Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0300h3.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 10/12/05 11:15:13
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1913 - por Moreira Pinto e Almeida Moraes (3)

Ao editar em livro os números do recenseamento realizado em Santos em 1913, a Prefeitura Municipal de Santos incluiu nos anexos um texto relativo à situação do município. A obra é o Recenseamento da Cidade e Município de Santos em 31 de dezembro de 1913, e foi publicada em 1914, fazendo parte do acervo do historiador santista Waldir Rueda. A grafia foi atualizada no texto principal, nesta transcrição:

Breve notícia geográfica e histórica sobre Santos

[...]
Em seguida, reeditamos uma pequena monographia escripta pelo saudoso paulista, sr. Coronel Francisco Corrêa de Almeida Moraes, que foi, em diversas legislaturas, Presidente da Municipalidade; e referentes aos primeiros annos da historia santista.

Leva para a página anterior[...]


Entrada da Baía de São Vicente, em tela pintada em 1904
Reprodução: Benedito Calixto - Um pintor à beira-mar - A painter by the sea
edição da Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, agosto de 2002, Santos/SP

O saudoso paulista coronel Francisco Correa de Almeida Moraes publicou a seguinte notícia a respeito da fundação desta cidade: "A Vila do Porto de Santos, segundo as observações do astronomo Francisco de Oliveira Barbosa, demora na latitude austral de 24º56 e na longitude de 531º59 contados da ponta mais ocidental da ilha do Ferro: tem sua posição na ilha de S. Vicente, em um país que os guaianases chamavam Enguaguassu, nome composto do substantivo Engua e do adjetivo Guaçu e vem a dizer pilão grande. A mencionada ilha de S. Vicente, pela sua face oposta ao rumo de Noroeste, Norte e Nordeste, e também a outra ilha de Santo Amaro, da banda do Oeste, com as serras que ficam defronte dela, na terra firme, constituem um círculo grande, imperfeito, no meio do qual existe um lagamar entresachado de vários mangais (N.E.: mangal = o mesmo que manguezal) e algumas ilhotas.

Chegando a este lugar os índios e contemplando a sua figura, pareceu-lhes semelhante à dos pilões, visto pela parte interior, porquanto as serras e outeiros, levantados em torno das águas e terra plana, formam uma concavidade muito semelhante à dos instrumentos onde o gentio brasílico fazia as suas triturações; e por causa desta analogia deram o nome de Enguaguassu ou Pilão Grande à parte da ilha de S. Vicente, que vai correndo dos Outeiros até o princípio da baía de Caneu (N.E.: o texto usou erroneamente depois, por duas vezes, a grafia Ceneu), pouco mais ou menos.

Nos primeiros anos, quando todos os povoadores lavravam nesta ilha onde queriam, Paschoal Fernandes Genovês e Domingos Pires fizeram sociedade e ambos vieram situar-se em Enguaguassu, na margem do canal, à qual Martim Affonso de Sousa chamou - Rio de S. Vicente - na sesmaria de Pedro Góes; nesta margem, defronte do largo onde tal rio se divide em dois braços, um para Norte, que forma a barra da Bertioga, e outro para o Sul, que faz a barra grande de Santos, edificaram os sócios uma casinha na margem oriental do ribeiro, que pelo tempo adiante se chamou S. Jerônimo, por ser colocada uma imagem do santo doutor junto ao dito ribeiro, nas fraldas do outeiro, que agora se apelida de Monte Serrat e "dantes se dizia de S. Jerônimo".

Clique na imagem para ampliá-la
Capitania de S. Vicente, no mapa de João Teixeira Albernás, de 1631
(clique na imagem para ampliá-la)
Imagem: Mapas Históricos Brasileiros, da enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, ed. Abril Cultural, São Paulo/SP, 1969. Reprodução do fac-simile existente na mapoteca do Ministério das relações Exteriores, situada no Rio de Janeiro, no então estado da Guanabara

Para a sua particular serventia abriram os ditos sócios o caminho antigo de Santos para S. Vicente, o qual principiava na sua casa, continuava por uma ladeirinha e passava por detrás do outeiro onde hoje está o Mosteiro de S. Bento. Assim se conservaram Paschoal Fernandes e Domingos Pires, sem cartas de sesmarias, senão alguns anos depois de navegar para a Índia o primeiro donatário. Achando-se ele ausente, D. Anna Pimentel, sua mulher e procuradora, constituiu capitão loco-tenente a Gonçalo Monteiro, o qual governou por alguns anos e passados eles, a mesma procuradora, em 16 de outubro de 1538, nomeou a Antonio de Oliveira para lhe suceder no posto.

