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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - TÚNEIS SECRETOS
Um túnel quadricentenário

A história dos túneis, em 1944
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Esta matéria foi publicada na edição especial de 26 de março de 1944 no jornal santista A Tribuna, comemorativa do cinqüentenário desse matutino:
 


Imagem: reprodução parcial da matéria original

Um abrigo subterrâneo construído em Santos no século XVI

Serviu de refúgio aos santistas, quando das invasões corsárias - Estabelecendo um paralelo com os subterrâneos da Ilha de Malta, construídos na mesma época

Geraldo Ferrone

Santos, em meados do século XVI, quando ainda ressoava a Enguaguassu, era constantemente atacada pela pirataria estrangeira, que, sem escrúpulos, não respeitava a terra ainda agreste e semi-virgem.

Entretanto, já lá fora, no Velho Mundo, a descoberta deste rincão e a lenda do ouro destas plagas tornavam-se cousa cediça, tanto assim que as fragatas e escunas alemãs, inglesas, francesas e espanholas, com suas velas enfunadas, singravam nossos mares inquietando os portugueses que trabalhavam a terra.

Entre a brava gente lusitana que aqui aportou em 1532, sob o comando de Martim Afonso de Sousa, arrostando toda sorte de perigos para colonizar o "gigante deitado", figurava mestre Bartolomeu, ferreiro de profissão, o primeiro artífice da "Cellula Mater".

Mestre Bartolomeu, tendo ficado nestas plagas, foi aquinhoado com uma sesmaria à margem do rio São Jorge, onde se construiu o primeiro engenho de cana-de-açúcar no Brasil, cujas paredes, de pedra sobre pedra, ainda estão de pé, apesar dos séculos...

Santos, por essa época, já tinha regular número de habitantes e várias casas de alvenaria construídas pelas fraldas dos morros, era o caminho mais curto para o Planalto, de onde corria a notícia por todo o mundo de haver ouro à flor da terra. A pirataria sentiu-se incontestavelmente atraída pelo metal precioso. Independente dessa riqueza, que encheu o erário de muitas nações, os corsários tinham forçadamente que procurar povoações para abastecerem de provisões de boca suas caravelas e se fazerem mar afora, de volta aos portos de origem.

Não compravam nem pediam. O saque era o processo mais prático desses aventureiros. Homens afeitos ao perigo, de caráter rude, muito bem armados, desciam a terra e atacavam a gente indefesa, que tinha como sentinela um pequeno baluarte que chamavam o Fortim da Praça. E os piratas levavam sempre a melhor, pela vantagem de homens, armas e munições.


Fotografia tirada da entrada do abrigo construído por Bartolomeu Fernandes, tal como se encontra na época atual. Uma enorme figueira tapou quase por completo a entrada
Foto  publicada com a matéria

Bartolomeu Fernandes, construtor do refúgio subterrâneo - O motivo que levou mestre Bartolomeu a construir essa obra não foi outro senão o de resguardar o seu povo dos ataques, não só da pirataria como também dos gentios.

Vejamos o que escreve Francisco Martins dos Santos, em alguns tópicos publicados por ocasião do Centenário da Cidade de Santos, a propósito desse refúgio:

"Mestre Bartolomeu, ferreiro da Armada de 1532, deixara a Santos, naquele final de era seiscentista, como lembrança de sua passagem, escondida no morro central de sua sesmaria, a capela de Nossa Senhora do Desterro.

"Anos antes de morrer, mestre Bartolomeu começara uma grande obra para a Vila - era o que dizia a todos - mas nunca chegara a revelá-la, talvez por não tê-la terminado em vida. Ao morrer, porém, declarou aos amigos que sua grande obra estava quase concluída, e que um dia saberiam dela. Chegaram a pensar mal de mestre Bartolomeu, o lutador que tantos e tão bons serviços prestara a Santos e à colonização, fabricando todas as ferramentas que trabalharam o chão, que fizeram os objetos e levantaram as casas de toda a vasta região.

