Imagem: reprodução parcial da matéria
original
SANTOS NOUTROS TEMPOS
Tricentenário da Irmandade do Rosário
Costa e Silva Sobrinho
Desde o princípio do
século XIV, há sete séculos, portanto, todos os anos, a 8 de dezembro, celebra a Igreja a festa da Imaculada Conceição de Maria.
Em vista disso é que a 17 de outubro de 1320 o bispo de Coimbra, d. Raimundo, varão
de grandes letras e insignes virtudes, promulgava uma Constituição na qual prescrevia que na igreja Catedral daquela cidade fizessem festa cada ano,
no oitavo dia do mês de dezembro, assim como se fazia pelas outras terras.
Segundo o testemunho de frei Agostinho de Santa Maria, no Santuário Mariana,
tomo I, capítulo 14, desde a fundação em Lisboa do convento de S. Domingos, começou a devoção à imagem de N. S. do Rosário.
E não nos será difícil roborar autorizadamente esse depoimento; pois o ameno
historiador frei Luís de Souza diz que foi o patriarca S. Domingos quem primeiro pregou esta devoção, acrescentando até que ela viera no decorrer
dos tempos a ficar quase esquecida.
Mas, no derradeiro quartel do século XV, ressurgiu a devoção do Rosário no mesmo
convento e assomou e ressurgiu com maior vividez, porque se organizou uma confraria na capela que ali existia dedicada à Virgem daquela invocação.
Acudiam a cultivá-la nobres e plebeus, reis e vassalos, pretos e brancos, com mimos
de alto preço e constantes orações.
Aí está, pois, em rápido escorço, donde promanaram as nossas irmandades do Rosário.
Quanto ao étimo e nome da devoção à Senhora, não se há mister de ser profundo sabedor
na matéria, para conhecê-los.
Assim se exprime, a esse respeito, o elegante prosador dominicano, supracitado: "Mereceu
o nome de Rosário na língua latina que na portuguesa responde - Rosal". (História de S.
Domingos, I, cap. 14, pág. 66). E isso em razão de ser "a rosa a mais nobre flor de todas
as flores por fineza da cor, por excelência do cheiro, por utilidade da virtude" (idem).
Deu-se, enfim, "o nome de Rosal
à devoção, passou da devoção ao instrumento,...; e não há pintura desta invocação da Senhora, que deixe de vir semeada de rosas".
(id., pág. 68).
Houve ainda outrora o costume de benzer as rosas no mês de maio, em nome e honra da
Virgem Santíssima.
Não deslizava talvez da verdade o oratoriano Bernardes ao dizer que a devoção do
Rosário era a que mais almas tinha ganhado para o céu. Em Portugal, de fato, não havia naquele tempo uma inteligência lúcida, um pulso heróico, um
coração polido e caridoso que deixasse de render culto à Santíssima Mãe de Deus.
O Brasil também não ficava atrás; pois incansáveis foram os missionários em espalhar
o culto da Virgem Mãe por terras de Santa Cruz.
Não houve nesse piedoso zelo quem levasse a palma aos padres da Companhia de Jesus.
Um dos seus mais insignes missionários foi aquele padre Inácio de Azevedo que o papa Pio IX, por decreto de 11 de maio de 1854, beatificou com os
demais companheiros trucidados às mãos dos corsários.
Como refulgiu o lusitano desvelo no culto de Nossa Senhora!
Entre todos os homens eminentes avultou o padre Antônio Vieira, vernaculista de
primeira plana, orador sagrado dos mais sedutores e missionário diligentíssimo. Muitos dos seus sermões, e dos mais belos, tiveram por assunto a
Virgem Puríssima. Teve ele particular devoção com N. S. do Rosário, à qual dedicou os volumes nono e décimo da sua obra monumental, dando-lhes o
título de "Maria Rosa Mística, excelências, poderes e maravilhas do seu Rosário".
Declarou o famoso jesuíta que essa dedicatória teve como origem um voto que fizera e
repetira - "em grandes perigos de vida, de que por sua imensa benignidade e poderosíssima
intercessão sempre saiu livre".
Os músicos portugueses foram igualmente devotados sinceros a Nossa Senhora. um deles,
Francisco Inácio Solano, que floresceu em Lisboa no século 18, ao abrir uma aula teórica e prática, punha-a sob a égide de N. S. da Conceição, a
quem exorava: "Tomai-me, puríssima Virgem, à vossa conta; tende-me de vossa poderosa mão, e
olhai misericordiosa por mim, para os alunos desta aula, e por todos os professores da peregrina ciência e nobre Arte da Música".