Este capitão-mor foi quem repartiu a ilha de S. Vicente pelos moradores: ele deu a Paschoal Fernandes e Domingos Pires as terras de Enguaguassu, que ficam a Leste do ribeiro de S. Jerônimo, por carta passada em S. Vicente em 1º de setembro de 1539; e às vizinhas que demoram a Oeste do dito ribeiro, concedeu a André Botelho, aos 2 de junho de 1541, declarando que partiriam pela regueira que ali faz o outeiro que diziam ser de Braz Cubas (este outeiro de Braz Cubas é o Monte Serrat), segundo constava nos livros do registro da provedoria da Fazenda Real, de que em tempo Frei Gaspar escreveu as Memórias; porém as escrituras mais antigas fazem menção destas mesmas terras contíguas à regueira da costa e fronteiras a Nossa Senhora da Graça, como pertencentes a um mestre Bartholomeu, que foi um ferreiro que em sua companhia trouxe Martim Affonso, e pessoa muito nomeada em diversas escrituras antigas com o nome de Bartholomeu Gonçalves.

A referida D. Anna Pimentel havia concedido a Braz Cubas, aos 23 de setembro de 1536, e as terras de Geritibatiba, fronteiras a Enguaguassu, porém muito distantes e S. Vicente, e querendo o dito Braz Cubas evitar o incômodo de fazer viagens largas quando lhe fosse necessário vir à vila, ideou levantar outra em sítio mais próximo à sua fazenda e juntamente mais apto para o embarque e desembarque dos navios.


Capela de Santa Catarina, no outeiro de mesmo nome
Imagem: detalhe de tela de Benedito Calixto

Com este projeto comprou a um dos ditos sócios parte de um quinhão, a qual parte neste tempo era mato virgem e compreendia o outeirinho de Santa Catarina; mandou roçá-la e deu princípio à nova povoação junto do mencionado outeiro. Em Santos ainda se conserva a lembrança de que Braz Cubas foi o seu fundador, cuja tradição confirma em vários documentos; porém bastará que sejam citados três documentos colecionados por Fr. Gaspar em suas Memórias, à pág. 95, n. 145, descritos da seguinte forma: "Ele Cubas doou aos religiosos de Nossa Senhora do Carmo um pedaço de terra junto à capela de Nossa Senhora da Graça para edificar o seu convento", que pretendiam levantar naquele sítio e na escritura lavrada em Santos aos 31 de agosto de 1589, diz o tabelião Athanazio da Motta: "Nesta vila do porto de Santos, que ele Braz Cubas povoou de fogo morto, sendo o sítio desta vila tudo mato".

O mesmo Braz Cubas, sendo preciso mostrar que o caminho primitivo de Santos por São Vicente ia por S. Jerônimo e era pouco mais ou menos o próprio, por onde hoje se entra para Jabaquara, produziu várias testemunhas na vila de S. Vicente no ano de 1581 e a segunda, Diogo Dias, jurou da maneira seguinte: "O primeiro homem que povoou a vila e Santos foi Paschoal Fernandes e o sr. Braz Cubas e daí se fez a vila Santos".

Cubas foi sepultado na capela-mor da igreja da Misericórdia, hoje matriz da vila de Santos, e no pavimento, sobre a sua sepultura, colocaram uma campa, que agora existe no presbitério, onde se vê gravado o seu epitáfio do teor seguinte: "S. de Braz Cubas, Cavaleiro fidalgo da casa de El-rei. Fundou e fez esta vila sendo Capitão e Casa de Misericórdia no ano de 1543 descobriu ouro e metais ano de 60 fez fortaleza por mandado de El-rei D. João III. Faleceu no ano 1549".

Caminhava a passos largos a nova povoação por nela fazerem casas todos os morgados do rio da Bertioga; os da terra firme mais chegada a Enguaguassu; muitos da ilha de Santo Amaro e vários da outra de S. Vicente, cujas fazendas estavam mais próximas à nova povoação, do que a vila. Até este tempo os navios davam fundo no lugar onde o rio Santo Amaro desemboca no canal da Barra Grande. Esse surgidouro era porém inconveniente, assim aos marinheiros, como aos donos das fazendas: aos primeiros por lhes ser preciso residir em porto solitário, enquanto as embarcações aqui se demoravam, e aos segundos porque conduziam para a vila as suas cargas mais pesadas em canoas, ou por dentro, rodeando toda a ilha com viagem mais dilatada.