"Seu filho, porém, recebera dele uma secreta incumbência e prometera cumpri-la. Faziam agora dez anos de sua morte. Corria o ano de 1590, quase ao fim.

"Bartolomeu Fernandes, o filho, acabara de completar a obra prometida por seu pai e declarava para breve a sua revelação".

Saqueada várias vezes a Vila de Santos - Santos sofreu vários ataques de piratas e índios, sendo que três foram os do famigerado corsário Thomas Cavendish. O último saque foi levado a efeito pelos marujos desse temível bandido dos mares do Sul, chefiado pelo seu lugar-tenente Cook, que arribou à margem do canal, fazendo descer sua gente, faminta. Travou-se luta imediatamente com os homens de terra, levando estes desvantagem, dada a superioridade numérica e de armas do inimigo. Num desses ataques foi revelado o refúgio ao povo de Santos, que assim conseguiu escapar à sanha de tais bandidos de além-mar.

Ainda o autor da História de Santos, num dos seus interessantes relatos sobre o assunto, diz:

"Alguém, que o pudera fazer a tempo, correra pela Vila, a anunciar o fato, aconselhando a fuga.

"Uma parte do povo já estava na igreja de Santa Catarina e no Colégio dos Padres, ouvindo a primeira missa, ambos ali mesmo, ao pé do desembarcadouro. Ao terrível aviso, alguns ficaram onde estavam, agarrados aos santos e aos sacerdotes, enquanto a maioria punha-se em fuga. Eram calvinistas e decerto não respeitariam as igrejas...

"Os sinos da Capela de Santa Catarina, do Colégio, de Nossa Senhora da Graça e do Conselho (onde os havia também para isso) soaram a rebate, desesperadamente. A vila inteira despertou, preparando trouxas com mantimentos e valores, para a debandada.

"Apressavam-se os piratas para o saque, o incêndio, a depredação.

"Um homem surgiu, então, em toda parte, transfigurado, gritando às famílias para que o seguissem, com suas filhas e com seus valores. Estariam todos salvos. Era o filho de mestre Bartolomeu, era o Messias surgido na Vila.

"Nos grandes momentos, as grandes solidariedades.

"- Venham comigo - gritava ele, correndo as poucas ruas e caminhos do pequeno burgo que era a sua terra.

"A fila de retirantes galgava o morro. Já viam o porto, lá da altura em que todos estavam. Pouco à frente, bem perto, alegre como um sorriso, a Capela de Nossa Senhora. Terminava o caminho mais ao fundo e uma touceira compacta de bananeiras embiocava o talude pedregoso do morro.

"O moço saltou, lépido, da rocha em que estava, deu alguns passos e além, por detrás da touça de bananeiras, disfarçada entre as rochas do talude, mostrou aos retirantes a entrada ampla de uma gruta.

"- É a obra de meu pai, a gruta de Nossa Senhora do Desterro! Penetremos por ela! Vai para o Tachinho, para a floresta, livre, caminho seguro e desconhecido, para São Vicente!

"Dando exemplo à turba, Bartolomeu penetrou, escuro a dentro, como um bandeirante".

***

Foi por essa ocasião que Bartolomeu Fernandes, filho do ferreiro da Armada de Martim Afonso de Sousa, revelou o refúgio à sua gente, construído por seu pai 20 anos atrás.

E assim o povo desta querida terra foi salvo deste e de outros ataques, mais tarde praticados pela pirataria européia e pelos tamoios.

O local do abrigo subterrâneo - Quatro séculos decorreram sem que a picareta do progresso da cidade atingisse o local onde se acha esse refúgio construído por mestre Bartolomeu, talvez por ser zona insalubre e de caminhos ínvios.

Pouco acima do antigo engenho São Jorge dos Erasmos, construído logo após a chegada dos portugueses de Martim Afonso, onde algumas paredes ainda restam como marco da história, na velha estrada, ainda hoje, em São Jorge, no caminho para São Vicente, lá está esculpida na rocha viva, na fralda do morro, uma entrada subterrânea, que, segundo a história, deveria ser a saída. Entretanto, pela arquitetura da obra deve ser ali mesmo a entrada principal.

