zona da Central para as novas zonas e novos municípios, equivalendo à criação da grande lavoura
de rubiácea, e o crescimento rápido da produção e da exportação pelo porto de Santos, onde se construiria o Rancho Grande dos tropeiros, a exemplo
daquele de Cubatão.
NOTA DO AUTOR:
[1]
Dr. Manoel Rodrigues Ferreira - Os Municípios de S. Paulo - edição especial - 1956, S. Paulo, p. 27. |