Para que essas fossem mais breves e a gente da tripulação não assistindo em lugar deserto, tanto que se deu princípio a nova povoação logo os navegantes desampararam o antigo surgidouro e vieram dar fundo mais acima, defronte da dita povoação. Como pois junto a ele ancoravam os navios que vinham de S. Vicente e descarregavam e o mesmo faziam os moradores da ilha de Santo Amaro, Bertioga e terra firme, que das suas roças vinham para a vila em canoas e não queriam ir embarcados até São Vicente, os quais saltavam em terra na povoação e dali caminhavam para S. Vicente, pela estrada que Paschoal Fernandes e Domingos Pires tinham aberto; por este modo deram o nome de porto à dita povoação, querendo dizer com esta palavra, que ela era o porto da vila de S. Vicente.

Com este nome (Porto) sem algum outro aditamento se conservou alguns anos, até que lhe acrescentaram de Santos pela razão que dá o erudito Fr. Gaspar, de cujas Memórias, pode-se dizer, copio palavra por palavra; e que é a seguinte:

"Os marinheiros que chegavam enfermos, ou adoeciam depois de cá estar, padeciam muitas necessidades por falta de casa destinada para se curar. Desejoso de socorrer a esses miseráveis, Braz Cubas, no projeto de fundar um hospital e irmandade de Misericórdia, que o administrasse, comunicou os seus intuitos aos moradores principais do Porto, e, aprovando todos eles uma obra tão pia, erigiram na povoação a primeira confraria da Misericórdia que teve o Brasil, à qual concedeu todos os privilégios dados por seu rei às Misericórdias do Reino.

"O mesmo Braz Cubas, como esmolas e adjutório dos confrades, edificou uma igreja com o título de Nossa Senhora da Misericórdia e junto a ela um hospital com o apelido de Santos, à imitação de outro que em Lisboa tinha o mesmo nome. Esse título, que somente era próprio do hospital, depressa se comunicou à povoação e daí por diante entraram a chamar-lhe Porto de Santos. Assim a nomeiam os documentos mais antigos e não padece a menor dúvida que nela houve hospital que é onde está o edifício da Alfândega, muito tempo aproveitado sem reconstrução, junto à igreja que é a matriz que a princípio teve a invocação de Nossa Senhora da Misericórdia".

Esparsos, encontramos muitos documentos que comprovam o nosso acerto. A povoação do Porto de Santos, nos seus primeiros anos, foi sujeita à vila de S. Vicente, assim no temporal, como no espiritual, por isso os camaristas desta vila, a cujo tempo pertencia a nova povoação, requereram que nela devia haver juiz pedâneo e elegeram para esse emprego o padre Pedro Martins Namorado, o qual deu juramento à referida Câmara em 1º de março de 1544.

Também se compreendia na freguesia de S. Vicente, a cuja paróquia nesse tempo estavam sujeitos todos os fiéis da Capitania; porém de sua jurisdição se eximiram os santistas, primeiro do que os outros, alcançando que a freguesia se dividisse em duas, e por isso consentiram os irmãos da Misericórdia, que na sua igreja se exercitassem as funções paroquiais, enquanto não se edificasse o novo templo para matriz, permissão de que muito se arrependeram pelo tempo adiante, porque nunca se fez outra igreja, não obstante ordenar el-rei, a requerimento de irmãos, que os vigários desocupassem a Misericórdia e se construísse a igreja paroquial.

O êxito desta contenda foi levantarem os irmãos outra igreja de novo no lugar onde hoje existe a da Misericórdia e ficar para Matriz a que eles haviam feito, a qual não durou muito tempo e a matriz agora existente é terceira; porém ambas as subseqüentes foram edificadas no próprio local da Misericórdia antiga.