Em remate: o culto da Virgem Imaculada tem sido universalmente propagado na
cristandade.
A cidade de Santos, para rememorarmos agora alguns rudimentos da sua história,
consagrou sempre, desde o seu passado mais remoto, notória veneração à Virgem Santíssima. Na sua antiga Matriz, o
altar-mor era com invocação de N. S. do Rosário dos brancos. Defronte da capela do Santíssimo Sacramento, para a parte da Epístola, estava o altar
da Senhora do Rosário dos pretos. E no retábulo do aludido altar também estava a Senhora do Terço. SErviam os homens de cor a uma e outra Senhora,
com a obrigação de mandarem dizer todos os domingos uma missa pelos irmãos vivos e defuntos.
A Irmandade, que se denominava de N. S. do Rosário dos homens pretos, começara a
funcionar, com o seu compromisso devidamente aprovado, em 1 de outubro de 1652, tendo um altar na Matriz, denominada então Igreja da Misericórdia.
Era nesse ano vigário da paróquia e da vara eclesiástica de Santos o padre Fernão Rodrigues de Córdova. O mesmo que em 3 de agosto de 1640
presenciara os sucessos da expulsão dos padres da Companhia da Vila de Santos. E em 1655 fizera
entrega da ermida de N. S. do Monte Serrat aos padres de S. Bento.
A festa da sua Padroeira celebrava-a a Irmandade, como ainda agora, na segunda
Dominga de outubro. De que a Irmandade já em 1652 se achava instituída, temos prova inconcussa numa declaração feita pelo dr. Provedor de Capelas
João Vieira de Andrade, em um livro pelo mesmo rubricado em 11 de janeiro de 1750, e cujo teor é o seguinte: "Tem
esta Irmandade nove livros, inclusive este, que é o primeiro que teve, e principiou a ter uso em 1 de outubro de 1652; cujos livros se conservam e
com especialidade o primeiro, pois nele a fls. 38 se declara haver provimento do Ordinário pelo qual mandou dar o dinheiro da Irmandade a juros de
8%. Eu o escrevi. - Andrade".
Possuía a Irmandade em 1756 duas braças e meia de terreno compradas ao coronel José
Ribeiro de Andrada, avô paterno do Patriarca, as quais estão incluídas na área ocupada atualmente pela Igreja de N. S. do
Rosário, que pertence à mesma Irmandade.
Em 1871 achava-se o templo em péssimo estado, apesar dos esforços empregados por
alguns cidadãos que tinham procurado por meio de subscrições acabar de construir a torre, havia muito começada.
As obra da igreja tiveram início em 1756. No ano seguinte estava em andamento a
construção, como se depreende da conta apresentada pelo tesoureiro e escrivão Domingos Pereira Viegas, o qual despendera a quantia de 107$230.
Nela não havia celebração nem ato religioso algum. Os irmãos eram sepultados na
Igreja Matriz, encontrando-se, na conta apresentada em 1759 pelo referido Domingos Pereira Viegas, o pagamento de 1$600 de consertos nas sepulturas,
naquela igreja.
Levava-se ainda por diante, após quarenta e três anos de iniciada, a edificação da
igreja do Rosário. E, para que esta nossa asserção não fique improvada, diremos que ela se alicerça no recenseamento de Santos, de 1799, que
arrolando os moradores da Rua do Campo, assim a descreve: - "Rua do Campo, que decorre desde a
travessa do Carmo exclusive, até a obra da igreja de N. S. do Rosário dos Pretos".
Em 1810 a igreja fazia frente não para uma praça, como hoje em dia, mas para o
Campo do Rosário, para o qual dava também a chácara do capitão Antônio Manuel Fernandes da Silva, comprada ao barbeiro
Joaquim José dos Santos, e cujos fundos iam até o Monte Serrat.
Em 1816 ainda não existia a Rua do Rosário. Para os
moradores da Rua Áurea, agora General Câmara, ela era a rua que vinha do Rosário dos Pretos, atravessando os fundos dos
quintais.
A nova Rua do Rosário foi aberta em 1817. Principiava o
seu alinhamento do cunhal da igreja e ia até o Cubatãozinho.
O juiz almotacé Flórido José de Morais decidia então que tal alinhamento devia de
qualquer forma "ser regular e majestoso".
Isso, porém, não se deu. Em 1926, isto é, um século e pouco depois, a fachada da igreja foi que teve de recuar.