Infelizmente, o patrimônio histórico nacional não tem dado importância a essa obra de gigantes, construída há quatrocentos anos, como que a desafiar a engenharia. Nas guerras aéreas, essas construções são previstas na defesa das grandes cidades.

O subterrâneo visto por dentro - Alguns moradores do Morro da Nova Cintra (antigo Tachinho), que aos domingos se davam ao prazer da caça e pesca, penetraram nesse velho refúgio. Deles ouvi a descrição do que tinham visto. Ao limiar da porta, que está encravada na face ocidental do morro, um vastíssimo salão com bancos de pedra em toda a volta; as paredes, de pedra, estavam atacadas pelo limo e ao fundo divisavam-se três portas de pequenas dimensões, que davam acesso a outros compartimentos.

As correntes de ar existentes desafiavam archotes.


Dois aspectos dos subterrâneos de Malta, construídos em 1562. 
À esquerda, vemos um aspecto exterior e, à direita, aspecto interno.
Foram construídos na mesma época do subterrâneo de Santos
Imagem publicada com a matéria

Uma ilha do Mediterrâneo com refúgio construídos há 400 anos - Um exemplo de como uma obra desse quilate, construída em tão longínquas eras, poderia ter seu proveito, basta atentar para uma pequena ilha situada no Mediterrâneo, Malta, que viveu as páginas mais heróicas destes últimos tempos, com a guerra atual. Seus habitantes resistiram graças aos refúgios construídos também pela mesma época em que Bartolomeu Fernandes construiu na fralda do Morro do Tachinho, hoje Nova Cintra, aquele que defendeu Santos tantas vezes da fúria de aventureiros e piratas.

Na Idade Média, a ilha de Malta era governada pelos Cavaleiros de São João. Esses heróis templários tornaram o pequeno ponto do Mediterrâneo uma base para se defenderem contra os infiéis.

Corria o ano de 1565, quando essa pequena ilha se viu atacada por uma horda que vinha do Ocidente. A ilha foi cercada e sua defesa ofereceu resistência.

Após essa refrega, os Cavaleiros notaram que, a uma invasão de grande envergadura, se tornariam impotentes para resistir. Nasceu-lhes uma idéia que, logo esclarecida, puseram em prática. Cavaram túneis pela rocha a dentro, onde esses heróis faziam sua gente se esconder por ocasião dos ataques.

Quatrocentos anos são passados e essas obras ficaram ao abandono. Agora esses refúgios servem de muito à população da ilhota.

A minúscula ilha de Malta sofreu mil e tantos bombardeios aéreos, e a população se viu forçada a abandonar seus lares, refugiando-se nesses antigos subterrâneos, construídos pelos Cavaleiros de São João, ali encontrando absoluta segurança enquanto no céu daquele pedaço de terra a poderosa e moderna aviação despejava, dia e noite, toneladas e toneladas de bombas, procurando a destruição do baluarte aliado do Mediterrâneo.

Assim, Malta resistiu aos terríveis bombardeios aéreos, graças aos Cavaleiros de São João que há 400 anos legaram esses refúgios aos malteses, em relevo colocados na mais triste página sangrenta deste século.

Hoje, a construção de abrigos antiaéreos é a suprema garantia das populações citadinas contra ataques pelo ar. Impõe-se a construção de abrigos, perfurando os morros de nossa urbe, por meio de túneis, ligando os pontos majestosos do Gonzaga e Campo Grande, idéia essa já discutida em nossa Câmara há muitos anos, pois essas obras aceleram o progresso, descongestionam o tráfego e tornam maior a sua utilidade.

Imitemos Bartolomeu Fernandes e os Cavaleiros de São João, e assim estaremos prevenidos contra possíveis agressores.

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