Aos 8 de junho de 1545 entrou Braz Cubas a servir o cargo de capitão-mor e uma das suas primeiras ações foi conceder foro à vila do porto de Santos. Este capitão certamente foi quem a levou ao dito predicamento em nome de Martim Affonso de Sousa, do qual era loco-tenente constituído por sua procuradora D. Anna Pimentel: mas não foi possível, diz Fr. Gaspar, averiguar o dia em que Santos passou a ser vila e unicamente assegura que isto sucedeu em alguns dias que correram entre 4 de agosto de 1546 e 3 de janeiro seguinte.

Assim o provam, continua o dito escritor, duas escrituras, uma de terras vendidas a Braz Cubas por Paschoal Fernandes na qual diz o tabelião Pedro Fernandes, que a lavrara na povoação de Santos aos 14 de agosto de 1546 e outra também de venda de uma casa que Francisco Sordido e sua mulher Isabel Rodrigues fizeram a Pedro Rozé, escrita pelo tabelião Luiz da Costa na Vila do Porto de Santos aos 3 de janeiro de 1547.

Se pois ainda era povoação em 14 de agosto de 1546 e já se achava na classe das vilas aos 3 de janeiro de 1547, segue-se que subiu a esse predicamento em alguns dos dias intermédios, pois que nem mesmo outros historiadores de nota determinam positivamente o dia da elevação à vila e senão vejamos: Milliet de Saint-Adolplhe diz que o capitão Braz Cubas, representante do donatário Martim Affonso, mandou fazer o primeiro hospital do Brasil e em 1546 impetrou o título de vila para aquele Porto, que veio a ser o da vila de S. Vicente; e Azevedo Marques, em seus Apontamentos Históricos, diz que teve predicamento de vila em 1545, confirmado por carta régia do ano seguinte, sendo capitão-mor Braz Cubas.


 Braz Cubas lê o foral de vila de Santos
Reprodução: Benedito Calixto - Um pintor à beira-mar - A painter by the sea
edição da Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, agosto de 2002, Santos/SP

Antes de prosseguirmos a nossa narração, consintam, aqueles que nos lerem, que proclamemos Braz Cubas um benfeitor da humanidade, e cuja memória deve ser abençoada por todos os paulistas com toda a veneração. Lendo-se a história da fundação de Santos e S. Vicente, escrita por diversos, não há quem não se curve, respeitoso, diante da heroicidade e dos mais profundos e nobres sentimentos que adornavam a pessoa desse notável povoador!

Entretanto, uma muito simples lápide cobre sua sepultura! Valha-nos ao menos a inscrição; dá uma idéia, ainda que pálida, do seu valor moral e civil, e assinalará ad perpetuam a sua passagem na pátria paulista.

A vila do Porto de Santos teve o seu nascimento junto ao outeiro de Santa Catarina e na sua adolescência ainda não passava do ribeiro do Carmo para o ocidente; mas ao depois de se aumentar o comércio com a vila de S. Paulo e povoações de serra acima, aos poucos se foi estendendo para Oeste, porque os paulistas, quando vinham a Santos, alugavam as casas mais próximas ao porto do Cubatão e mercavam nas primeiras lojas em que se achavam os gêneros que lhes eram mais necessários.

Por este motivo e também pela razão de quererem todos habitar mais perto das fontes, desprezaram o terreno oriental e caminhou a edificação das casas para o poente, o qual passou o ribeiro de S. Jerônimo, balisa dos dois sócios - Paschoal Fernandes e Domingues Pires - e entrou pela várzea que fora do mestre Bartholomeu, ficando por isso quase toda a vila abafada de montes, o que não sucederia se os edifícios seguissem o rumo do oriente; eles tinham principiado onde acabam o outeiro do Monte Serrat que impede as virações refrigerantes, muito necessárias em Santos na estação canicular.

Desta desordem nasceu ficar deserto quase todo o lugar que serviu de berço à vila, o qual se conservou sem moradores até o ano em que se edificaram os quartéis dos soldados, atrás da matriz.

No tempo da deserção caiu o pelourinho antigo, que Braz Cubas havia mandado levantar entre a praia e o solo, onde existe a casa  do trem, erigindo-se ao depois outro mais moderno junto à cadeia e o convento do Carmo em 1697.


O segundo pelourinho, em tela de Benedito Calixto

Tratando-se da fundação da vila do Porto de Santos, é justo ou torna-se necessário que alguma coisa, ainda que muito perfunctoriamente, digamos em relação ao município respectivo, sempre apoiado nos dizeres das Memórias de Fr. Gaspar. Conhecendo os que acompanharam Martim Affonso de Sousa ao Brasil, que sem negócio e agricultura, nem uma colônia se aumenta, promoveram quanto lhes foi possível estes dois ramos, mandaram vir da ilha da Madeira mudas de cana e introduziram todas as espécies de animais domésticos.