Em 1822 os terrenos aos lados e nos fundos da igreja do Rosário estavam cobertos de
mato. Existia mais ou menos no lugar onde se encontra o Teatro Guarani uma palhoça para abrigo de trabalhadores, denominada
Tijupar do Sepúlveda. Não havia a Rua Amador Bueno, nem a de S. Francisco. A do Rosário, até a
esquina da Rua da Palha (agora da Constituição), contava apenas 18 construções muito espaçadas umas das outras. Os
ribeiros de S. Jerônimo e do Carmo ou Itororó espreguiçavam-se entre relvas e atoleiros. Isto já no ano da Independência!
Em 1866 o tesoureiro da Irmandade pagava 6$000 a um trabalhador para a capinação da
frente da igreja. Nesse ano havia ainda na Irmandade juiz, juíza, rei, rainha e capitão do mastro. Era juiz, porém, Antônio Martins dos Santos (o
prestante comendador Martins); tesoureiro Antônio Venâncio da Rosa; e procurador Fortunato Manuel Ferreira.
Entraram então para a Irmandade, entre outros, José Francisco de Assis, Inácio Gomes
de Amorim, Hervêncio Martins dos Santos, Henrique Paulo da Trindade e Jeremias Profeta da Trindade.
Realizava-se nesse ano com grande pompa a festa da Padroeira. A
banda de Luís Arlindo da Trindade executava as suas mais harmoniosas composições musicais. Estouravam os foguetes, deixando no espaço azul
pequenos novelos de fumo.
O Santíssimo Sacramento esteve exposto, de acordo com a seguinte provisão: "O
padre Scipião Ferreira Goulart Junqueira, vigário colado da cidade de Santos, nela e nas vilas anexas, vigário da vara, examinador sinodal do
bispado, etc., etc.
"Faço saber aos que a presente provisão virem, que atendendo ao que me representou o
procurador da Irmandade de N. S. do Rosário dos homens pretos desta cidade, hei por bem conceder licença para que a festa da mesma Senhora, que se
há de celebrar na Igreja do Rosário desta cidade, seja feita com exposição do S. S. durante o santo sacrifício da missa; tendo-se, porém, em vista
que seja este ato feito com todo o esplendor, e a decência que tão sagrado ato requer. Recomendo mais que se observe em tudo o que muito recomenda a
Constituição do Bispado, muito principalmente quanto ao número de velas que para esse fim empregarão.
"Esta será presente ao muito reverendo vigário desta paróquia, ou a quem suas vezes
fizer, para os fins convenientes. Servatis Servandis.
"Dada e passada no Juízo Eclesiástico desta cidade de Santos, aos 13 de outubro de
1866. E eu, Francisco Alves da Silva, escrivão, a fiz. Scipião Ferreira Goulart Junqueira".
Digamos agora alguma coisa a respeito do patrimônio.
A Irmandade possuía nessa época 4 casas e 2 terrenos, isto é, a cada da Rua do Campo,
63; as da Rua do Rosário, 14 e 26; a da Rua do Quartel; e 2 terrenos, um do lado direito e o outro do lado esquerdo da
Igreja.
No ano de 1870 a 71, a mesa regedora da Irmandade compunha-se também de elementos de
primeira ordem. Assim, era juiz Antonio Venâncio da Rosa; tesoureiro João Batista da Silva Bueno; escrivão João Nepomuceno Freire; procurador o
padre Luiz Alves da Silva; e mesários: Bernardino de Almeida, Antonio José dos Santos, Lucas José de Oliveira e Vicente Felix.
De ver está que as mesas administrativas da Irmandade, com o decorrer do tempo, se
foram formando pouco a pouco de homens brancos. As antigas compunham-se na maioria de gente de condição humilde, de pretos forros e escravos.
Aqui vai por amostra uma dessas mesas. É a do ano de 1796: Juiz - Lourenço Peres
Vilela; procurador - Romualdo Ferreira; tesoureiro - o tenente Luiz Antonio da Fonseca Guimarães; irmãos de mesa - José Joaquim Correa, Elesbão
Moreira da Silva, Domingos Rodrigues, Antonio Damas e Antonio de Moura.
Os membros da mesa administrativa em 1808, com as respectivas qualificações, eram
estes:
Juiz - Manuel Francisco, preto forro, casado com Gertrudes Maria. Esta que era também
preta forra, ao falecer em 16 de setembro de 1824, deixou em testamento uma casa para a Irmandade.
