Martim Afonso de Souza em Cubatão
MADRE DE DEUS, Frei Gaspar da. "Memórias para a História da Capitania de São Vicente". 3ª edição. São
Paulo e Rio, Weiszflog Irmãos, 1920, p. 174.
"Não satisfeito o incansável Martim Afonso com ter
explorado a costa, projetou alguma noção dos sertões deste continente, empresa não intentada pelos capitães seus antecessores, os quais se
contentaram com explorar os mares, e ver as praias.
Servindo-lhe de guia João Ramalho, embarcou-se em São Vicente, e foi passar
o Caneu, aquela baía de água salgada, em cuja passagem, tendo ela sido livre por mais de dois séculos aos moradores da Marinha, e Serra acima, que
navegavam e se comunicavam pelo lagamar de Santos, e Portos, a que chamam Cubatões, a Junta da Fazenda Real de São Paulo, presidida pelo Governador
e Capitão General Martim Lopes Lobo de Saldanha [1]
vendo que os rendimentos reais da Capitania eram muito limitados para as grandes despesas, que era obrigada a fazer, estabeleceu um imposto,
bastantemente rendoso, mas sem que Sua Majestade o ordenasse por lei; ficando desde então a dita passagem do Caneu administrada por contrato Real,
em que anda até o presente.
Em um destes portos, chamados Cubatões, que ficava em terras pertencentes
n'outro tempo aos Jesuítas do Colégio de Santos, e agora a Luiz Pereira Machado, foi desembarcar o primeiro Donatário, o qual lhe deu o nome de
Porto de Santa Cruz, trocando por este apelido o que antes tinha de Porto das Armadias, segundo declara o dito Martim Afonso na carta de Sesmaria
por ele concedida a Rui Pinto (o grifo é nosso).
Entrava-se para ele pelo esteiro chamado Piraiquê, o qual faz confluência com o Rio do
Cubatão Geral pouco acima da Ilha do Teixeira, assim denominada, por ter sido do Capitão-mor, e Provedor da Real Casa da Fundição, Gaspar Teixeira
de Azevedo: hoje chamam-lhe Piassagüera, nome composto do substantivo piassaba, que significa porto, e do adjetivo aquéra,
cousa velha, ou para melhor dizer, antiquada.
Aqui deu princípio à sua viagem para o campo de Piratininga pelo caminho de
que se serviram os portugueses até o ano de 1560 , em que o Governador Geral do Estado Mem de Sá, vindo a esta Capitania, ordenou que ninguém o
freqüentasse, por ser infestado de índios nossos contrários, substituindo em seu lugar a estrada do Cubatão geral
[2], a que as Sesmarias antigas chamam Caminho do Padre
José, por o ter aberto, ou consertado, o Venerável Padre José de Anchieta.
Subiu a escabrosíssima serra de Paranapiacaba (este nome quer dizer: sítio donde se
vê o mar); em chegando ao planalto dela, havia de conhecer a impropriedade com que dera o nome de Rio de São Vicente à barra descoberta no dia
deste Santo, pois dali havia de ver que as três Barras da Bertioga, Santos e S. Vicente não são rios, mas sim três boqueirões, por onde o mar
brasílico vem formar um espaçoso lagamar entre a terra firme e as duas ilhas de S. Vicente e Santo Amaro.
Encurva-se nessa paragem a mencionada terra firme, composta de serras altíssimas, com
a figura de arco perfeito, e compreende no seu semicírculo as ilhas, e Lagamar referidos.
Descobrem-se daquela eminência muitas léguas de mar, e terra, e parece a quem olha de
cima que está vendo um jardim ameníssimo com ruas alagadas, e canteiros de vegetais sempre verdes; porque as águas do mar, depois de passarem as
mencionadas ilhas de Santo Amaro e São Vicente, formam inumeráveis canais entre si unidos, e entresachados de lamarões cobertos de árvores, a que no
Brasil chamam mangues. Não há prospecto mais agradável que este; porém, raras vezes o desfrutaram os viandantes, por estar o cume das serras
ordinariamente coberto de nevoeiros, que impedem a vista dos objetos inferiores.
Nesta viagem não basta chegar-se ao pico, para se ter dado fim às subidas, e vêem-se
os caminhantes obrigados a continuá-las, quando as reputam acabadas; porque os cumes dos outeiros servem de base a outros montes, que adiante se
seguem, e assim vão prosseguindo, de sorte que é necessário aos viandantes caminharem, como quem sobe por degraus de escadas.
Vencido finalmente este caminho, talvez o pior que tem o mundo, chegou
Martim Afonso ao campo de Piratininga, onde se achava aos 10 de outubro de 1532, e ali assinou nesse dia a Sesmaria de Pedro de Góis, lavrada por
Pero Capico, Escrivão de El Rei [3].
Examinou o terreno, quando lhe foi possível, do qual formou idéia muito
vantajosa; mas por isso mesmo, tanto que se recolheu à Vila de S. Vicente, deu providência digníssima da sua alta compreensão, ordenando que nem a
resgatar com os índios pudessem ir brancos ao campo sem sua licença, ou dos capitães seus loco-tenentes, a sujeitos bem morigerados. Desta regra
generalíssima só foi exceptuado João Ramalho, o qual veio situar-se meia légua distante da Borda do Campo, no lugar onde hoje existe a Capela de S.
Bernardo [4].
NOTAS EXPLICATIVAS
[1] Martim Lopes Lobo de
Saldanha foi governador e capitão-general da Capitania de São Paulo de 1775 a 1782. Frei Gaspar alude ao problema da cobrança da Passagem fluvial de
Santos a Cubatão e vice-versa.
[2] D. Ana Pimentel, esposa
e procuradora do donatário Martim Afonso de Souza, em Lisboa, a 11 de fevereiro de 1544, levantou, por meio de um alvará, a proibição de ir ao
planalto de Piratininga.
[3] Ver "A doação de terras
no Brasil por Martim Afonso de Souza", nesta Antologia.
[4] O local da capela de S.
Bernardo é hoje aproximadamente Santo André. |