Dos distritos, pois, de Santos e S. Vicente, saíram canas para outras capitanias brasílicas, assim como saíram animais, que propagaram em todas as mais. Grassou a plantação da cana com tanta felicidade, que antes de muito tempo se multiplicaram os engenhos, sendo muitos armados ou edificados antes da era de 1557, e é certo que neste tempo, tendo se desenvolvido muito a plantação, e não dando vazão as moendas já estabelecidas, os moradores de Santos e S. Vicente requereram a D. João II que, à custa da Real Fazenda, mandasse levantar dois engenhos para neles se moerem as canas dos vizinhos.

Tanto apreço faziam os antigos da lavoura de cana e tão necessárias julgavam a perícia e a boa consciência dos mestres e purgadores de açúcar, que os provedores-mores davam provisão a um homem inteligente para examinar os tipos oficiais, antes de entrarem a exercer seus ministérios, e a Câmara os obrigava a irem nela jurar, que não prejudicariam os donos, assim na repartição, como na purgação do açúcar, nem consentindo que pessoa alguma levasse melado ou caldo (garapa), e outrossim que aproveitariam tudo quanto se fizesse.

O preço ordinário de uma arroba de açúcar fino, e mais subido (textuais palavras de Frei Gaspar), eram 400 réis e arroz em casca vendia-se a 50 réis o alqueire, segundo consta de livros e escrituras desse tempo; assim mesmo, todos se ocupavam na plantação destes dois gêneros, os quais ao depois foram desprezados pelos modernos com tanto excesso, que em toda a capitania somente havia algumas engenhocas onde se fabricavam, como até hoje, poucos barris de aguardente de cana.

Por muitos anos e até meados do presente século (N. E.: século XIX), vinha de serra acima todo o açúcar, quer para abastecimento da praça, quer para embarcar, e a negligência dos naturais desta marinha chegou a tal ponto, que hoje estão pobríssimas, cobertas de mato, muitas terras em que em outro tempo existiam grandes fazendas, e talvez houvesse motivo para essa negligência, porque o produto exportava para o Reino em gênero da terra, principalmente em açúcar, o qual era moeda corrente deste tempo. O dinheiro vinha do Reino e era pouco, quase todo ia parar nas mãos dos ministros, párocos e oficiais de justiça e por esta razão era os oficiais tão estimados que muitos fidalgos e pessoas mais nobres da terra serviam de tabeliães e escrivões.

Em 1591 foi Santos repentinamente invadido por Thomaz Cawendich, pirata inglês, que desembarcou uns duzentos homens, fez lançar fogo à vila e alojou-se no Convento dos Jesuítas. Dizem mais alguns cronistas que foram por terra a São Vicente e que no caminho queimaram mais alguns engenhos e que, tendo-se retirado depois de acometerem toda a sorte de roubos e depredações, voltaram ainda a Santos cerca de dois meses depois, e desembarcaram mais de vinte pessoas, apossaram-se de gêneros e víveres, cometendo ainda saques e pilhagem; mas é certo que os portugueses, que haviam fugido para o interior, armaram-se, e ao terceiro dia da estada dos piratas, os assaltaram matando-os a todos.

Depois desta sortida, o pirata chefe, que não tinha desembarcado, dirigiu-se para a Capitania do Espírito Santo, onde foi melhor sucedido. Ainda é certo que, tendo chegado à Ilha Grande, no Rio de Janeiro, saqueou e queimou a nascente povoação. Rezam os cronistas que posteriormente Santos foi posta em sítio pelos holandeses e ingleses.

Há um fato que, porque se prende à fundação de Santos e S. Vicente, convém muito averiguar: é conhecer-se positivamente o ano em que Martim Affonso saiu de Lisboa para o Brasil. Há uma falsa opinião entre alguns historiadores nacionais e estrangeiros, que supõem a origem da Capitania de S. Vicente mais antiga do que na realidade foi. Vários franceses e espanhóis supõem povoada a Capitania de S. Vicente em 1516. Jaboatão assenta que Martim Affonso de Sousa veio em 1525.