Continuemos a individuação:
Era procurador Benedito Inácio, negro, casado, de 42 anos ferreiro, morador na
travessa do Carmo, terceira casa. Escrivão e tesoureiro: Vitoriano Casemiro Lustrosa, casado, alfaiate, de 59 anos.
Irmãos de mesa:
- José Joaquim Correa, negro, solteiro de 30 anos mais ou menos, sapateiro, morador
na travessa do Parto, sétima casa.
- Francisco de Paula, crioulo, solteiro, de 25 anos, sapateiro.
- Joaquim Luiz da Piedade, escravo do capitão-mor Bento Tomás Viana. Tinha uma casa
na Rua dos Cortumes, comprada com outorga do seu senhor.
Nesse ano, a 28 de setembro, a Irmandade recebia como doação de José Ribeiro, e sua
mulher Ana Maria de Siqueira, uma casa térrea na Rua do Açougue, da parte do Carmo. No Campo da Misericórdia (hoje
Praça Mauá) já possuía ela uma casa em 1789. Em 1812 tinha outra na Rua Meridional da Matriz (Praça
da República).
Os bens da Irmandade eram muito poucos e as rendas bem minguadas. Para a Irmandade
acompanhar um enterro percebia, por exemplo, 2$000, como nos prova o seguinte recibo: "Recebi
do sr. capitão-mor Bento Tomás Viana, como testamenteiro da falecida d. Ana Joaquina Lustosa, dois mil réis da Irmandade que acompanhou o
enterramento da mesma falecida. E como procurador da dita Irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos, mandei passar este por Felipe Neri, por eu não
saber ler nem escrever. Para clareza, me assinei com o sinal de que uso que é uma cruz. - Santos, 25 de maio de 1800. Sinal - Romualdo Ferreira".
Este procurador era crioulo, solteiro, tinha 51 anos e vivia do ofício de sapateiro.
Com o tanger dos sinos da sua igreja, em certas ocasiões, percebia também a Irmandade
alguma coisa. Vejamos este outro recibo: "Recebi a quantia de nove mil réis (9$000), de três
sinais por três vezes que se deram na Igreja de N. S. do Rosário dos Pretos, no falecimento de Manuel Joaquim da Silva Quaresma, e por ter recebido
mandei passar o presente por mim assinado. Santos, 12 de outubro de 1833. O procurador da Irmandade - Daniel Pereira".
Os irmãos falecidos até 1850 eram sepultados na Igreja do Rosário dos Pretos ou nas
covas desta Irmandade na Matriz, templo este, como já dissemos, onde a Irmandade do Rosário dos Pretos fora fundada, motivo por que ela sempre
conservou ali o seu altar, ainda mesmo depois de possuir igreja própria.
Em Santos, o último enterramento desse gênero foi feito, na Igreja do Rosário dos
Pretos, a 20 de outubro de 1850. Era uma criança de 3 anos, de nome João, filho de Ana, escrava de José Maria de Carvalho. Daí para o diante os
enterramentos passaram a ser feitos por força de lei especial no "Cemitério Público".
Em 1886 a viscondessa de Vergueiro ofertava 100$000 para as obras da igreja. A 26 de
outubro desse mesmo ano, ocorrendo o falecimento do senador José Bonifácio de Andrada e Silva, em São Paulo, a Irmandade se reunia em sessão
especial para prestar as homenagens póstumas ao insigne tribuno e um dos mais ardentes propugnadores da Abolição.
O compromisso da Irmandade foi reformado em 1856 e em 1888. Com esta última reforma
desapareceram os juízes, as juízas, os reis, as rainhas e o capitão do mastro. A primeira Mesa Administrativa compunha-se em 28 de dezembro de 1889
de provedor, vice-provedor, provedora, tesoureiro, secretário e um procurador.
Eugenio Wansuit, tesoureiro em 1890, era eleito provedor em 1892. Guilherme Aralhe,
secretário em 90, foi provedor em 96. O coronel Ascendino da Natividade Moutinho foi provedor em 1891, 1903, 1904, 1905, e de 1908 a 1917, ao todo
14 anos.
Sabemos que, para os famintos de justiça para os que a não encontram nos tribunais ou
na memória dos homens, Nossa Senhora do Rosário é o mais límpido "Spéculum Justitiae". Por isso, a História, com os olhos nesse divino
espelho de juistiça incorruptível, levou aqui a sua recordação aos mais remotos dias da Irmandade, reconstruindo fatos e relembrando algumas figuras
olvidadas. |