No próprio cartório da provedoria da Fazenda Real da vila de Santos, que mudaram para São Paulo, Frei Gaspar, com não pouca felicidade, descobriu um alvará, do qual ninguém tinha notícia, e constituiu um monumento precioso, que foi assinado aos 20 de janeiro de 1530, nas vésperas da viagem do capitão-mor, e que é o seguinte:

"D. João por graça de Deus El-rei de Portugal e dos Algarves d'aquém e d'além mar, em África senhor da Guiné, da conquista na navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia: a quantos esta carta virem, faço saber que para que as terras que Martim Affonso de Sousa, do meu conselho, achar ou descobrir na terra do Brasil, onde eu o envio para meu capitão-mor, que possam aproveitar. Eu, por esta minha carta lhe dou poder para que ele dito Martim Affonso possa dar às pessoas, que consigo levar, e às que nas ditas terras quiserem lhes parecer bem e segundo lhes merecerem por seus serviços e qualidade; e as terras que assim der, serão para eles e seus descendentes, e das que assim der às ditas pessoas lhes passará suas cartas e dentro de dois anos da dita data cada um aproveite a sua e se no dito tempo assim não fizer, as poderá dar a outras pessoas, para que se aproveitem com a dita condição; e nas ditas cartas, que assim der, irá trasladando esta minha carta de poder, para se saber a todo tempo como o fez por meu mandato e lhe ser inteiramente guardada, a quem a der; e porque assim me praz, lhe mandei dar esta minha carta por mim assinada e selada com meu selo pendente. Dada na vila de Castro Verde, aos 20 dias do mês de novembro, Fernam da Costa a fez no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1530".

Assim é e averiguado está que Martim Affonso aportou a estas plagas em 1531 (N. E.: Martim Afonso deixou Lisboa no dia 3 de dezembro de 1530, e passou em 1531 pelo litoral paulista, mas prosseguiu viagem até o Rio da Prata, só retornando a São Vicente em janeiro de 1532, para fundar a vila) e que tinha poderes plenos e absolutos para a distribuição de terras em datas ou sesmarias e que, finalmente, tinha o pomposo título que lhe davam os tabeliães: Meu magnífico Senhor o sr. Martim Affonso de Sousa, do Conselho de El-rei Nosso Senhor e Governador em todas as terras do Brasil etc.

Isto constituía o cabeçalho forçado da maior parte das antigas escrituras, a mais dos fatos que constituem anexos a esta nossa narração histórica, que expurgam erros que persistiam na mente de muitos, porque Frei Gaspar examinou as suas verdadeiras fontes e que são: a viagem costeira que fez Martim Affonso em princípios de janeiro de 1531 até a Barra da Bertioga, desde o Rio de Janeiro, e a em que, em companhia de João Ramalho, empreendeu serra acima, chegando aos campos de Piratininga onde se achava aos 10 de outubro de 1532.

A razão natural mostra que a esquadra, vinda do Rio de Janeiro, explorando a costa, primeiro havia de descobrir a barra da Bertioga, que é a mais setentrional de todas e ainda a mesma razão persuade que entraram por ela na suposição de que era a única, por ignorarem os pilotos nesse tempo que mais adiante ficava a Barra grande, e ainda mais adiante a de S. Vicente. Não há pois absolutamente razão alguma para se supor que o desembarque primeiro fosse na terceira barra. Surgindo a esquadra de Martim Affonso no Rio de Janeiro; desembarcando gente junto a uma praia ao Pão de Açúcar, e explorando o terreno, achou o povoado dos Tamoios, índios belicosos e desconfiados, e reconheceu que só por meio de armas podia estabelecer-se em terras desta nação; não quis, como prudente, expor-se à contingência de uma guerra perigosa.

Desenganado de não poder fundar a sua colônia no Rio de Janeiro, mandou levantar as âncoras e seguiu a Oeste. Depois de navegar 4 léguas descobriu a barra da Tijuca, que desprezou por não ser capaz nem de embarcações medianas; pela mesma razão não tomou a barra da Guaratiba, outras quatro léguas da denominada Tijuca.

Costeou a Ilha Restinga ou da Marambaia, que só tem cinco léguas de comprido e mais adiante avistou uma ilha que demora na altura de 23º 19", à qual deu o nome de Ilha Grande, por serem menores as muitas outras que povoam o seu contorno. Entre ela e o morro de Marambaia formou a natureza uma barra admirável, com largura de duas léguas; por aqui entrou a armada e achou-se dentro de uma enseada muito espaçosa, a que o capitão denominou Angra dos Reis, por ter chegado a ela a 6 de janeiro, dia a que se dizia dos reis.

De Angra dos Reis saiu a esquadra por outra barra, também excelente, do Cairuçu, e foi continuando a derrota até a ilha dos Porcos, a que instrumentos antigos chamam Tapera de Cumhambeva, o índio que na sua canoa conduziu para S. Vicente o venerável padre José de Anchieta, quando voltava de Yperoyg, onde fora solicitar e ajustar as pazes com os Tamoios de Ubatyba e Larangeiras.

Passou avante a ilha dos Porcos e deixando à direita a Enseada de Guaramomis, avistou uma ilha alta, à qual deu o apelido de S. Sebastião, por dele rezar a igreja neste dia. Depois de passar esta ilha, foi continuando a viagem por espaço de mais de doze léguas e aos 22 de janeiro de 1531 (N. E.: Martim Afonso só chegou a São Vicente em 22 de janeiro de 1532, pois em 1531 passou direto, com breves escalas, em direção ao Rio da Prata) viu uma barra com fundo suficiente para caravelas, patachos e outros vasos de semelhante lotação; e como o donatário religioso costumava assinalar os lugares mais notáveis com o nome de santos cujos eram os dias em que a eles chegava a primeira vez, demarcou com o título de Rio de S. Vicente a barra por onde entrou no dia desse mártir, que escolheu para patrono de sua colônia.

Não pareça pouco ao leitor este ponto que elucidamos - a averiguação da barra por onde entrou a armada; é muito necessário saber-se qual das três barras é Rio primário de S. Vicente para se conhecer verdadeiramente o ponto de partida para os nossos quadros históricos. No artigo seguinte trataremos da viagem do capitão-mor aos campos de Piratininga. O respeito e o conceito que gozava João Ramalho entre os naturais da terra e os bons ofícios de Antonio Rodrigues, seu companheiro, fizeram conciliação entre Martim Affonso e os Guaianases, estreitando-os com amizade, a qual o capitão-mor firmou com pontual observância das condições de paz a sua chegada estipulada.

Não satisfeito este incansável conquistador em ter explorado a costa, projetou conseguir alguma noção dos sertões deste continente, empresa não intentada pelos capitães seus antecessores, os quais se contentavam em explorar os mares e ver as praias.

Servindo-lhe de guia João Ramalho, embarcou em S. Vicente e foi passar o Caneu, aquela baía de água salgada, em cuja passagem, tendo ela sido livre por mais de dois séculos aos moradores da marinha e serra acima, que navegavam e comunicavam pelo lagamar de Santos e portos, a que chamam Cubatão, a junta, a fazenda real de S. Paulo, presidida pelo capitão general Martim Lopes Lobo Saldanha, vendo que os rendimentos reais da Capitania eram muito limitados para as grandes despesas que era obrigada a fazer, estabeleceu bastante rendoso, mas sem que sua majestade ordenasse por lei: ficando desde então a dita passagem do Caneu administrada por contrato real em que andou até a extinção do tráfego das tropas.


Martim Afonso no Porto de Piaçaguera, em quadro de Benedito Calixto
Imagem reproduzida da enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História,
Editora Abril Cultural, São Paulo, 1969

Em um destes pontos chamado Cubatão, e que ficava em terras pertencentes noutro tempo aos jesuítas do Colégio de Santos, foi desembarcar o primeiro donatário, o qual lhe deu o nome de Porto de Santa Cruz, trocando por este apelido o que antes tinha de Porto das Armadias. Entrava-se por ele pelo estreito chamado Peraique, o qual faz confluência com o Rio Cubatão geral, pouco acima da ilha do Teixeira, assim denominada por ter sido o capitão-mor o provedor da real casa da fundição, Gaspar Teixeira de Azevedo; hoje chamam-lhe Piassaguera, nome composto do substantivo piassaba, que significa porto e do adjetivo aquera, coisa velha ou para melhor dizer, antiquada.

Aqui deu princípio a sua viagem para o campo de Piratininga, pelo caminho de que se serviram os portugueses, até o ano de 1560, em que o governador geral do Estado, Mem de Sá, vindo a esta Capitania, ordenou que ninguém a frequentasse por infestada de índios, nossos contrários, substituindo em seu lugar a estrada do Cubatão Geral, a que as sesmarias chamavam Caminho de São José, por tê-lo aberto ou concertado o venerável padre José de Anchieta.

Subiu a escabrosíssima serra Paranapiacaba (este nome quer dizer: sítio de onde se vê o mar): em chegando ao dito pico da dita serra havia de conhecer a impropriedade, com que dera o nome de Rio de S. Vicente à barra descoberta no dia deste santo, pois ali havia de ver que as três barras - da Bertioga, Santos e S. Vicente, não rios, mas sim três boqueirões por onde o mar brasílico vem formar um espaçoso lagamar entre a terra firme e as duas ilhas de Santo Amaro e S. Vicente; encurva-se nesta passagem a mencionada terra firme composta de serras altíssimas com a figura de arco imperfeito e compreende no seu semicírculo as ilhas e lagamar referidos.


Versão moderna da cena vista por Martim Afonso em Paranapiacaba, no alto da Serra do Mar
Foto em 8/5/2004 pelo foto-geógrafo César Cunha Ferreira

Descobrem-se daquelas eminências muitas léguas de mar e terra e parece a quem olha de cima, que está vendo um jardim ameníssimo com ruas alagadas e canteiros de vegetais sempre verdes; porque as águas do mar, depois de passarem as mencionadas ilhas de Santo Amaro e S. Vicente, formam inumeráveis canais entre si unidos e entre sachados de lamerões cobertos de árvores, a que se chamam mangues.

Não há aspecto mais agradável do que este; porém raras vezes os desfrutam os viandantes por estarem os cumes das serras ordinariamente cobertos de nevoeiros, que impedem a vista dos objetos inferiores. Nesta viagem não basta chegar-se ao pico para se ter dado fim às subidas; veem-se os caminhantes obrigados a continuá-los quando os reputam acabados, porque os cumes dos outeiros servem de base a outros montes, que adiante se segue e assim vai prosseguindo, de sorte que é necessário aos viandantes caminharem como quem sobe por degraus de escada.

Vencido finalmente este caminho, talvez o pior que tem no mundo, na frase de Frei Gaspar, chegou Martim Affonso ao campo de Piratininga e ali, em 10 de outubro de 1532, assinou a escritura de sesmaria de Pedro Góes, lavrada por Pero Capico, escrivão de El-rei.

Examinou o terreno quanto lhe foi possível, do qual formou a ideia muito vantajosa; mas por isso mesmo, tanto que se recolheu à vila de S. Vicente e deu uma providência digna de sua alta compreensão, ordenando que nem a resgatar com os índios pudessem ir brancos ao campo sem sua licença ou dos capitães seus loco-tenentes, a qual se daria com muita circunspecção, e unicamente a sujeitos bem morigerados.

Dessa generalíssima só foi excetuado João Ramalho, o qual veio situar-se meia légua distante da Borda do Campo, muito próximo à hoje vila de S. Bernardo, onde foi criada a terceira vila denominada Santo André, da qual já não permanece o menor vestígio. Vivendo nos deliciosos campos de Piratininga, onde a natureza pródiga oferecia tudo quanto era preciso para satisfazer as primeiras precisões, casou-se com uma índia chamada Bartira; João Ramalho teve muitos filhos.

Deste casal existem descendentes em nosso Estado, talvez já na décima geração. Santos é a segunda povoação em antiguidade na Capitania de S. Vicente; é mais importante do litoral do Estado, é chave do comércio de exportação e importação, é a cidade marítima mais mercantil, é finalmente o berço de homens notabilíssimos nas letras, nas ciências, nas artes etc., até a idade presente".


O NOME DO RAMALHO NAS ATAS - As atas da vila da borda e do interior do Campo de São Vicente trazem o nome e a assinatura de João Ramalho, o incansável andarilho e primeiro desbravador desta região do Campo de São Vicente - ele pouco se deteve na ilha e sempre preferiu o continente. Na parte inferior vê-se a assinatura característica de João Ramalho no final da ata de Santo André da Borda do Campo, e na superior, trecho da ata da Câmara de São Paulo onde consta sua declaração recusando o cargo de vereador paulopolitano
Reprodução: O Caminho do Mar - subsídios para a história de Cubatão